quinta-feira, 2 de outubro de 2025

CONCURSO PÚBLICO COMO DIREITO FUNDAMENTAL

George Sarmento 

A igualdade de oportunidades é uma das maiores conquistas do constitucionalismo contemporâneo. Ela impõe aos Estados o dever de assegurar os mesmos pontos de partida para o acesso a bens e serviços de boa qualidade, essenciais ao pleno desenvolvimento da personalidade humana. A partir daí cada cidadão deve pautar sua trajetória de vida de acordo com seus talentos, ambições e sonhos.

O concurso público é um poderoso mecanismo de efetivação da igualdade de oportunidades. É a garantia de acesso a cargos públicos sem qualquer privilégio ou discriminação. O modelo adotado pela Constituição Federal de 1988 tem como principal fundamento a “meritocracia”. O processo de recrutamento dos funcionários passou a seguir critérios igualitários, objetivos e probos. Isso representa o rompimento com a prática nociva do clientelismo e do compadrio, que mantinha estruturas de poder através da descarada distribuição de cargos entre apaniguados políticos, em completo desrespeito aos postulados republicanos.

Embora seja um instituto jurídico de indiscutível importância para o fortalecimento da Administração Pública e do próprio Estado Democrático de Direito, tem sido pouco estudado na academia. No Brasil, os textos sobre o tema são superficiais e insuficientes para compreender a complexidade dos procedimentos e o catálogo de valores constitucionais que orientam o concurso enquanto instrumento de acessibilidade ao serviço público.

Agora essa lacuna foi suprida com a publicação de Concursos Públicos no Direito Brasileiro, de autoria do professor Fábio Lins. O tema é tratado sob o prisma axiológico numa clara tentativa de desenvolver uma teoria original e definitiva, construída sobre bases sólidas. O autor parte da premissa de que o concurso está assentado sobre dois pilares principiológicos: a valorização do mérito e a eficiência administrativa. A partir daí desenvolve uma sofisticada argumentação para demonstrar os parâmetros que estruturam a instituição no sistema jurídico brasileiro.

A obra é produto de longos anos de estudos teóricos e práticos, sobretudo da longa militância do autor como procurador de Estado e professor universitário. A proliferação de concursos públicos em todos os níveis federativos tem provocado verdadeira enxurrada de processos judiciais e administrativos. A litigiosidade é ampla. Envolve desde exigências contidas em editais, conflitos relacionados às provas escritas e exames psicotécnicos, até o direito de nomeação; isso para ficar em alguns exemplos.

Fábio Lins ajuda a resolver questões controvertidas que surgem no recrutamento de servidores através de concursos públicos. Sobretudo quando envolvem a interpretação de princípios jurídicos dotados de grande grau de abstração. Escrita com linguagem clara, fundamentada no melhor da doutrina nacional e estrangeira, a obra é didática. Pode ser lida com facilidade tanto por operadores do direito como por estudantes universitários.

Tenho acompanhado de perto o percurso acadêmico de Fábio Lins desde a graduação em direito, quando tive a honra de ser seu professor na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Alagoas. Naquela época já se destacava por sua inteligência, serenidade e disciplina. Ao longo do tempo aprimorou sua formação científica no Mestrado em Direito da UFPE e, depois, no programa de doutoramento da tradicionalíssima Universidade de Salamanca, na Espanha. Atualmente é professor da Faculdade de Direito de Alagoas/UFAL, onde desenvolve incansavelmente diversos projetos de pesquisa.

As ideias desenvolvidas na obra contribuirão para que o leitor tenha uma visão lúcida da estrutura axiológica e normativa que fundamenta o recrutamento de funcionários públicos no Brasil. A nomeação de funcionários qualificados e comprometidos com a tutela do Erário é a fórmula para a construção de uma Administração Pública proba e eficiente. Espero que a obra seja inspiração para todos que acreditam que a igualdade, a moralidade administrativa e a transparência são valores republicanos inegociáveis. Eles são o caminho seguro para a concepção de concursos públicos sérios, racionais e democráticos, tendo na meritocracia seu principal fundamento.

Maceió, 2015.



quarta-feira, 1 de outubro de 2025

AÇÃO POPULAR E MEIO AMBIENTE


George Sarmento

A ação popular é uma das mais importantes expressões da cidadania contemporânea, uma trincheira de combate às atividades governamentais nocivas ao patrimônio público, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e aos bens culturais. Também promove o exercício da democracia participativa, legitimando o cidadão comum para a tutela dos interesses primários da coletividade.

A nobreza quixotesca da ação popular está no fato de que o cidadão não luta por interesses pessoais, egoísticos. Não aufere lucros, votos ou vantagens pessoais. A intervenção é pro populo, em defesa do povo, do bem comum. Busca a eficiência dos serviços públicos, a melhoria da qualidade de vida, o uso racional dos recursos do erário.

