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sábado, 2 de maio de 2009

COMO TER SUCESSO NA VIDA SEM ABRIR O LIVRO

GEORGE SARMENTO
Chego ao VIII Congresso Nacional de Direito Público para o lançamento de Ética Ambiental, escrito por duas simpáticas professoras que tiveram a gentileza de me convidar para escrever a orelha do livro. Dirijo-me a um animado grupo de juristas brasileiros, ciceroneado pelo procurador da república Marcelo Toledo. A conversa gravitava em torno da variada gastronomia servida nos restaurantes de Maceió. Os visitantes pareciam mais interessados nos apetitosos pratos do Wanchaco, Carne do Sol do Picuí e Bodega do Sertão do que pelos complexos temas jurídicos debatidos no colóquio. E tinham razão.
De repente alguém diz:
– George, a orelha do livro está muito bem escrita. Parabéns!
Uma das cabeças coroadas da doutrina pátria interrompe o bate-papo e objeta com empáfia:
– Por que você não escreveu o prefácio? Tinha que escrever o prefácio!
Encarei o interlocutor com olhar condescendente de quem sabe das coisas e respondi de forma incisiva:
– A orelha é a parte mais lida do livro! A orelha é a parte mais lida de qualquer livro. De qualquer livro!, enfatizei.
Outro jurista, igualmente coroado e ovacionado pela estudantada, concorda com a minha tese. Explica que passou anos escrevendo um livro profundo, de incontestável valor científico. Ninguém leu. Na terceira edição ainda era um autor inédito. Aí teve a luminosa idéia: inserir uma orelha na capa. Resultado: as vendas dobraram, dobraram não, triplicaram. A obra tornou-se um best-seller. Leitura obrigatória em todas as faculdades de direito do país. Perguntei-lhe se valeu a pena. Deu um longo trago em seu charuto cubano, ajeitou o suspensório de seda pura e disse em alto e bom som:
– Para falar a verdade, continuo tão inédito como antes, talvez até mais. A diferença é que meus supostos leitores fingem que conhecem a obra e saem por aí citando as informações da orelha. E isso tem efeito multiplicador. Todo mundo compra e ninguém lê. Um sucesso!
Lembrei-me de um episódio curioso. Um amigo estava disposto a fazer carreira no serviço público. Passou no concurso e continuou estudando feito um louco. Fez mestrado, doutorado, línguas estrangeiras. Achou que seria promovido, que seriam reconhecidos os seus esforços para o engrandecimento da repartição pública. Nada. Os chefes ficaram ofendidíssimos com os seus conhecimentos. "Quem ele pensa que é? Quem ele pensa que é?", perguntavam enfurecidos, com babas de cães raivosos. O cargo terminou sendo ocupado por um espertalhão de poucas luzes e muita malandragem. Meu amigo decidiu mudar de vida. Rasgou Machado de Assis, Victor Hugo e Albert Camus. Pediu exoneração e passou a ler avidamente as orelhas de todos os livros que encontrava pela frente. Leu centenas delas. Hoje é presidente de uma conhecida multinacional. Um homem rico.
Outro amigo foi convidado para fazer uma conferência num congresso de filosofia. Comprou dois livros de Nietzche, edições de bolso. Leu as orelhas e fez uma belíssima exposição, arrancando palmas até mesmo dos catedráticos. Depois foi visto no botequim da esquina aos beijos com uma belíssima aluna de ciências sociais, que não cansava de admirar sua vastíssima cultura. A cada trago de cachaça com mel, a beldade gritava embevecida: "Assim falou Zaratrusta! Assim falou Zaratrusta!". No dia seguinte os livros foram encontrados na lixeira do auditório, imaculados como uma vestal romana.
Eis a verdade irrefutável: os empresários de sucesso, os oradores que arrastam multidões, os clérigos mais venerados, não são eruditos, mas sofisticados leitores de orelhas. O resto é conversa fiada.
Outro dia eu exaltava os sermões do padre Antônio Vieira nos corredores do Forum de Maceió.
– Que estilo, que brilhantismo, que domínio da língua portuguesa, dizia com entusiasmo.
– Um saco, contestou a loira de fechar o trânsito. – Ninguém entende nada do que esse homem escreve. Balançou os cabelos oxigenados e alisados na chapinha japonesa: – Você precisa assistir a uma pregação do padre Fábio de Melo. Este sim, tem conteúdo. Lindo, maravilhoso!, acrescentou com olhos lúbricos de gata no cio.
Na época eu desconhecia esse fenômeno da mídia católica. Atônito, perguntei:
