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quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

SOBRE A ARTE DE FLANAR

GEORGE SARMENTO
Quando me perguntam se pratico esportes regularmente, respondo: caminhadas. Ainda criança, costumava passar as manhãs no Clube Fênix Alagoana onde jogava voleibol, futebol e outros esportes coletivos. Na rua em que morava, no bairro do Farol, havia campinhos improvisados que eram palcos dos populares “rachas” reunindo meninos da redondeza, ricos e pobres, sem discriminações. O abismo social ainda não nos tinha sido apresentado pela sociedade capitalista.

Já adulto, os amigos foram se dispersando e os encontros escassearam-se até desaparecerem completamente. Alguns mergulharam nos intermináveis compromissos do casamento, outros engordaram, muitos sucumbiram ao sedentarismo, sem falar daqueles que simplesmente sumiram sem deixar vestígios de suas histórias de vida.

Foi então que comecei a praticar esportes individuais, sobretudo caminhadas diárias à beira mar. Nunca fui muito resistente a corridas, embora hoje tenha mais fôlego do que antes – o que para mim é mais um mistério insondável da existência humana. Eu tinha 24 anos, era promotor de justiça e havia construído um simpático chalé na praia de Guaxuma. Estava em pleno gozo das prerrogativas que a liberdade e a independência financeira podiam propiciar a uma pessoa de minha idade. E adorava caminhar... Pés descalços na areia macia, vento acariciando os cabelos e a contemplação da paisagem marinha.

Nunca caminhei para emagrecer, tonificar os músculos, fortalecer as funções cardíacas ou aumentar os meus dias de vida no Planeta Terra. As caminhadas serviram muito mais para exercitar o cérebro do que o corpo. As melhores idéias que tive se revelaram no curso de uma boa caminhada. A solução de muitos problemas existenciais, profissionais e financeiros aconteceu nas mesmas circunstâncias. São momentos mágicos em que entramos em perfeita sintonia com a natureza.

Retifico o que disse acima. Andar não é um esporte, mas um estilo de vida. Tem gente que anda para não ter um enfarte, para se entorpecer de endorfina ou para conter a agressividade. O que faço é diferente. Aproxima-se muito do que denominamos flanar, isto é, caminhar sozinho, sem rumo, observando calmamente a paisagem urbana ou rural (no meu caso, marinha), com a mente livre e o corpo relaxado.

O flâneur foi eternizado pelo poeta francês Charles Baudelaire no ensaio intitulado O Pintor da Vida Moderna, publicado no Século XIX. Personagem tipicamente parisiense, o flâneur é descrito como um caminhante anônimo que observa apaixonadamente o espetáculo da vida, que recolhe impressões do cotidiano e as eterniza no papel quando ainda se encontram bem vivas em sua memória. Graças a ele, foram criados os bulevares, os jardins, os passeios públicos, lugares onde a paisagem “feita de gente viva” se mistura ao esplendor das árvores e flores. Mesmo no Brasil contemporâneo, áreas urbanas são especialmente projetadas para os praticantes de caminhadas. São espaços frequentados por pessoas de todas as idades, com os mais diversos interesses.

A França produziu flâneurs como Diderot, Voltaire e Balzac, escritor que recolhia das ruas a maioria dos personagens de seus romances e conseguiu traçar um dos mais fiéis retratos da sociedade de sua época. Recentemente li Os Devaneios de um Caminhante Solitário, o último livro escrito por Jean-Jacques Rousseau. Seu objetivo era descrever o estado habitual da alma durante as caminhadas solitárias pelos arredores de Paris. O método é simples: manter a mente livre por inteiro para que as idéias e devaneios sigam suas inclinações, sem resistência e sem dificuldade.

O filósofo chegou a declarar que “essas horas de solidão e de meditação são as únicas do dia em que eu sou eu mesmo por inteiro e pertenço a mim sem distração, sem obstáculo, e em que posso dizer de verdade que sou o que a natureza quis”. A obra de Rousseau inaugura uma nova estética do caminhar como autoconhecimento, sendo precursora de peregrinações como o Caminho de Compostela e a escalada de Machu Picchu.

Em seu livro Meditar Caminhando, Thich Nhat Hahn, um monge vietinamita exilado na França, também fala dos benefícios psíquicos e físicos das caminhadas lentas, contemplativas, plenas de pensamentos positivos e exercícios respiratórios. Já testemunhei seguidores do líder budista aplicar suas técnicas em passeios pelo Jardim Botânico do Rio de Janeiro, com resultados maravilhosos para a saúde.

Vivemos num mundo dominado pelo pragmatismo. As pessoas estão ávidas para consumir poções mágicas de vitalidade. Prolongar a juventude, manter-se atraente, gozar de saúde são aspirações legítimas e podem ser perseguidas com avidez por aqueles que aspiram melhorias em sua qualidade de vida. Pergunto: para que as esteiras mecânicas se o mundo está ao alcance de todos? As caminhadas não são meros instrumentos de fortalecimento do corpo físico. O movimento pelo movimento de nada vale se não estimular a inteligência. A lição que nos deixa a arte de flanar é que as caminhadas são prazeres democráticos e benéficos tanto para o corpo como para a alma. E,ainda por cima, não custam nada!

