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segunda-feira, 10 de agosto de 2020


PISTOLA DA PAIXÃO

A famosa casa Christie's leiloou por 434 mil euros uma pistola Lefaucheux, calibre 7 milímetros, fabricada no século XIX. É uma arma com capacidade de seis tiros, muito comum à época, cujo modelo pode ser comprado por preço irrisório em muitos antiquários europeus. 

Por que o valor astronômico? Simplesmente porque foi a arma utilizada por Paul Verlaine para atentar contra a vida de seu amante, Arthur Rimbaud, em um hotel de Bruxelas, numa  tarde de 1873.

Os dois ícones da literatura francesa tiveram um tórrido affaire, alimentado de  paixão, ódio, álcool, choro e violência. Enfim, uma relação sulfurosa que quase custou a vida de Rimbaud, então com 18 anos de idade. 

Verlaine, onze anos mais velho, decidiu voltar para sua esposa, Mathilde, com quem casara em 1870. Decidido a recomeçar a vida, deixa Londres e viaja para Bruxelas. 

Inútil. O amante vai ao seu encontro. No hotel as discussões recomeçam cada vez mais violentas e insensatas. 

Os ânimos se acirraram, Verlaine saca a pistola e grita: "tiens! je t'apprendrai à vouloir partir" (toma, vou te ensinar a querer ir embora!). São apenas dois disparos. O  primeiro atinge o punho de Rimbaud; o segundo, a parede do quarto.

Ferido, Rimbaud é atendido num hospital. A ferida é superficial. O medico aplica-lhe um curativo e o libera. Temendo por sua vida ele se apressa a deixar Bruxelas. Já na rua, Verlaine o aborda e  ameaça tirar-lhe a vida. A polícia chega. Ambos são levados ao comissariado de polícia para prestar esclarecimentos. 

Verlaine termina condenado a 2 anos de prisão anos por homossexualismo.  No cárcere ele se dedica a escrever poemas, dispersos nos livros Romances sans paroles (1874) e Sagesse (1881). 

Rimbaud volta para a casa da mãe onde procura superar o trágico rompimento, escrevendo o livro Une saison en enfer

Assim termina o romance que provocava furor nos salões literários da época e escandalizava a sociedade conservadora.

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

O  BEIJO

Aos onze anos beijar na boca era sua aspiração mais alta. O desafio supremo, quase inatingível para o menino retraído, atormentado por uma incurável timidez.

Um dia aconteceu.

Acompanhava em silêncio a coleguinha da escola até a casa. Dividiram o lanche que sobrara do recreio e saíram de mãos dadas pelas ruas do bairro, que começavam a escurecer naquele fim de tarde de inverno.

A brisa fria insinuava desejos etéreos, diáfanos. Foi tudo muito rápido.  De supetão, ela o espreme contra um muro, beija-o docemente e desaparece na esquina, saltitante.

Entorpecido pela magia daquele instante mágico, o menino não compreendeu que o beijo roubado lhe abrira o portal para um mundo desconhecido. Tomou-se de surpreendente audácia, sentiu uma volúpia inexplicável e a certeza de que nada seria como antes.

Adulto, não aprendeu a amar. Sua vida foi uma sucessão de fracassos sentimentais, de prazeres efêmeros, de solidão profunda.

Aquele beijo fugaz o resgatara da introspeção, mas também acendera o fogo das paixões efêmeras cujas labaredas consumiriam vorazmente suas entranhas, para depois jogá-lo no abismo da eterna solidão. 

Babá


Minha babá se foi duas vezes.
A primeira quando deixei de ser bebê.
Não nos vimos por décadas.
Um dia reapareceu para me pedir
o patrocínio de uma causa jurídica,
que não tive como assumir.
Saiu sem deixar endereço.
Decepcionada.
Agora partiu para sempre.
Despediu-se da vida,
deixando-me uma dor pungente
por não ter retribuído
o amor que recebi de suas mãos
ternas e maternais.


terça-feira, 4 de agosto de 2020


FETICHE

Aquele cliente sempre intrigara a vendedora de lingeries. Ainda jovem, impecavelmente vestido, ocupava um elevado cargo na magistratura. O porte imponente inspirava respeito, decência.  A voz suave, aliciante. Mas tinha um modus operandi particular: todas as semanas ia à loja e pedia três peças íntimas do mesmo modelo e cor. Naquele dia não foi diferente:

– Três calcinhas vermelhas, bem provocantes. 

A vendedora não conteve a curiosidade:

– Por que o senhor não escolhe cores diferentes? Sua esposa vai adorar.

Ele piscou o olho e disse em voz baixa:

– Na verdade ela ama os presentes, diz que tenho bom gosto e veste as peças em ocasiões bem especiais, se é que me entende.

– ?

– Mas também tenho duas amantes – disse com uma voz grave, recostando-se no balcão. – Uma não tem conhecimento da outra. Esse clima de mistério, a atmosfera de clandestinidade, o medo de ser descoberto, tudo me excita.

