ISAAC SANDES
O dia corria modorrento naquela longíqua Comarca. Entediado, aguardava o início da próxima audiência. De repente, num movimento brusco, a porta do gabinete se abre e o enorme susto. Diante de mim, se apresenta a soturna figura. Trajava paletó preto, bigodes e cabelos mais pretos que o paletó, o penteado a la Carlos Gardel, denunciava o uso de não menos que um frasco de creme, brilhantina ou sei lá o que. Tinha a tez um tanto quanto macilenta. Não fosse a ofuscante luz da primavera, juraria que estava diante de um morto vivo. Só faltava ao dito, os tufos de algodão nas narinas.
Disfarçando meu lastimável estado, levanto-me, pernas ainda bambas e cordialmente o recebo:
-Pois não Senhor.
-Bom dia doutor. Aurélio Troncoso, causídico; posso entrar?
Tamanho foi meu susto que só notei o humilde casal postado logo atrás da sinistra figura após o cumprimento.
- Fiquem à vontade, fiquem à vontade. Em que posso ser útil ?
Cerimoniosamente, querendo coadunar a gravidade de sua figura com a liturgia da profissão, o dito causídico narrou:
- O que me traz aqui é o seguinte: Esse cidadão é um sanfoneiro conhecido pelo apelido de Totonho Xamego, e essa senhora chama-se Josefa dos Santos Silva, proprietária dum barzinho lá na ” Rua do Rego Sujo,” – Estranhe não doutor, é por causa do esgoto a céu aberto – mas, como ia dizendo, todo mundo só a conhece por “ Zefa do Bar”.
Pelo início da narrativa, vi que não estava diante de um episódio de assombração , relaxei e pedi:
-Pois não, prossiga !
–Pois bem. Disse, temperando um inexistente pigarro.
–No último sábado, a Zefa contratou os serviços musicais do conjunto de forró, aqui do Totonho. - Zefa, que até então continuava calada, interrompeu:
–Foi mermo doutor, o movimento tava fraco lá no bar e eu, procurando minhas melhora, inventei de fazer um “armoço musical”. - Concordei e pedi para o causídico prosseguir.
Já se tornando simpática, a antes sinistra figura continuou:
– Como ia dizendo doutor!! Então, o conjunto do Totonho passou a animar o bar da Zefa. O senhor sabe como é músico né, de vez em quando uma birita, e o volume do som foi subindo. Até que, se sentindo incomodado, algum vizinho ligou pra Polícia.
Não sei se era gente importante, ou se foi o bicho que fez do acontecido, só sei é que imediatamente chegou um monte de viaturas. Sirenes ligadas, luzes piscando e lotadas de homens armados até os dentes. Aí doutor, numa operação que parecia a SWAT, os rádios dos homens de instante em instante diziam: “Ok, positivo e operante… – E o outro – Copiei, estou em QOP. Operação no Bar da Zefa em andamento…Individuos imobilizados; aguardo novo comando…Desligo.” Segundo me contou o próprio Totonho, chegaram até a berrar: “ Ei, você aí, arreia a sanfona. Você, jogue a zabumba no chão”. A verdade doutor. -- Prosseguiu. – É que levaram tudo, Sanfona, Zabumba, Triângulo; tudinho, do coitado do Totonho. Só tou lhe incomodando por que é o ganha pão desse miserável .
Agora, totalmente relaxado e sensibilizado pelos fatos, pensei num bom juridiquês: – “ Tais fatos se encaixam perfeitamente no princípio da insignificância, sem falar na desproporção de forças e recursos empregados. Até a tipicidade dos fatos deixa dúvidas. ”
Sem que revelasse tais questões aos aflitos cidadãos, disse-lhes que não pouparia esforços no sentido de providenciar a devolução de seus instrumentos de trabalho, visto que estávamos numa quinta feira e o dia seguinte seria fatal para a assinaturas de novos contratos de animação de “armoços musicais”.
Imediatamente fui à Secretaria da Vara, localizei o Termo Circunstanciado de Ocorrência, tirei cópia, levei-a até a Defensora Pública e lá, quase digitei o competente requerimento liberatório.
