Os textos jurídicos normalmente são herméticos e difíceis de serem compreendidos pelos leigos, isto é, por aqueles que não possuem diploma de bacharel em direito. Alguns gramáticos, em tom de chacota, costumam mencionar o surgimento de um novo idioma no Brasil: o juridiquez.
O que eles não sabem é que a Justiça também é palco de episódios hilários, que devem ser resolvidos com muito equilíbrio, serenidade e bom-humor, sobretudo quando se está diante do princípio da insignificância. É o Caso do Ladrão de Sibite, julgado recentemente no último mutirão do Judiciário alagoano.
Na minha infância, era comum ver nos sítios e capoeiras passarinhos como o canário da terra, o curió, o galo de campina, o papa-capim, o caboclinho, o pintasilgo. Os moleques sabiam imitar os cantos, fazendo uso de apitos artesanais vendidos nos mercados públicos.
O sibite e o guriatã eram considerados pássaros de 2a categoria. Ninguém queria trancafiá-los em gaiolas porque eram pequeninos, mirrados e sem valor comercial. Estavam na mesma dimensão do garrincha e do pardal, que podiam voar livremente sem serem incomodados. Ah, também tinha o bem-te-vi, que não era capturado por não se adaptar à vida em cativeiro. Se caíssem nas armadilhas, eram imediatamente libertados sem necessidade de habeas corpus.
Os tempos mudaram. Os grandes sítios de Maceió transformaram-se em condomínios de luxo, os coqueirais e mangues deram lugar a imponentes edifícios, as árvores escassearam e os pássaros nobres desapareceram de nossa convivência. Mas o sibite sobreviveu e passou a dominar a cena ornitológica com o seu canto melodioso, o jeito arisco e desconfiado. A partir daí a sua liberdade está sob constante ameaça pelos alçapões dos passarinheiros, envolvidos com o comércio clandestino de aves nativas.
Aqui de Guaxuma tenho o privilégio de receber a visita espontênea de simpáticos sibites todas as manhãs. Adoro vê-los construir os seus ninhos nas pitangueiras ou fazendo belíssimas piruetas na época do acasalamento. A contemplação me remete às lições da irmã São Paulo, do Colégio Sacramento, que via nesse ato uma bela lição de vida - uma evocação à paciência e ao método. E pedia para a gente repetir um conhecido ditado popular francês: petit à petit l'oiseau fait son nid. Quer dizer, de graveto em graveto o passarinho constrói o seu ninho (cuja corruptela brasileira é de grão em grão a galinha enche o papo).
Pois bem. O que eu queria dizer é que, no mutirão, apareceu um processo-crime, envolvendo um descuidista pego com a boca na botija (leia-se em flagrante delito) quando tentava roubar a gaiola onde vivia um afinado sibite. Paradoxalmente o larápio foi preso e teve o mesmo destino do triste conirostrum speciusum: ficou engaiolado na delegacia, esquecido pelas autoridades judiciárias. Sentiu na carne a tristeza e a melancolia do objeto de sua cobiça...
É aí que entra o nosso espirituoso Isaac Sandes que, na condição de promotor de justiça, resolveu dar um final feliz à história. Segue o pronunciamento do zeloso membro do parquet:
MM. Juiz,
Trata-se de requerimento de Relaxamento de Prisão em Flagrante em favor de VALDEVINO PAPAGENO FALCÃO, preso desde as 15:00 h., do dia 05 de maio do corrente ano pela prática do crime de furto, conduta tipificada pelo artigo 155 do Código Penal.
Pelo que se depreende dos autos, o indiciado perambulava em sua rotina de descuidista, quando teve sua atenção despertada pelo canto de um pássaro sibite que, na varanda de uma casa, se divertia ou se lamentava, uma vez que se encontrava na mesma situação em que atualmente se encontra o indiciado, ou seja, engaiolado.
Entretanto, no meio do caminho tinha um muro, e não sabendo que pular muro era conduta tipificada por nosso legislador com o pomposo nome de “escalada”, bem como que, escalada era causa qualificadora do furto simples, contemplada no nosso Código Penal com o Inciso II, ao parágrafo 4o., do artigo 155. Nosso indiciado, atraído pelo canto do sibite, tal qual Ulisses o foi pelo canto das sereias, resolveu pular o referido muro para furtar o alegre pássaro. Ao ultrapassar o muro, verificou, ainda, que o carro que se encontrava na garagem estava com os vidros abertos e, no seu interior, havia um celular. Resolveu, portanto, adicionar o citado aparelho ao seu esforço de ladrão descuidista.
Flagrado, pelos moradores, abandonou a gaiola com o principal alvo de sua cobiça, desfez a escalada que havia feito e saiu em desabalada carreira apenas com o celular no bolso. Na perseguição, se viu sem saída e resolveu jogar o celular no chão. Em seguida foi preso. Amargando até a presente data, o mesmo destino do alegre ou triste “sibite”.
Considerando que, até a presente data, não houve qualquer ato instrutório, ou melhor, sequer foi oferecida a competente Denúncia; considerando também que, o tempo em que se encontra preso sem sumário de culpa, talvez ultrapasse até mesmo a pena que receberia em concreto. Ainda que tal período de prisão tenha sido mais que suficiente para o mesmo refletir sobre as agruras da falta de liberdade em que se encontrava o inocente sibite, somos pelo DEFERIMENTO do pedido de Relaxamento da Prisão em Flagrante, ora apresentado em benefício de VALDEVINO PAPAGENO FALCÃO.
Maceió, 20 de julho de 2009.
ISAAC SANDES DIAS
Promotor de Justiça