Isaac Sandes
Somente quem nasceu e viveu numa pequena cidade de interior poderá entender a imensa riqueza do conceito traduzido na palavra feira. Não me refiro a feira no sentido moderno, que consiste em lançamentos de produtos e bens de consumo dotados da mais moderna tecnologia, mas sim, aquela feira à antiga, destinada a prover de alimentos e bens básicos, as populações interioranas. Quem leu Vidas Secas, jamais esquecerá, as experiências vividas por Fabiano e sua família, no dia da feira. Quem tomou conhecimento da obra do alagoano José Artur Justo, Verdes Pastos Imburanas, notará que toda a rica narrativa se dá num dia de feira.
Se formos tomar a palavra no seu mais marcante significado, podemos dizer: Feira, numa pequena cidade do interior nordestino, é essência, é mistério, alegria e transfiguração.
Ali, naquele microcosmo, foram ambientados os mais belos escritos regionalistas de nossa literatura. Tudo em razão da riqueza de cores, cheiros, personagens e fatos que são sua alma.
Em tempos idos, a feira se revestia de tamanha importância, que tinha o poder de transformar até o dia que a antecedia. Sua aproximação, seu ar de véspera já deixavam antever toda agitação do dia seguinte. Cozinheiras armam suas toldas, acendem a lenha de seus fogões e se preparam para alimentar aquela cosmopolita turba. Então, os mais diversos odores invadem a noite, vindos das borbulhantes panelas de barro, reacendendo apetites e gulas. No improvisado curral do matadouro, a instintiva antevisão do triste fim que se aproximava, levava o gado a um triste réquiem de mugidos e lamentos. Garis montavam as surradas bancas e os feirantes com sua ruidosa chegada antecipavam o burburinho do faustoso dia.
Pelo que tinha de festivo e lúdico, a feira da pequena comunidade convertia-se em verdadeira terapia, afastando, com seu ar vivo, qualquer sombra de monotonia ou tristeza.
Em regra, é a segunda-feira um dos dias mais impopulares, mais indolentes e indesejados da semana. Entretanto, em minha infância, por ser esse dia, dia de feira, tomava ares e movimento de uma tela impressionista, pois, entre os demais, era o único a ter cheiro. Quem não lembra dos cheiros da feira de sua infância ? Cheiro de frutas maduras, de frutas passadas, dos tira gostos vendidos a céu aberto, cheiro de gente suada, de animais e seus excrementos e o mais marcante deles, aquele que emanava dos eixos queimados dos carros de bois, assim como o agridoce cheiro dos próprios bois. Não há odores mais vivos ou marcantes do que os de uma feira.
Na antiga feira o burburinho começava já na alta madrugada. O doce cantar dos carros de bois abria a rica sinfonia de sons que iria embalar aquele dia. Em seguida, o lânguido sussurro de vozes matutas com seus mais diversos sotaques e cantares que, vindos da sala ao lado, entravam pelas frestas da camarinha nos chamavam para um alegre despertar. Eram aqueles que, ao amanhecer, invadiam nossa casa para guardar seus teréns, fazer desjejum; ouvir e contar as novidades da semana. Fechando o ciclo de contas desse belo rosário de sons; apitos de lanchas, ronco de carros de frete, buzinas de pãozeiros e os crescentes e alegres gritos dos feirantes se firmando num definitivo ar de festa. Tais sons e tais cheiros emprestavam àquela pequena cidade uma dimensão que ela não tinha no dia a dia.
Assim, o patinho feio da folhinha, a segunda- feira, tornava-se um dia de verdadeira alegria. Imediatamente, me sentia inundar de uma infantil satisfação, como se aquele evento fosse um milagroso remédio para incertezas, tristezas e o tédio que rondavam os dias comuns.
