ISAAC SANDES
“Quem tripas comeu e com viúva casou, sempre há de se lembrar do que por lá andou".
O sábio provérbio português serve muito bem a quem queira evocar reminiscências de suas raizes.
Mergulharei agora, a uma profundidade de aproximadamente 40 anos, para resgatar de minha infância, pendores e gostos que, engastados nas profundas minas do tempo, vez por outra afloram como auríferos veios.
Quem de nós, vez em quando, não se delicia nesta solitária e vivificadora garimpagem de memórias ?
Relembrar, é viajar no tempo sem as dispendiosas e futuristas máquinas da literatura ficcionista.
É uma viagem franca e baratinha. Verdade que, vez por outra, nossa nave viageira teima em passar perto, ou mesmo atingir lembranças que fazemos questão de desviar e trancar à sete chaves no mais profundo sótão da memória. Mas, se bem conduzirmos nossa barata nave, poderemos usufruir das mais doces, mais ternas e gratificantes lembranças.
Neste momento, minha fantasiosa máquina do tempo se dirige, em profundo vôo, para tentar descobrir ou suspeitar de onde surgiu, ou, onde se amalgamou meu gosto pela música.
Minha primeira parada é no doce e afinado cantar de minha mãe, que enfrentava a faina diária com as armas da música, interpretando magistralmente as mais diversas cantigas do cancioneiro popular.
Próxima estação. A casa vizinha onde o carroceiro Cartolinha, em suas horas vagas, dedilhava competentemente um violão e eu, como seu moleque preferido, durante horas e horas, o acompanhava naquelas fugas de seu duro dia-a-dia.
Já mais adiante, me vejo peruando a roda de choro, formada por João de Santa, Paulo dos Meirús, Adail Arruela e Luiz de Bão na percussão.
Nesse grupo, a figura de Adail Arruela se destacava, tanto pela competência musical, quanto pela orígem de seu apelido. "Arruela" (uma referência indireta à sola de que as arruelas eram feitas naquele tempo).
Contam os mais antigos que Adail ganhou esse apelido após pitoresco episódio havido em uma farra. Seguinte: dizem que Adail apesar de exímio violonista, era dado a uma certa enrolação. De poucas posses, aproveitava as farras para fazer, dos suculentos tira-gostos ali servidos, o seu gratuito restaurante. Tanto assim, que não havia tira-gosto que bastasse para o voraz Adail. Após ter comido todo o tira-gosto, Adail se enfadava e sempre arranjava um jeito de, lá por altas horas, quando sabia tudo fechado, arrebentar as cordas de seu violão e, de barriga cheia, rumar pra casa para um reparador sono.
Como na esbórnia a malandragem é de todos. Os colegas de farra de Adail logo identificaram sua manha e lhe preparam o troco.
Combinaram nova farra, convidaram Adail sob promessas dos mais variados e apetitosos tira-gostos e lhe aprontaram a armadilha.
Colocaram vários pedaços de sola no molho por alguns dias, lhes adicionaram quase uma caravela de temperos e especiarias, então, fritaram os bifes de sola e os envolveram em irresistível farofa acebolada.
Ao sentir as emanações do redentor prato, Adail quase estraga seu violão, agora com a baba quase epiléptica que lhe escorria pelos cantos da boca.
Iniciada a farra, Adail lançou-se sobre o prato de tira-gosto, que não sabia ser de sola, com voracidade de uma hiena. Mastiga…, mastiga, e nada de car cabo dos insuspeitos bifes. Dessa vez, a farra viu o nascer do dia sem que as cordas do violão de Adail se quebrassem. Finalmente, a ficha de Adail só veio cair quando um gaiato, sem se conter, começou, em referência à sola, a chama-lo de Arruela. Então o tempo fechou, os exaustos farristas, levaram um bom tempo para conter a fúria de Adail. Daquele dia em diante, quem o chamasse de Arruela, corria o risco de levar alguns pontos na cabeça provocados por um braço de violão.
Sem dúvida, outro ponto musical que me emprenhou de influências musicais, ficava na casa de Dedé de Burdão, velha irascível e quase intragável, mas que se tornava uma seda quando recebia, em visita, sua filha, uma notória cafetina.
Diziam os mais velhos que, na juventude, aquela alquebrada cafetina havia sido uma morena de curvas mais perigosas do que as da estrada de Santos. Tal fartura e formosura nas artes do amor e que tais, passaram a servir ao coletivo, tornando-a uma das mais requisitadas e bem sucedidas do milenar ramo.
Mas, alcançada pela dureza e crueldade do senhor tempo, aos poucos, foi perdendo seus encantos e passando a ocupar o posto que as mais inteligentes ocupam quando chegam ao ocaso na carreira: o de cafetina.
