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sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

O RETORNO DAS TATURANAS

Em recente conferência no 3o Congresso do Ministério Público de Alagoas sobre o tema “Afastamento de detentor de mandato eletivo por improbidade administrativa”, defendi a legalidade de medidas cautelares para suspender o exercício dos mandatos de parlamentares envolvidos em corrupção, sobretudo quando a sua permanência no cargo implicasse prejuízo às investigações ou à instrução processual.

As razões desse posicionamento são simples. As ações de improbidade administrativa têm natureza cível, não podendo se falar em foro privilegiado para os réus, sejam eles quem forem. Cabe ao promotor de justiça, com atribuições para a defesa da Fazenda Pública, tanto realizar as investigações como propor as ações civis, devendo o juiz singular julgar a causa.

Sempre que o magistrado verificar que a permanência dos réus no exercício do mandado poderá trazer transtornos às investigações, deverá conceder medida liminar de afastamento das funções. Poderá também, sem ferir a ordem democrática, determinar a indisponibilidade de bens, a quebra de sigilo bancário, telefônico, fiscal e patrimonial, entre outras medidas constritivas.

Ressaltei, na ocasião, que a tramitação processual deveria ser a mais célere possível, dada a natureza transitória do cargo eletivo. As medidas cautelares, porém, deveriam ser mantidas durante toda a tramitação, caso existissem provas contundentes de enriquecimento ilícito ou malversação de recursos públicos. O retorno dos parlamentares nessas circunstâncias implicaria evidentes riscos financeiros ao Érario.

A decisão monocrática proferida pelo Ministro Gilmar Mendes de reconduzir aos mandatos os deputados envolvidos na Operação Taturana deixou a população perplexa e descrente na justiça. Alagoas acordou de ressaca, amedrontada, com a angustiante sensação de impunidade. O mais grave é que se trata de decisão do Supremo Tribunal Federal, a Corte mais importante do país e legítima guardiã da Constituição de 1988.

Mesmo antes de assumir a cadeira de Ministro do STF, Gilmar Mendes já era conhecido por sua visão conservadora e restritiva da Lei de Improbidade Administrativa. Em co-autoria com Arnold Wald, um implacável crítico das ações civis públicas, Gilmar Mendes havia escrito pelo menos dois textos negando os avanços trazidos pela lei e criando obstáculos à sua aplicação.

O primeiro, publicado no Estado de São Paulo, em 1º de abril de 1997 (a data é bem sugestiva, não é?), com o título de "Subversão da Hierarquia Judiciária", procura convencer a sociedade brasileira de que a improbidade administrativa é uma “ação cível de forte conteúdo penal”. Sustenta que a severidade das sanções previstas na Lei 8.429/92 descaracterizam sua natureza civil para se assemelhar a verdadeiros crimes de responsabilidade, o que justificaria a adoção de foro privilegiado para ministros de estado e, por extensão, para senadores, deputados, prefeitos etc.

No segundo artigo, intitulado “Competência para julgar ação de improbidade administrativa”, publicado em 1998, os autores reafirmaram que a suspensão de direitos políticos e a perda da função pública são penas previstas no Código Penal, mas que foram apresentados na lei de improbidade como meras sanções civis. Em razão disso os agentes políticos não poderiam ser julgados por juízes singulares, sob pena de violar a chamada competência jurisdicional por prerrogativa de função.

Os argumentos defendidos pelo Ministro Gilmar Mendes são frágeis. Em primeiro lugar todas as sanções previstas na Lei de Improbidade Administrativa são tipicamente cíveis. Só seriam penais se houvesse previsão de penas privativas de liberdade (reclusão ou detenção). A suspensão de direitos políticos e a perda de função pública não podem ser consideradas sanções criminais, mas penas acessórias destinadas a reforçar a condenação penal.

Afirmar-se que a Lei de Improbidade é "ação civil de forte conteúdo penal" é um erro crasso, uma tese desprovida de qualquer conteúdo científico. Mais do que isso, é um estímulo à prática de atos de corrupção, além de se erguer como embaraço à atuação do Ministério Público na defesa do patrimônio do povo. Essa manobra já foi tentada outras vezes, inclusive com a participação do Legislativo, mas o STF julgou inconstitucional artigo incluído no Código de Processo Penal que garantia foro privilegiado aos agentes políticos acusados de improbidade.

Ao reintegrar os envolvidos na Operação Taturana, o Ministro Gilmar Mendes lançou mão de sofismas insustentáveis. Equivoca-se ao afirmar que o sistema jurídico brasileiro não prevê o afastamento cautelar de parlamentares, tampouco a perda de mandato eletivo. Pergunto-me se o culto ministro deu-se ao trabalho de ler o art. 20, parágrafo único, e o art. 12 da Lei de Improbidade Administrativa. Ou ele acha que os deputados formam uma casta que não pode ser apanhada pelas leis em vigor no país?

Outro argumento risível é a afirmação de que a “decisão judicial impugnada impede e usurpa, sem causa legítima, o exercício do Legislativo, de suas funções”. Não custa perguntar mais uma vez: o sumiço de 300 milhões de reais dos cofres públicos – fartamente documentado pela Polícia Federal e pelo Ministério Público – não é causa legítima para a concessão da liminar que afastou os deputados estaduais? Sinceramente, ministro, não houve nenhuma usurpação, mas uma decisão republicana, serena, calcada nos mais legítimos valores democráticos. Além do mais, o Legislativo continuou a funcionar normalmente com o ingresso dos suplentes na Assembléia Legislativa, atualmente em pleno exercício de suas prerrogativas constitucionais.

O Ministro Gilmar Mendes afirma ainda que a composição da Assembléia Legislativa está em descompasso com a vontade popular das urnas. Mas uma vez indago: Será que os eleitores deram carta branca aos deputados para fazer farra com o dinheiro público? Claro que não. Depois dos fatos amplamente divulgados pela imprensa, é mais plausível dizer que a vontade popular foi traída, jamais usurpada por uma liminar irretocável, concedida por um juiz reconhecidamente sério e íntegro. O que torna a decisão mais devastadora é a total blindagem de todos os deputados e senadores a medidas cautelares de afastamento do cargo eletivo. Ela os torna intocáveis em suas ações administrativas. Cidadãos acima da lei. Se prevalecer essa tese, o Judiciário ficará absolutamente impotente para punir os abusos de poder e atos de corrupção praticados por parlamentares.

Não podemos esquecer a importância das ações de improbridade para o soerguimento econômico e ético de Alagoas. A decisão de Gilmar Mendes é uma ducha fria nas aspirações populares. Mas é passível de revogação, diante das das inconsistências e falhas gritantes que contém. É preciso que o Ministério Público recorra para o STF a fim de reformá-la o mais rápido possível. Só assim o povo alagoano terá motivos para ter esperança de ver-se livre para sempre daqueles que se utilizam do mandato parlamentar para enriquecer ilicitamente ou dilapidar o patrimônio público.