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quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

CARIDADE NÃO É OBRIGAÇÃO

GEORGE SARMENTO

Fiquei surpreso quando minha professora de direito do trabalho anunciou sua aposentadoria. Era uma mulher ainda jovem e ativa, que gozava de excelente saúde. Perguntei-lhe a razão da repentina decisão. Ela respondeu:

- Já dei minha contribuição ao magistério. Agora pretendo dedicar-me ao voluntariado. Estou à procura de uma instituição que faça trabalho filantrópico para que eu possa ajudar. A caridade... Acho que esse é o sentido da vida.

Alguns meses depois, reencontrei-a na rua e perguntei-lhe:

- Como vai a ajuda aos necessitados? A senhora está militando em que instituição?

- Meu amigo, ela respondeu, a coisa mais difícil do mundo é ajudar os pobres. Ofereci meus préstimos a várias instituições e todas negaram. Fui recebida com muita desconfiança... Pensavam que eu queria fazer política ou tirar algum benefício pessoal. Desisti. Agora pratico yoga todos os dias e busco ajudar meu próprio “eu”.

Lembrei-me desse episódio ao chegar ao Ministério Público, onde teria audiência com alguns idosos ameaçados de despejo do prédio público em que desenvolvem atividades culturais há mais de 10 anos. São integrantes de associações informais que não recebem um centavo do poder público, mas oferecem atividades como dança de salão, capoeira, bumba-meu-boi, academia de ginástica etc. São 650 pessoas carentes que se beneficiam dos serviços ofertados gratuitamente.

Os dirigentes foram pegos de surpresa pela cessão do espaço a um instituto que ambiciona congregar todos os idosos da cidade em seus domínios e, assim, fortalecer determinadas candidaturas ao parlamento alagoano. Coincidentemente, a beneficiária é uma ONG que já recebeu generosas contribuições dos cofres públicos sem participar de qualquer processo licitatório. As vítimas só tomaram conhecimento do despejo pelo Diário Oficial e estavam preocupadíssimas com o encerramento das atividades.

Foi aí que percebi que a professora tinha razão. Está em curso um verdadeiro processo de apropriação dos hiposuficientes no Brasil. Velhinhos, crianças, adolescentes, portadores de deficiência, desempregados, todos são alvos de supostos defensores de sua dignidade. No fundo querem fazer um “belo” trabalho social regado a recursos públicos. Descobriram que a caridade pode se transformar num negócio muito lucrativo. Por isso não há espaço para o homem de bem que queira ajudar, movido exclusivamente por sentimentos altruístas.

A caridade é defendida por todas as religiões que conheço. Muitos pensam que é um passaporte para o céu e um salvo-conduto para generosas benesses terrenas. O “político caridoso” usa os meios de comunicação para divulgar seus atos de benemerência com o objetivo angariar votos. Muitos votos. Para mim, a caridade tem de ser espontânea, desinteressada, discreta. Deve ser praticada sem alarde. É a maior expressão de compaixão e amor ao próximo. Alegra muito mais a quem dá do que a quem a recebe. Sua beleza está em saber que um pequeno gesto pode mudar a vida de seu semelhante.

O problema é quando a caridade se torna uma obrigação. O prazer de ajudar ao próximo transforma-se em dívida que não admite atraso. Passa a ser compulsória e improrrogável. Em algumas ocasiões resolvi ajudar instituições religiosas ou caritativas que desenvolvem projetos sociais interessantes. Pouco a pouco as exigências financeiras aumentaram e os telefonemas de cobrança passaram a infernizar minha vida. Isso sem falar nas correspondências contendo mensagens subliminares para pressionar o incauto a “abrir o bolso”. Para atingir os objetivos, não poupam nada nem ninguém: imagens de santos, terços, água benta engarrafada e por aí vai...

Certo dia bateu à minha porta um homem vestindo roupas rotas e um chapéu surrado. Sabia o meu nome e se dizia um grande admirador de minha atuação como promotor de justiça na comarca de Batalha ao longo dos anos 80. Disse-me que havia entrado no MST e que agora era um feliz proprietário de gleba num assentamento em Maragogi, região litorânea de Alagoas. Foi então que me entregou uma pequena cesta com produtos de sua roça: inhame, macaxeira, batata doce e algumas bananas. Disse-me que era um presente de admirador. Fiquei muito sensibilizado com o gesto de ofereci-lhe uma quantia em dinheiro como prova de meu agradecimento. Abraçamo-nos fraternalmente e nos despedimos.

O mesmo gesto de “amizade” repetiu-se nas semanas seguintes, sempre com mesmo resultado, um dinheirinho para pagar a passagem e comer alguma coisa. Certa feita, dormi até mais tarde e não pude recebê-lo pessoalmente. Mas pedi que lhe entregassem uma quantia um pouco menor que a habitual. Ele recebeu o dinheiro mas se recusou a deixar o “presente”. Dias depois, tentava estacionar o meu carro na Aliança Francesa, quando vi que ele estava à espreita. Quem teria dado o meu endereço de trabalho? Fui logo dizendo que não queria a mercadoria. Ele retrucou com insolência que perdera o seu tempo me esperando e agora seria obrigado a voltar para casa de mãos abanando. Toda a doçura inicial se desvanecera. Agora era um homem violento, desapontado por não receber o dinheiro esperado. Vi que minha bondade inicial, espontânea, caritativa tinha se transformado num compromisso sucessivo e implacável. O prazer que sentia em ajudá-lo transformou-se num desagradável incômodo. Resultado: cortei o mal pela raiz.

Esse episódio me fez lembrar um texto de Jean-Jacques Rousseau no livro Devaneios de um Caminhante Solitário. O filósofo defende a tese de que as boas ações são a expressão da liberdade do benfeitor. Devem ser sempre motivo de prazer, de alegria. Quando a caridade deixa de ser espontânea para sucumbir às pressões externas, torna-se uma dívida e perde toda a sua essência. Esvazia-se em si mesma.

Acredito na solidariedade. Acho que cada cidadão tem a responsabilidade social de ajudar o seu semelhante. Penso que os brasileiros deveriam dedicar-se mais ao voluntariado e à ação humanitária. Essa é uma inegotável fonte de felicidade, que produz endorfina em abundância. Além disso, o engajamento nos movimentos sociais aprimora a democracia e fortalece o Estado de Direito. Entretanto, é preciso ter cuidado com os exploradores da boa-fé alheia, pessoas inescrupulosas que se aproveitam de sentimentos como o altruísmo para desenvolver atividades lucrativas nada compatíveis com os ideais religiosos ou éticos.

É preciso compreender que caridade não é obrigação, mas opção. Caracteriza-se pela ausência de coerção externa. A decisão tem de ser espontânea, fruto da vontade consciente de ajudar o próximo com seu trabalho ou com seus bens, sem nada pedir em troca. Por isso é preciso ter cuidado para escapar das armadilhas baseadas na chantagem emocional, no medo do inferno, na insistência do pedido ou nos boletos de cobrança que todos os dias chegam às nossas casas. Lembre-se, amigo: doador não é devedor, nem está sujeito a execuções judiciais ou divinas. Se quer ajudar, basta seguir o chamado de seu coração. Você estará no caminho certo.