Ungida na nova plataforma sexual, estabeleceu-se como a mais requisitada casa da Rua Chico Nunes, baixo meretrício de Palmeira dos Indios. E, tendo amealhado razoáveis recursos, vez por outra, tal qual uma Chica da Silva sem Arraial, em Feliniana caravana, visitava sua mãe, Dona Dedé.
Essa visita era quase um evento em nossa pequena cidade, porque a cafetina chegava com um verdadeiro entourage, abalando os dias calmos da Rua de Cima, onde se estabelecia. Na sua troupe, tínhamos invariavelmente, um cafetão da hora, uma nova putinha em estágio probatório, um ou dois viados que cuidavam da cozinha ou da arrumação da casa, um magro leão de chácara e seus sobrinhos que ajudavam na administração do negócio.
Por outro lado, eu, um inocente garoto de nove ou dez anos, não conseguindo ver, no momento histórico, que a peça mais importante daquele profano cortejo era, na verdade, a putinha estagiária, dirigia toda minha atenção e alegria para uma enorme radiola de madeira que, dia e noite, tocava os mais recente sucessos de Moreira da Silva, Nelson Gonçalves e Altemar Dutra, vez por outra, acompanhada pela bela voz da dona.
Ali, de pé em frente a uma das janelas da humilde casa que não tinha nem eira nem beira, passava horas e horas ouvindo, num momento, o som da grande radiola da cafetina, noutro, a voz de sua dona, que, acompanhada em segunda voz por seu cafetão, demonstrava os pendores artísticos que a tinham alçado ao atual status.
Inocentemente, imaginando ser aquela desenvolta mulher uma empresária de grande sucesso eu, ali naquela janela, trocando, vez por outra, o pé cansado da demora, ia torcendo para que o seu sucesso nunca declinasse, pois se tal acontecesse eu definitivamente perderia o inenarrável prazer de escutar a radiola da cafetina.
Mergulharei agora, a uma profundidade de aproximadamente 40 anos, para resgatar de minha infância, pendores e gostos que, engastados nas profundas minas do tempo, vez por outra afloram como auríferos veios.
Quem de nós, vez em quando, não se delicia nesta solitária e vivificadora garimpagem de memórias ?
Relembrar, é viajar no tempo sem as dispendiosas e futuristas máquinas da literatura ficcionista.
É uma viagem franca e baratinha. Verdade que, vez por outra, nossa nave viageira teima em passar perto, ou mesmo atingir lembranças que fazemos questão de desviar e trancar à sete chaves no mais profundo sótão da memória. Mas, se bem conduzirmos nossa barata nave, poderemos usufruir das mais doces, mais ternas e gratificantes lembranças.
Neste momento, minha fantasiosa máquina do tempo se dirige, em profundo vôo, para tentar descobrir ou suspeitar de onde surgiu, ou, onde se amalgamou meu gosto pela música.
Minha primeira parada é no doce e afinado cantar de minha mãe, que enfrentava a faina diária com as armas da música, interpretando magistralmente as mais diversas cantigas do cancioneiro popular.
Próxima estação. A casa vizinha onde o carroceiro Cartolinha, em suas horas vagas, dedilhava competentemente um violão e eu, como seu moleque preferido, durante horas e horas, o acompanhava naquelas fugas de seu duro dia-a-dia.
Já mais adiante, me vejo peruando a roda de choro, formada por João de Santa, Paulo dos Meirús, Adail Arruela e Luiz de Bão na percussão.
Nesse grupo, a figura de Adail Arruela se destacava, tanto pela competência musical, quanto pela orígem de seu apelido. "Arruela" (uma referência indireta à sola de que as arruelas eram feitas naquele tempo).
Contam os mais antigos que Adail ganhou esse apelido após pitoresco episódio havido em uma farra. Seguinte: dizem que Adail apesar de exímio violonista, era dado a uma certa enrolação. De poucas posses, aproveitava as farras para fazer, dos suculentos tira-gostos ali servidos, o seu gratuito restaurante. Tanto assim, que não havia tira-gosto que bastasse para o voraz Adail. Após ter comido todo o tira-gosto, Adail se enfadava e sempre arranjava um jeito de, lá por altas horas, quando sabia tudo fechado, arrebentar as cordas de seu violão e, de barriga cheia, rumar pra casa para um reparador sono.
Como na esbórnia a malandragem é de todos. Os colegas de farra de Adail logo identificaram sua manha e lhe preparam o troco.
Combinaram nova farra, convidaram Adail sob promessas dos mais variados e apetitosos tira-gostos e lhe aprontaram a armadilha.
Colocaram vários pedaços de sola no molho por alguns dias, lhes adicionaram quase uma caravela de temperos e especiarias, então, fritaram os bifes de sola e os envolveram em irresistível farofa acebolada.
