Em minha carreira de professor conheci pessoalmente muitos constitucionalistas cujos ensinamentos contribuíram, de forma decisiva, para a construção da democracia brasileira. Uns me impressionaram por sua cultura jurídica; outros me decepcionaram por se revelarem verdadeiros alpinistas do serviço público. Alguns tornaram-se cães adestrados de governantes corruptos e de grupos econômicos mal-intencionados. Poucos foram os que deram o exemplo de honradez e coragem, enfrentando déspotas com a força de seu caráter e o brilho de sua inteligência.
Quando tinha 17 anos e era estudante de direito, acompanhei a visita de Pontes de Miranda a Maceió. Ele voltava à terra natal após uma longa ausência de quase 60 anos. Era um jurista consagrado, autor de vasta obra jurídica. Respeitado em todo o mundo. Vivíamos os estertores da ditadura militar, regime sob o qual eu passara toda minha infância e adolescência. Meu pai voltou para casa muito orgulhoso com uma foto ao lado do homenageado (a foto permaneceu por muitos anos pendurada em uma parede de seu escritório jurídico).
Anos depois pude compreender a dimensão da estatura moral daquele homem. Mais do que magistrado, diplomata, e escritor, ele tinha coragem cívica de defender os direitos humanos e combater o despotismo. Ao comentar a constituição de 1967 – outorgada pelos militares –, não hesitou em afirmar que estávamos diante de um regime ilegítimo, fruto de um sórdido golpe de estado perpetrado pelas forças armadas. Sustentava que era preciso restabelecer as liberdades públicas e assegurar o funcionamento das instituições democráticas. Escrever isso naqueles anos difíceis exigia coragem e desprezo aos favores governamentais.
Em 1991, já promotor de justiça, tive a oportunidade de testemunhar o ato de coragem de outro constitucionalista nordestino: Pinto Ferreira. O governador de Alagoas encaminhara um pedido de afastamento do então Procurador-Geral de Justiça, José Carlos Malta, legitimamente eleito pela classe. O pedido era uma represália à ação penal proposta pelo chefe do Ministério Público contra um integrante da equipe do governo, envolvido em atos de violência. Alguns companheiros viajaram a Caruaru e bateram à porta do jurista pernambucano em busca de ajuda. Ele os ouviu pacientemente e redigiu um brilhante parecer mostrando as falhas do processo e defendendo a permanência no cargo. Não cobrou honorários. Agiu em defesa de princípios. Combateu a perseguição política e a retaliação, sem esperar nada em troca. Resultado: a Assembléia Legislativa arquivou o processo por absoluta falta de fundamento jurídico.
Reencontrei Pinto Ferreira em 1996, quando eu já era professor de Direito Constitucional da UFAL e cursava mestrado na UFPE. Já octogenário, aceitou o convite para ministrar um curso de teoria da constituição em Maceió. Poucas pessoas compareceram ao evento. Mas o professor não se importou. Com o entusiasmo de um adolescente, a voz firme e decidida, ocupou a tribuna e proferiu brilhantes conferências sobre os mais variados temas. Acompanhei-o durante toda a visita. Pediu-me para levá-lo a casa do professor Silvio de Macedo, seu colega da Faculdade do Recife. Lembraram os velhos tempos, felizes por reconstruir fragmentos da juventude longínqua. Riram muito das travessuras de estudantes, da boemia, da vida em fétidas pensões, das conquistas amorosas. Foi um encontro proustiano, uma verdadeira celebração à vida.
Nossa amizade se fortaleceu com o tempo. Ele foi responsável pela publicação de meu primeiro artigo científico na Revista do Instituto dos Advogados em 1995. A seu convite, escrevi outros textos para a Revista da Faculdade de Ciências Humanas de Pernambuco, instituição criada e administrada por ele. Sou testemunha de sua preocupação com a qualidade de ensino e com a formação moral dos estudantes. Nos corredores, alunos e professores não cansavam de expressar sua admiração pelo mestre.
Quando tinha 17 anos e era estudante de direito, acompanhei a visita de Pontes de Miranda a Maceió. Ele voltava à terra natal após uma longa ausência de quase 60 anos. Era um jurista consagrado, autor de vasta obra jurídica. Respeitado em todo o mundo. Vivíamos os estertores da ditadura militar, regime sob o qual eu passara toda minha infância e adolescência. Meu pai voltou para casa muito orgulhoso com uma foto ao lado do homenageado (a foto permaneceu por muitos anos pendurada em uma parede de seu escritório jurídico).