Volto para minha sala para adiantar meu parecer. Então, um grande obstáculo: O computador se mostra imprestável. Ao ver a ação ameaçada pelo velho computador, o “Adams” causídico, vem em meu Socorro e oferece seu Notebook. Aceito e começo a redigir. Termino e procuro conectar à impressora. Nova surpresa: Quebrada. Diante da segunda dificuldade material, procuro me socorrer de um reles Pen Drive. Ninguém possuia um, muito menos a Promotoria. Corro com o Note Book debaixo do braço e, finalmente, imprimo o bendito parecer na sala da Escrivã que aceitou com indisfarçável “ Carinha de tédio.”
Todos deram um profundo e aliviado suspiro.
Faltava apenas sensibilizar o nobre Magistrado. Mas isso eu julguei ser obra fácil. Cerimoniosamente me dirigi ao gabinete do MM. Uma vez lá, até exagerei o estado de desespero do sanfoneiro. Mas, vamos lá. Tudo pelo bem da causa. Após minha pungente oração para sensibilizar o Magistrado, em suspense, aguardei a redentora resposta: “ Tá bem, vou despachar agora!!”.
Mas, para surpresa de todos envolvidos naquela via crucis, o nobre Magistrado, usando de toda a pose que seu cargo permitia, fez um meneio de cabeça e solenemente disparou: – “ Farei uma análise perfunctória do caso. Despacharei às onze horas de amanhã “.
Congelado de espanto e frustração, voltei à minha sala e, diante do sanfoneiro, do causídico e Zefa do Bar, só pude lhes dizer: – “ Amigos…! Zabumba só amanhã”. Isaac Sandes – 27/09/2009.
O dia corria modorrento naquela longíqua Comarca. Entediado, aguardava o início da próxima audiência. De repente, num movimento brusco, a porta do gabinete se abre e o enorme susto. Diante de mim, se apresenta a soturna figura. Trajava paletó preto, bigodes e cabelos mais pretos que o paletó, o penteado a la Carlos Gardel, denunciava o uso de não menos que um frasco de creme, brilhantina ou sei lá o que. Tinha a tez um tanto quanto macilenta. Não fosse a ofuscante luz da primavera, juraria que estava diante de um morto vivo. Só faltava ao dito, os tufos de algodão nas narinas.
Disfarçando meu lastimável estado, levanto-me, pernas ainda bambas e cordialmente o recebo:
-Pois não Senhor.
-Bom dia doutor. Aurélio Troncoso, causídico; posso entrar?
Tamanho foi meu susto que só notei o humilde casal postado logo atrás da sinistra figura após o cumprimento.
- Fiquem à vontade, fiquem à vontade. Em que posso ser útil ?
Cerimoniosamente, querendo coadunar a gravidade de sua figura com a liturgia da profissão, o dito causídico narrou:
- O que me traz aqui é o seguinte: Esse cidadão é um sanfoneiro conhecido pelo apelido de Totonho Xamego, e essa senhora chama-se Josefa dos Santos Silva, proprietária dum barzinho lá na ” Rua do Rego Sujo,” – Estranhe não doutor, é por causa do esgoto a céu aberto – mas, como ia dizendo, todo mundo só a conhece por “ Zefa do Bar”.
Pelo início da narrativa, vi que não estava diante de um episódio de assombração , relaxei e pedi:
-Pois não, prossiga !
–Pois bem. Disse, temperando um inexistente pigarro.
–No último sábado, a Zefa contratou os serviços musicais do conjunto de forró, aqui do Totonho. - Zefa, que até então continuava calada, interrompeu:
–Foi mermo doutor, o movimento tava fraco lá no bar e eu, procurando minhas melhora, inventei de fazer um “armoço musical”. - Concordei e pedi para o causídico prosseguir.
Já se tornando simpática, a antes sinistra figura continuou:
– Como ia dizendo doutor!! Então, o conjunto do Totonho passou a animar o bar da Zefa. O senhor sabe como é músico né, de vez em quando uma birita, e o volume do som foi subindo. Até que, se sentindo incomodado, algum vizinho ligou pra Polícia.