COTIDIANO EM MOVIMENTO

GEORGE SARMENTO
Cotidiano, de Chico Buarque de Holanda, é um clássico da música popular brasileira que fez muito sucesso nos anos 70 pela mensagem subliminar de inconformismo com a sufocante rotina de alguns casais. A narrativa não poderia ser mais clara: “todo dia ela faz tudo sempre igual”. E por aí segue com a descrição dos atos repetitivos, previsíveis e entediantes de sua mulher. O paradoxal é que o tédio do personagem não é provocado pela indiferença da fêmea, mas por um conjunto de manifestações de afeto que ela lhe dirige, possivelmente para manter acesa a chama do amor.
Quase sempre a palavra cotidiano tem uma conotação negativa, estagnante. Geralmente é usada para descrever a acomodação das pessoas a hábitos adquiridos pela repetição mecânica ou inconsciente. Funciona como o escudo protetor daqueles que não querem deixar a zona de conforto para enfrentar os riscos de uma jornada incerta e inusitada. Representa o lado estático da existência humana, a sensação de segurança que experimentamos ao percorrer caminhos conhecidos que nos levam ao destino esperado, sem surpresas ou sobressaltos.
Há pessoas que não quebram sua rotina por nada nesse mundo. Traçam uma rota para as suas existências e se recusam a tomar atalhos, arriscar novas trilhas, mergulhar no desconhecido. Qualquer desvio é motivo para inseguranças, temores, pânico. Acreditam ser possível proteger-se das incertezas cada vez mais presentes na sociedade contemporânea, tão complexa e fluida. São vagões que jamais saem dos trilhos.
Muitas vezes é preciso que um acontecimento trágico nos desperte para a beleza da vida. Para as experiências maravilhosas que podemos experimentar se tivermos coragem de mudar de atitude, de vermos as coisas sob outra perspectiva. Somos obrigados a conviver com perdas. Essa é a lei da existência. Minha mãe partiu prematuramente aos 50 anos de idade, vítima de um derrame cerebral fulminante, deixando para trás os filhos, a música e a literatura que tanto amava. Meu pai foi arrancado da vida por um acidente automobilístico brutal, no auge de sua carreira profissional – ainda cheio de sonhos e energia. Agora mesmo meu tio Mendonça Neto luta bravamente contra um câncer com a mesma coragem com que combateu a corrupção e os desmandos de uma elite parasita que há séculos dilapida impiedosamente o Estado de Alagoas.
Nenhum desses acontecimentos poderia ser previsto por mim ou por quem quer que seja. O importante é que essas fatalidades não me tornaram um pessimista, invejoso ou descrente. Antes um otimista, como o Cândido, de Voltaire. Sou uma pessoa comum. Tenho virtudes e defeitos. Mas a cada dia reforça em mim a convicção de que é preciso evoluir moral e espiritualmente. Luto muito contra a dificuldade de dizer não, o injustificado sentimento de culpa e o altruismo exagerado que insiste em reconhecer o direito dos outros em detrimento dos meus. Enfim, nada que não possa ser superado através de reflexões racionais e objetivas.
Há pessoas que simplesmente são incapazes de resistir às frustrações de expectativas. Não percebem que a vida tem várias portas e muitas delas podem nos trazer felicidade. Simplesmente não sabem lidar com a transitoriedade das coisas. Apegam-se a ilusões como o poder, a bajulação, os bens materiais, a notoriedade, mas não se preparam para as adversidades que todas as mudanças proporcionam. Não sabem enfrentar o ostracismo, a solidão, o esquecimento e a ingratidão. Fujo desse estigma e me recuso a assumir a condição de vítima de quem quer que seja.
Em pleno século XIX, Baudelaire já afirmava que a modernidade é o transitório, o efêmero e o contigente. Nada é permanente, sólido, imutável. A vida não pode se cristalizar em hábitos que produzem a falsa sensação de segurança. As nossas certezas viraram pó. O que hoje é novidade, amanhã será obsoleto. Os castelos inespugnáveis podem se transformar num amontoado de grãos de areia.
Eis o que eu queria dizer: O COTIDIANO TEM DE ESTAR EM PERMANENTE MOVIMENTO! Nada impede que a rotina modorrenta possa se transformar na exploração do novo, do desconhecido e do belo. Como adotar um novo paradigma para as nossas vidas? Uma amiga muito querida costuma dizer que “a criatividade é infinita”. Ela tem razão. Não há respostas prontas. Cada um tem o seu ritmo e intuição, a voz interior que insiste em nos lançar no labirinto desse mistério que se chama vida.
Feliz 2010!