– Mas é padre mesmo, de batina, igreja e tudo? Ele canta ladainhas, hinos, essas coisas que todo padre faz?
– É padre de televisão, professor! O senhor vive em que século? Batina, já era! Ele anda na moda, malhado, roupa de grife, relógio rolex, um charme. E tem mais: é um excelente cantor. No seu repertório há músicas sertanejas e até Fábio Júnior, não é o máximo? As meninas ficam loucas quando ele fala, apaixonadíssimas pelo fruto proibido. Deu uma paradinha, e continuou: - Ah, tem uma coisa, o padre detesta ser assediado pelas meninas.
Fiquei pensando na atriz hollyoodiana que fazia topless em Ipanema e foi cercada pelos banhistas que gritavam "gostosa, gostosa!". Um escândalo. Ela ficou bravíssima, sentiu-se desrespeitada, vilipendiada em sua intimidade. Não admitia que adolescentes, velhinhos tarados, vendedores de biscoito polvilho e de chá mate apreciassem os seus fartos seios. Ninguém entendeu nada. Ora, se o padre se veste de garoto do Leblon, faz caras e bocas, exala sedução por todos os poros, por que detesta as declarações de amor das fãs apaixonadas pelo homem de carne e osso? Para mim esse é um mistério inescrutável.
A essa altura o leitor pode pensar: - "é despeito". E é mesmo, confesso isso sem pudor ou medo da fogueira do inferno. Mas o que eu queria dizer é que os conhecimentos teológicos são secundários, meros adereços, ornamentos retóricos que não atraem o interesse da platéia. Pior, são poderosos soníferos para os fiéis, mais fortes que uma dose cavalar de Lexotan. A maioria gosta mesmo é do belo, do espalhafatoso, do sedutor. A parte mais esperada da pregação são sempre os conselhos auto-ajuda, do tipo: "tenha pressa em ser feliz", "seja o que é não o que as pessoas querem que você seja".
Vivemos a era da superficialidade intelectual. Se quiser ter sucesso na vida, não perca tempo: comece a ler hoje mesmo as orelhas dos livros. Eu já comecei a fazer isso. Os resultados são surpreendentes. Os marxistas não lêem Marx, os kelsenianos não lêem Kelsen, os freudianos não lêem Freud, mas causam frisson por onde passam. O leitor de orelhas está apto para dar entrevistas, proferir discursos, escrever teses e, até mesmo, tornar-se guru espiritual de milionárias ociosas.
É imprescindível ter uma vasta biblioteca, com livros impecavelmente arrumados. Uma boa biblioteca exerce grande fascínio sobre os incautos. Lembre-se que os livros jamais devem ser lidos. Senão estraga tudo. Eu tinha meus oito, nove anos, quando presenciei uma cena que ilustra essa assertiva. Meu pai tentava convencer um cliente a assinar o contrato de honorários. Perdeu muito tempo em detalhes técnicos, desnecessários. O cliente hesitava. Queria garantias de que ganharia a causa, de que seria absolvido pelo tribunal do júri. Foi aí que meu pai entendeu o espírito da coisa. Pediu-lhe que olhasse de alto a baixo a sua estante recheada de obras jurídicas, todas vermelhas de capa dura. O homem ficou impressionado, balançava a cabeça feito catenga. Meu pai bateu na testa várias vezes com a mão direita e disse: " - Está tudo aqui, na cachola! O senhor acha que com esse cabedal vou perder a sua causa?". Convenceu o cliente e meteu os honorários no bolso. Se ganhou a causa? Ah, essa é outra história...
Enquanto os eruditos são considerados chatos, pernósticos e entediantes, os leitores de orelha são simpáticos, descontraídos, aceitos em todas as rodas sociais. Eles são incapazes de perguntas embaraçosas sobre temas herméticos. Animam horas a fio um papo cabeça falando muito sem dizer nada. Comentam autores que nunca leram como se fossem vizinhos de casas geminadas ou coleguinhas de jardim de infância. Os seus vastos conhecimentos do nada roubam a cena e arrancam suspiros de admiração.
Mas, atenção! Ler orelhas exige método e disciplina. É preciso saber de cor e salteado o título da obra, o nome do autor, o tema abordado e algumas frases de efeito. A ausência de um desses elementos é fatal. Você pode ser desmascarado, taxado de impostor, jogado à execração pública. Mas se você seguir as regras direitinho estará pronto para aproveitar as delícias que a vida lhe reserva. Boa sorte!
Eis alguns dos comentários sobre o artigo:
CARTA DE UMA CONFESSA LEITORA DE ORELHAS
LUIZA AMÁLIA