Percebendo o embaraço da moça, continuou:

– Você não pode imaginar o prazer que sinto quando elas vestem as lingeries e se sentem únicas em meus braços...

sábado, 18 de julho de 2020

COLO DE MÃE

Quando frequentava os prostíbulos, ainda adolescente, só tinha uma exigência: transar com as putas mais velhas, ignoradas pelos clientes, invisíveis à lascívia dos homens ávidos por carne fresca.

Alvo de chacota dos amigos, justificava a escolha:

– Elas são as melhores. Conhecem como ninguém as astúcias do sexo. São experientes, carinhosas e não têm pressa em acabar o serviço. Ainda por cima o cachê é o mais barato da casa.

Ao longo dos anos manteve-se fiel às mesmas convicções. A enorme diferença de idade foi a marca de todos os seus amores. Apenas assim sentia-se seguro, confiante.

Ao final da vida compreendeu que suas conquistas amorosas não passaram de desvairada busca pelo colo de mãe que lhe fora negado em sua infância infeliz e solitária.

sexta-feira, 17 de julho de 2020



INFARTO

O corpo do velho moralista jazia nu na cama daquele quarto sufocante, na pensão fétida de rodoviária, frequentada por malandros, prostitutas e desiludidos.

O filho é chamado para as providências de praxe. Observa as paredes sujas, a toalha encardida, as roupas pelo chão. Presa a um fio improvisado, a luz vermelha balançava preguiçosamente, insinuando uma atmosfera lúgubre, decadente.

A esposa não poderia ser informada das circunstâncias em que o marido fora encontrado. Não suportaria o escândalo. Morreria de desgosto.

Envolvida no lençol encardido, a moça pálida e esquelética soluçava:

– Não tive culpa, moço. Seu pai morreu dum gosto.

quinta-feira, 16 de julho de 2020

RECOMEÇO


Mal começara a vida em comum, o marido tratou de convencê-la de que era incapaz de seguir a profissão com que tanto sonhara: professora de belas artes na universidade local. Afirmava ser ela desprovida de vocação e de formação científica para conduzir as disciplinas e participar dos acirrados debates acadêmicos. Deveria evitar o vexame, a vergonha de expor sua inferioridade intelectual.

     Só queria protegê-la de futuras frustrações.

Fingiu acreditar na perversa falácia. Conformou-se em fundar uma família aparentemente feliz com o homem que amava. Mas não conseguiu escapar ao sentimento de frustração por ter desistido tão facilmente dos seus sonhos. Procurava esconder o amargor da derrota sem combate, esmerando-se na criação dos filhos e na condução do lar.

O marido reclamava constantemente de problemas financeiros. Recusava ir a restaurantes em companhia da esposa sob o argumento de que era preciso economizar – melhor seria preparar um jantarzinho em casa ou visitar amigos. Mas era visto ao lado de belas mulheres em animadas noitadas, sem a menor preocupação com as contas astronômicas.

Levou anos para descobrir a farsa que sempre fora o casamento. O alto preço que pagara por sua renúncia. Sentiu-se presa à armadilha que ajudara a construir com seu silêncio. Vivia reclusa enquanto ele enredava-se em aventuras amorosas. Já não era uma mulher jovem, mas ainda era capaz de transgredir, escapar ao conformismo, perseguir a vocação sufocada por tantos anos...

Certo dia abandonou a casa sem nada explicar, sem nada pedir, sem nada reivindicar. Os apelos do marido foram inúteis. Os pedidos de perdão também. Pela primeira vez sentiu-se verdadeiramente livre. Não guardava mágoa, ódio, nada. Renascia como a mulher livre que deveria ter sido. 

segunda-feira, 13 de julho de 2020



CONSELHO DE PAI

Repugnava-lhe a origens familiares, a infância pobre em uma comunidade carente e violenta. A ascensão social era a sua razão de viver. Talvez a fizesse esquecer os anos de privações e humilhações que permearam sua infância.

Exorcizava os demônios em lojas requintadas. Os falsos elogios das vendedoras a transportavam para o mundo glamoroso das socialites. Imaginava-se nos salões grã-finos a arrancar suspiros com os requebros sensuais no vestido justo... afinal esse era seu poder de sedução.

E danava-se a comprar.

O marido, apaixonado, satisfazia-lhe os desejos ainda que isso custasse impagáveis empréstimos bancários e uma triste vida de aparências.

Ao vê-la sair do vestiário, abraçada às peças escolhidas, nem pergunta o preço. Resignado, saca o cartão de crédito, dirige-se ao caixa e, com imperceptível sorriso, lembra o inútil conselho de seu velho pai, falecido há décadas:

– Quando for casar, filho, escolha uma mulher pobre ou rica. Tanto faz. Desgraça é esposar uma pobre metida a rica. Você cavará sua própria sepultura.



O  ATOR E O FIGURANTE


Ao vê-lo no set de gravação, o velho ator desejou ardentemente seu corpo, sua alma seu amor.

O jovem figurante apenas viu a oportunidade de tornar-se um grande ator.

Só não sabia que a falta de talento o condenaria para sempre a figurante na vida do velho ator.