Não sei se era gente importante, ou se foi o bicho que fez do acontecido, só sei é que imediatamente chegou um monte de viaturas. Sirenes ligadas, luzes piscando e lotadas de homens armados até os dentes. Aí doutor, numa operação que parecia a SWAT, os rádios dos homens de instante em instante diziam: “Ok, positivo e operante… – E o outro – Copiei, estou em QOP. Operação no Bar da Zefa em andamento…Individuos imobilizados; aguardo novo comando…Desligo.” Segundo me contou o próprio Totonho, chegaram até a berrar: “ Ei, você aí, arreia a sanfona. Você, jogue a zabumba no chão”. A verdade doutor. -- Prosseguiu. – É que levaram tudo, Sanfona, Zabumba, Triângulo; tudinho, do coitado do Totonho. Só tou lhe incomodando por que é o ganha pão desse miserável .
Agora, totalmente relaxado e sensibilizado pelos fatos, pensei num bom juridiquês: – “ Tais fatos se encaixam perfeitamente no princípio da insignificância, sem falar na desproporção de forças e recursos empregados. Até a tipicidade dos fatos deixa dúvidas. ”
Sem que revelasse tais questões aos aflitos cidadãos, disse-lhes que não pouparia esforços no sentido de providenciar a devolução de seus instrumentos de trabalho, visto que estávamos numa quinta feira e o dia seguinte seria fatal para a assinaturas de novos contratos de animação de “armoços musicais”.
Imediatamente fui à Secretaria da Vara, localizei o Termo Circunstanciado de Ocorrência, tirei cópia, levei-a até a Defensora Pública e lá, quase digitei o competente requerimento liberatório.
Volto para minha sala para adiantar meu parecer. Então, um grande obstáculo: O computador se mostra imprestável. Ao ver a ação ameaçada pelo velho computador, o “Adams” causídico, vem em meu Socorro e oferece seu Notebook. Aceito e começo a redigir. Termino e procuro conectar à impressora. Nova surpresa: Quebrada. Diante da segunda dificuldade material, procuro me socorrer de um reles Pen Drive. Ninguém possuia um, muito menos a Promotoria. Corro com o Note Book debaixo do braço e, finalmente, imprimo o bendito parecer na sala da Escrivã que aceitou com indisfarçável “ Carinha de tédio.”
Todos deram um profundo e aliviado suspiro.
Faltava apenas sensibilizar o nobre Magistrado. Mas isso eu julguei ser obra fácil. Cerimoniosamente me dirigi ao gabinete do MM. Uma vez lá, até exagerei o estado de desespero do sanfoneiro. Mas, vamos lá. Tudo pelo bem da causa. Após minha pungente oração para sensibilizar o Magistrado, em suspense, aguardei a redentora resposta: “ Tá bem, vou despachar agora!!”.
Mas, para surpresa de todos envolvidos naquela via crucis, o nobre Magistrado, usando de toda a pose que seu cargo permitia, fez um meneio de cabeça e solenemente disparou: – “ Farei uma análise perfunctória do caso. Despacharei às onze horas de amanhã “.
Congelado de espanto e frustração, voltei à minha sala e, diante do sanfoneiro, do causídico e Zefa do Bar, só pude lhes dizer: – “ Amigos…! Zabumba só amanhã”. Isaac Sandes – 27/09/2009.
Professor George,
ResponderExcluirseu texto me fez lembrar de um "causo" que aconteceu na Paraíba, no famoso ´Habeas Pinho´, nos versos que diz:
"O violão (que a gente pode colocar: A zabumba)
é música e é canção
É sentimento, é vida, é alegria
É pureza e é néctar que extasia
É adorno espiritual do coração."
Como a zabumba do Totonho que fez o Bar da Zefa se encher de clientes a catarolarem até as altas horas, de "alegria", de um néctar alcoólico que de fato, extasia o coração e adorna a alma!
Foi uma pena o magistrado a quo não gostar de versos.
Parabéns, belo texto!
Abraços.
Caro Dr. Isaac,
ResponderExcluirParabéns pela narração dos FATOS!
E, o triste fim, só nos comprova o descaso... "um causo" perdido!! Não há META que mude, não há SANTO que ajude.
Ahh! Tio Leo acaba de chegar no cafezinho anuciando seu Aniversário!
FELICIDADES!
TUDO DE MELHOR...
Abraços
Stellinha