Caro professor. Realmente essa sua impagável crônica me rendeu dores de cabeça de tanto rir! Estás cada vez mais cômico. Bem, quanto aos leitores de orelhas de livros, esta é uma crescente espécie de gente, na qual me incluo, diga-se de passagem. É tanta coisa para se fazer hoje em dia, tanto blog interessante pra se acompanhar, e-mails pra responder, que aqueles velhos-livros-novos continuam na cabeceira intocados. Não pela malandragem, mas mesmo pela abundância de opções de entretenimento.
Para aqueles que querem lograr êxito com a fraude literária, indico um bom livro (adorei o que li na orelha, numa rápida passada na livraria para comprar uma revista sobre novelas) "Comment parler des livres que l’on n’a pas lus" (Como falar de livros que não se leu). De fato não o li, mas como boa leitora de orelhas que sou (e das críticas literárias de jornais de circulação), sei que o autor é Pierre Bayard (que, pelo nome, é um francês que escreve livros!). Bem... quem não o quiser ler, que passe ao menos uma vista pela orelha!
O LEITOR DE ORELHAS NA FILOSOFIA E NA LITERATURA
COARACY FONSECA
Caro George,
Ri bastante, o teu escrito é profundo e agradável. A questão é antiga. Sêneca, em seu belo “Sobre a Tranqüilidade da Alma”, perece-me que foi tomado por similar inspiração, ao afirmar: “Mesmo os gastos para os estudos, que são os mais bem empregados, são tanto mais racionais quanto mais moderados. Para que inumeráveis livros e bibliotecas de que o dono nunca lê por inteiro, com custo, apenas os índices?” O mestre estóico era um leitor voraz, mas um homem prático.
Se a função do intelectual for apenas de ler e “produzir” idéias ele não deve angustiar-se. Um dia a mensagem impressa surtirá algum efeito, não se pode precisar o tempo e o espaço. Mas, se ele deseja transformar o mundo, há de tornar-se um homem de ação. Partir para o embate. Infelizmente, com os leitores de orelha de livro: os mercadores de ilusões.
Sou um leitor despretensioso, não busco idéias originais ou soluções que nunca foram pensadas, se é que existem. Mas, na adolescência, li uma obra do mestre Alceu Amoroso Lima, O Tristão de Ataíde, que me tocou profundamente, com o simples pensamento: "De que vale pôrum pouco de ordem no espírito; de que vale sofrer a influência do ambiente que muda - se não fazemos repercutir, fora de nós, no terreno da ação, aquilo que fomos preparar no fundo de nós mesmos ou que respiramos no ar que nos cerca? De que vale o homem mergulhar dentro de si mesmo ou absorver, como uma esponja, as águas que o cercam - se não é para trazer o seu esforço humano... à obra da reconstrução, ao trabalho de auxiliar os outros (In Espírito e Mundo, 1936). Um abraço.
CARTA DE UMA LEITORA DE LIVROS (ORELHA, PREFÁCIO, TEXTO COMPLETO)
LUCIA
Caro George,
Certa vez ouvi um amigo na faculdade dizendo que fazia alguns trabalhos usando apenas o conteúdo das orelhas dos livros indicados, nesse momento me perguntei: Será que os professores são tão bobos assim?confesso que não ri com seu texto, pelo contrário, constatei uma realidade crescente: a de falsos gênios, falsos conhecedores das "coisas", falsos detentores do saber, e genuinos construtores do caos no mundo. Sim, porque se não detem o conhecimento serão facilmente manipulados por que o tem, claro que posso está errada.
Além disso, sem um profundo conhecimento das coisas como poderão sanar as proprias necessidades? Entenda-se necessidade no que se refere desde o entedimento do que se ler até a busca por alternativa para preservar a vida na terra. Acho que peguei pesado "né"?
Provavelmente meu amigo cresça na vida lendo orelhas, constatei isso no seu texto, detendo apenas um nada do que alguém se empenhou para escrever - o titulo - enquanto eu, leitora chata, do tipo que grifa todo o livro, fique aqui, desempregada, desconhecida, desiludida, desesperada por não poder contribuir para a melhoria do "mundo" com aquilo que empenhei tanto para apreender e apreender.
Você me abriu os olhos... Mas acho que é tarde demais, não me contentaria com uma orelha, sabendo que existe um monte de caracteres esperando por mim nas paginas de um livro qualquer.
Amo Pe. Fábio de Mello, Gosto de Antonio Vieira...Creio também que a diferença nos discursos de ambos seja o resultado das leituras de orelhas feitas pela maioria dos leitores desde o Barroco até hoje.
rsrs
ABRAÇOS
5 de Maio de 2009 20:12