Anos depois pude compreender a dimensão da estatura moral daquele homem. Mais do que magistrado, diplomata, e escritor, ele tinha coragem cívica de defender os direitos humanos e combater o despotismo. Ao comentar a constituição de 1967 – outorgada pelos militares –, não hesitou em afirmar que estávamos diante de um regime ilegítimo, fruto de um sórdido golpe de estado perpetrado pelas forças armadas. Sustentava que era preciso restabelecer as liberdades públicas e assegurar o funcionamento das instituições democráticas. Escrever isso naqueles anos difíceis exigia coragem e desprezo aos favores governamentais.
Em 1991, já promotor de justiça, tive a oportunidade de testemunhar o ato de coragem de outro constitucionalista nordestino: Pinto Ferreira. O governador de Alagoas encaminhara um pedido de afastamento do então Procurador-Geral de Justiça, José Carlos Malta, legitimamente eleito pela classe. O pedido era uma represália à ação penal proposta pelo chefe do Ministério Público contra um integrante da equipe do governo, envolvido em atos de violência. Alguns companheiros viajaram a Caruaru e bateram à porta do jurista pernambucano em busca de ajuda. Ele os ouviu pacientemente e redigiu um brilhante parecer mostrando as falhas do processo e defendendo a permanência no cargo. Não cobrou honorários. Agiu em defesa de princípios. Combateu a perseguição política e a retaliação, sem esperar nada em troca. Resultado: a Assembléia Legislativa arquivou o processo por absoluta falta de fundamento jurídico.
Reencontrei Pinto Ferreira em 1996, quando eu já era professor de Direito Constitucional da UFAL e cursava mestrado na UFPE. Já octogenário, aceitou o convite para ministrar um curso de teoria da constituição em Maceió. Poucas pessoas compareceram ao evento. Mas o professor não se importou. Com o entusiasmo de um adolescente, a voz firme e decidida, ocupou a tribuna e proferiu brilhantes conferências sobre os mais variados temas. Acompanhei-o durante toda a visita. Pediu-me para levá-lo a casa do professor Silvio de Macedo, seu colega da Faculdade do Recife. Lembraram os velhos tempos, felizes por reconstruir fragmentos da juventude longínqua. Riram muito das travessuras de estudantes, da boemia, da vida em fétidas pensões, das conquistas amorosas. Foi um encontro proustiano, uma verdadeira celebração à vida.
Nossa amizade se fortaleceu com o tempo. Ele foi responsável pela publicação de meu primeiro artigo científico na Revista do Instituto dos Advogados em 1995. A seu convite, escrevi outros textos para a Revista da Faculdade de Ciências Humanas de Pernambuco, instituição criada e administrada por ele. Sou testemunha de sua preocupação com a qualidade de ensino e com a formação moral dos estudantes. Nos corredores, alunos e professores não cansavam de expressar sua admiração pelo mestre.
Em 1999, Pinto Ferreira foi agraciado com o título de professor honoris causa da Universidade de Coimbra, um justo reconhecimento ao conjunto de sua obra. O evento coroaria as homenagens portuguesas aos 500 nos do descobrimento do Brasil. Fui parabenizá-lo em sua residência, um confortável casarão em estilo colonial, localizado no Bairro da Boa Vista, em Recife. Encontrei-o sentado no chão escrevendo sofregamente, enquanto seu netinho brincava ao lado alheio a tudo. Fez questão de levar-me ao seu gabinete na faculdade e me presenteou com vários livros, narrando-me com entusiasmo detalhes do cerimonial da secular universidade lusitana. Despedimo-nos com um forte abraço.
Diante da crise ética e moral em que estamos mergulhados até o gargalo, Pontes de Miranda e Pinto Ferreira são exemplos a serem seguidos pelos jovens estudantes de direito. Seus ensinamentos são uma permanente fonte de inspiração para aqueles que teimam em viver num país livre da corrupção, do clientelismo e do tráfico de influência – males que estão incrustados em todos os poderes, salvo raras e honrosas exceções. Homens como eles são um sopro de esperança. A certeza de que vale a pena trilharmos o caminho da honestidade, arregaçar as mangas e ajudar a reconduzir a nossa pátria aos verdadeiros valores republicanos.
Diante da crise ética e moral em que estamos mergulhados até o gargalo, Pontes de Miranda e Pinto Ferreira são exemplos a serem seguidos pelos jovens estudantes de direito. Seus ensinamentos são uma permanente fonte de inspiração para aqueles que teimam em viver num país livre da corrupção, do clientelismo e do tráfico de influência – males que estão incrustados em todos os poderes, salvo raras e honrosas exceções. Homens como eles são um sopro de esperança. A certeza de que vale a pena trilharmos o caminho da honestidade, arregaçar as mangas e ajudar a reconduzir a nossa pátria aos verdadeiros valores republicanos.