Ao sentir as emanações do redentor prato, Adail quase estraga seu violão, agora com a baba quase epiléptica que lhe escorria pelos cantos da boca.
Iniciada a farra, Adail lançou-se sobre o prato de tira-gosto, que não sabia ser de sola, com voracidade de uma hiena. Mastiga…, mastiga, e nada de car cabo dos insuspeitos bifes. Dessa vez, a farra viu o nascer do dia sem que as cordas do violão de Adail se quebrassem. Finalmente, a ficha de Adail só veio cair quando um gaiato, sem se conter, começou, em referência à sola, a chama-lo de Arruela. Então o tempo fechou, os exaustos farristas, levaram um bom tempo para conter a fúria de Adail. Daquele dia em diante, quem o chamasse de Arruela, corria o risco de levar alguns pontos na cabeça provocados por um braço de violão.
Sem dúvida, outro ponto musical que me emprenhou de influências musicais, ficava na casa de Dedé de Burdão, velha irascível e quase intragável, mas que se tornava uma seda quando recebia, em visita, sua filha, uma notória cafetina.
Diziam os mais velhos que, na juventude, aquela alquebrada cafetina havia sido uma morena de curvas mais perigosas do que as da estrada de Santos. Tal fartura e formosura nas artes do amor e que tais, passaram a servir ao coletivo, tornando-a uma das mais requisitadas e bem sucedidas do milenar ramo.
Mas, alcançada pela dureza e crueldade do senhor tempo, aos poucos, foi perdendo seus encantos e passando a ocupar o posto que as mais inteligentes ocupam quando chegam ao ocaso na carreira: o de cafetina.
Ungida na nova plataforma sexual, estabeleceu-se como a mais requisitada casa da Rua Chico Nunes, baixo meretrício de Palmeira dos Indios. E, tendo amealhado razoáveis recursos, vez por outra, tal qual uma Chica da Silva sem Arraial, em Feliniana caravana, visitava sua mãe, Dona Dedé.
Essa visita era quase um evento em nossa pequena cidade, porque a cafetina chegava com um verdadeiro entourage, abalando os dias calmos da Rua de Cima, onde se estabelecia. Na sua troupe, tínhamos invariavelmente, um cafetão da hora, uma nova putinha em estágio probatório, um ou dois viados que cuidavam da cozinha ou da arrumação da casa, um magro leão de chácara e seus sobrinhos que ajudavam na administração do negócio.
Por outro lado, eu, um inocente garoto de nove ou dez anos, não conseguindo ver, no momento histórico, que a peça mais importante daquele profano cortejo era, na verdade, a putinha estagiária, dirigia toda minha atenção e alegria para uma enorme radiola de madeira que, dia e noite, tocava os mais recente sucessos de Moreira da Silva, Nelson Gonçalves e Altemar Dutra, vez por outra, acompanhada pela bela voz da dona.
Ali, de pé em frente a uma das janelas da humilde casa que não tinha nem eira nem beira, passava horas e horas ouvindo, num momento, o som da grande radiola da cafetina, noutro, a voz de sua dona, que, acompanhada em segunda voz por seu cafetão, demonstrava os pendores artísticos que a tinham alçado ao atual status.
Inocentemente, imaginando ser aquela desenvolta mulher uma empresária de grande sucesso eu, ali naquela janela, trocando, vez por outra, o pé cansado da demora, ia torcendo para que o seu sucesso nunca declinasse, pois se tal acontecesse eu definitivamente perderia o inenarrável prazer de escutar a radiola da cafetina.
COMENTÁRIOS SOBRE A CRÔNICA
Luiza Amália
Acadêmica de Direito e correspondente do blog nos Estados Unidos
Ler essa crônica também me trouxe recordações. Dos anos de minha infância em que vivi em Palmeira dos Índios, quando ouvia Sandrinha, a empregada de minha avó falar:
-“Zé não dormiu em casa essa noite , dona Lenira. Tenho medo de ter perdido esse menino pra Cafurna”.
Outras vezes vociferava:
- “Zé me inventou de aparecer com uma namoradinha de Cafurna”.
Zé era o filho de Sandrinha, e a Cafurna, até pouco tempo, era um mistério para mim.
Mais tarde descobri que a Cafurna é o bairro de Palmeira onde se situa a Rua Chico Nunes, rua histórica onde funcionava o grande cabaré da cidade (que, pelo que me parece agora, era de propriedade da cafetina da radiola).
Alguns moradores mais antigos, como as finadas Sandrinha e vovó Lenira, associavam o nome do bairro da Cafurna a tudo que era mundano, a tudo que fugia dos padrões provincianos.