5 comentários:

Isaac Sandes disse...

Beleza George.

Me parece que o leitor de orelhas, está em matéria de cinismo e canastrice, muito próximo de um valorizador. Ele, é que pode se chamar de Nariz de Cera.

Luiza Amália disse...

Caro professor. Realmente essa sua impagável crônica me rendeu dores de cabeça de tanto rir! Estás cada vez mais cômico. Bem, quanto aos leitores de orelhas de livros, esta é uma crescente espécie de gente, na qual me incluo, diga-se de passagem. É tanta coisa para se fazer hoje em dia, tanto blog interessante pra se acompanhar, emails pra responder, que aqueles velhos-livros-novos continuam na cabeceira intocados. Não pela malandragem, mas mesmo pela abundância de opções de entretenimento. Para aqueles que querem lograr êxito com a fraude literária, indico um bom livro (adorei o que li na orelha, numa rápida passada na livraria para comprar uma revista sobre novelas) "Comment parler des livres que l’on n’a pas lus" (Como falar de livros que não se leu). De fato não o li, mas como boa leitora de orelhas que sou (e das críticas literárias de jornais de circulação), sei que o autor é Pierre Bayard (que, pelo nome, é um francês que escreve livros!). Bem... quem não o quiser ler, que passe ao menos uma vista pela orelha!

Anônimo disse...

Caro George,

Ri bastante, o teu escrito é profundo e agradável. A questão é antiga. Sêneca, em seu belo “Sobre a Tranqüilidade da Alma”, perece-me que foi tomado por similar inspiração, ao afirmar: “Mesmo os gastos para os estudos, que são os mais bem empregados, são tanto mais racionais quanto mais moderados. Para que inumeráveis livros e bibliotecas de que o dono nunca lê por inteiro, com custo, apenas os índices?” O mestre estóico era um leitor voraz, mas um homem prático.

Se a função do intelectual for apenas de ler e “produzir” idéias ele não deve angustiar-se. Um dia a mensagem impressa surtirá algum efeito, não se pode precisar o tempo e o espaço. Mas, se ele deseja transformar o mundo, há de tornar-se um homem de ação. Partir para o embate. Infelizmente, com os leitores de orelha de livro: os mercadores de ilusões.

Sou um leitor despretensioso, não busco idéias originais ou soluções que nunca foram pensadas, se é que existem. Mas, na adolescência, li uma obra do mestre Alceu Amoroso Lima, O Tristão de Ataíde, que me tocou profundamente, com o simples pensamento: "De que vale pôr
um pouco de ordem no espírito; de que vale sofrer a influência do ambiente que muda - se não fazemos repercutir, fora de nós, no terreno da ação, aquilo que fomos preparar no fundo de nós mesmos ou que respiramos no ar que nos cerca? De que vale o homem mergulhar dentro de si mesmo ou absorver, como uma esponja, as águas que o cercam - se não é para trazer o seu esforço humano... à obra da reconstrução, ao trabalho de auxiliar os outros (In Espírito e Mundo, 1936).

Um abraço, Coaracy Fonseca.

Adrualdo Catão disse...

Ah! Agora sim vou mudar de vida!!!

Ótimo texto.

Abraços!

Paula: pesponteando disse...

Caro Jorge,

Certa vez ouvi um amigo na faculdade dizendo que fazia alguns trabalhos usando apenas o conteúdo das orelhas dos livros indicados, nesse momento me perguntei: Será que os professores são tão bobos assim?
confesso que não ri com seu texto, pelo contrário, constatei uma realidade crescente: a de falsos gênios, falsos conhecedores das "coisas", falsos detentores do saber, e genuinos construtores do caos no mundo. Sim, porque se não detem o conhecimento serão facilmente manipulados por que o tem, claro que posso está errada. Além disso, sem um profundo conhecimento das coisas como poderão sanar as proprias necessidades? Entenda-se necessidade no que se refere desde o entedimento do que se ler até a busca por alternativa para preservar a vida na terra. Acho que peguei pesado "né"?
Provavelmente meu amigo cresça na vida lendo orelhas, constatei isso no seu texto, detendo apenas um nada do que alguém se empenhou para escrever - o titulo - enquanto eu, leitora chata, do tipo que grifa todo o livro, fique aqui, desempregada, desconhecida, desiludida, desesperada por não poder contribuir para a melhoria do "mundo" com aquilo que empenhei tanto para apreender e apreender.
Vc me abriu os olhos...mas acho q é tarde demais, ñ me contentaria com uma orelha, sabendo q existe um monte de caracteres esperando por mim nas paginas de um livro qualquer.

Amo Pe. Fábio de Mello, Gosto de Antonio Vieira...creio tbm q a diferença nos discursos de ambos seja o resultado das leituras de orelhas feitas pela maioria dos leitores desde o Barroco até hj. rsrs

ABRAÇOS