Apenas um fato poderia entristecer o sertanejo. Não dispor daquilo que costumava chamar - “ O dinheiro da feira “ - Para a criança que eu era, o único fato que causava desconforto era ver aquela procissão de cabeças baixas, almas humilhadas e chapéus na mão, que se formava na porta do poderoso chefe politico local, numa silenciosa súplica. Humilhação suportada com resignação por todos aqueles desvalidos apenas pelo prêmio de evitar a triste visão dos olhinhos famintos das inocentes criaturas que deixara em casa num esperançoso aguardo.
. Vez em quando, um sombrio temor se insinuava pelas frestas de minha mente: Ver um dia, meu pai naquela fila de zumbis morais.
Felizmente, aquela terrível sombra rapidamente era desfeita por uma realidade mais sorridente. Adulto, suspeitei a razão do mórbido pensar: Na visão nanoeconômica de criança, acreditava eu, ser a feira, o lugar onde se operava toda a mágica econômica, mágica esta que ia do surgimento ao desaparecimento do dinheiro. Para mim, aquilo era um tudo ou nada financeiro, uma imaginária e gigantesca NASDAQ, pois então estava longe de entender os reais mecanismos da economia.
A mágica daquele evento sintetizava, no decorrer de aproximadamente doze horas, o universo de toda uma comunidade.
Na feira, bêbedos eventuais afogavam suas mágoas, dívidas eram pagas ou velhacos consolidados, velhas intrigas eram resolvidas à tapa ou faca, protistutas enchiam as burras, esmolés coletavam reservas, matutos renovavam os estoques de chita, fustão e azulão; namorados se acertavam, a cadeia ganhava movimento extra, os cinemas lançavam as “novidades”, camelôs berravam seus milagres. Enquanto, de minha parte, era o momento adequado para trocar e vender os gibis que iriam garantir o cinema e o acerto de contas com a velha doceira.
Enfim, na pequena cidade, a feira renovava todos para mais um ciclo de sobrevivência. Visto de hoje, tal ciclo pode parecer curto e insignificante, mas, a seu tempo, tinha o tamanho certo e uma vital importância para aqueles simplórios viventes. Vidas que se resumiam a planos e projetos do tamanho de uma semana.
Para o sofrido povo sertanejo, sonhos e projetos nunca poderiam se dar ao luxo de se estenderem para além daqueles sete dias. Como o vôo de uma galinha, seus projetos, necessariamente, eram curtos e rasteiros. Jamais ousariam se estender além do ciclo de uma feira.
Isaac Sandes 17/11/2009
Professor, muito boa a sua crônica. Eu nasci no interior daqui do Estado e a minha rua era chamada de rua da “feira da batata”, as nossas calçadas acordavam aos sábados repleta delas. O zum zum zum da feira embalava meu sono, sei bem o que é isso do “burburinho começava já na alta madrugada.”
ResponderExcluirLá em casa quem acordava cedo para ir à feira era meu pai, que também dizia ser uma “verdadeira terapia”.
Escrevi também uma crônica sobre o assunto, se o senhor puder, dê uma passadinha lá! Eis o link http://recantodasletras.uol.com.br/cronicas/1221569.
Abraços,
Interessante, como tais memórias são quase universais. Juro que nunca havia visto sua crônica do mesmo nome. E me espanto em ver como o sentir e lembrar de tais coisas, são tão iguais nos nascidos em cidades de interior.
ResponderExcluirAcho que a falta de televisão, videogames e demais tranqueiras, fez com que tais imagens se cristalizassem em nossas mentes.
Imagino que lembranças terão as crianças de hoje, quando um dia chegar a maturidade.
Sua crônica ativou minha memória gustativa.
ResponderExcluirDeu-me vontade de comer, carne de porco com feijão de corda. Esse era o prato da segunda feira.
Quantas saudades!
Jileno Sandes.
É, realmente, viver em interior tem muito de comum mesmo.
ResponderExcluirPara mim o prato do sábado de feira era sarapatel com macaxeira de manhã logo cedo.