A globalização neoliberal tem invadido os países periféricos e imposto valores como o individualismo, a excelência dos serviços e a competitividade selvagem. Não há mais espaço para as grandes utopias nem para a solidariedade social. O cenário político brasileiro - marcado por escândalos financeiros, fraudes em licitações e outras formas de corrupção, desestimula a participação popular nas decisões governamentais. Enfraquece o debate político e envolve os cidadãos num clima de apatia e descrença. Isso se reflete no baixo número de ações populares ajuizadas no Brasil.

Considero o controle popular dos atos administrativos um dos mais sólidos fundamentos do Estado Democrático de Direito. A luta contra a improbidade na gestão dos recursos públicos, sobretudo práticas como o clientelismo, nepotismo, tráfico de influência e abuso de poder é o caminho mais curto para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

A propositura de ações populares em defesa da moralidade administrativa, do meio ambiente e do patrimônio cultural é uma contundente demonstração de engajamento do cidadão na defesa dos valores primários da coletividade. Espelha alto nível de consciência política e o comprometimento com a tutela do patrimônio público. 

É a reação do povo contra atos administrativos nocivos ao bem comum, prejudiciais ao erário e aos direitos essenciais à preservação dos ecossistemas, dos monumentos históricos, das obras artísticas, dos espaços estéticos, paisagísticos e turísticos.

Ao assegurar a qualquer cidadão a prerrogativa para o ajuizamento de ação popular, a Constituição Federal consagrou o compromisso republicano de proteção aos cofres públicos, aos bens de uso comum do povo e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Ou seja, tornou cada cidadão brasileiro um legítimo fiscal do Tesouro, dos programas sociais e das políticas públicas. Além disso, o isentou do pagamento de custas judiciais, honorários de sucumbência e impôs o duplo grau de jurisdição às sentenças que lhe forem desfavoráveis. Com isso, o controle externo da Administração, tradicionalmente confiado a instituições como os Tribunais  de Contas, Poder Legislativo e Ministério Público, amplia-se e assume dimensão verdadeiramente democrática.

Em outras palavras, a configuração constitucional da ação popular estimula o exercício da cidadania e a fiscalização da gestão publica. Coloca à disposição de cidadãos comuns a possibilidade de buscar em juízo a anulação de atos administrativos (contratos, licitações, licenças ambientais, alvarás de demolição etc.) prejudiciais aos interesses coletivos. Daí a necessidade de um amplo movimento cívico para encorajar a sociedade civil a sair da letargia para assumir uma postura mais combativa contra as práticas administrativas ímprobas e antiecológicas.

Essa é a missão da obra Ação Popular - rumo à efetividade do processo coletivo: apresentar de forma clara e didática o procedimento jurídico-processual da ação popular. Mas não é só isso.  Rosmar Rodrigues de Alencar desenvolve teses bastante originais sobre o tema, apresenta profunda pesquisa de jurisprudência e analisa magistralmente a trajetória dessa garantia constitucional no sistema jurídico brasileiro.

Desde 2001, tenho acompanhado com grande curiosidade e entusiasmo a concepção deste livro.  A semente foi lançada com a elaboração de uma singela monografia de conclusão do curso de graduação em Direito. Convocado para compor a banca examinadora, fiquei impressionado com a bravura e determinação com que autor defendeu suas idéias. Arguido com extremo rigor  pelos processualistas presentes à sessão, o então Capitão do Corpo de Bombeiros Militar  de Alagoas, não se deixou abater pelas críticas e, um a um, desmontou todos os argumentos contrários à sua tese principal: a desnecessidade de comprovar a condição de eleitor quando o objeto da  actio popularis fosse matéria ambiental.

Estimulado pela repercussão de sua pesquisa, decidiu publicara 1a edição de Ação Popular,  obra que logo se tornou referência doutrinária para os estudiosos da matéria. Premido pelos desafios desua vida profissional, decidiu descortinar novos horizontes. Aprova-do brilhantemente nos mais disputados concursos públicos do país, Rosmar emprestou sua inteligência à Defensoria Pública Federal e ao Ministério Público do Rio  Grande do Norte. Anos depois encontra sua verdadeira vocação na Magistratura Federal. Retoma então o gosto pela pesquisa e aceita o desafio de atualizar e ampliar a sua pesquisa sobre o tema. Agora, mais maduro, sente-se preparado para produzir um livro  de fôlego, em que as questões controvertidas são esmiuçadas e submetidas a rigoroso tratamento teórico.

Fiel  às suas convicções acadêmicas, 0 autor lança um novo olhar sobre o conceito de cidadania. Demonstra com sólidos argumentos que a exigência de título de eleitor (parágrafo 3°, do artigo 1°, da Lei Federal n.o 4.717/1965) como condição indispensável à propositura de ação popular não foi recepcionada pela Constituição de 1988. É mero requisito formal sem o condão de impedir o prosseguimento do processo. Dessa forma, qualquer brasileiro com idade superior a 16 anos detém a legitimidade para a atuação pro populo sem a necessidade de comprovação do alistamento eleitoral. Aí  está mais uma oportunidade para que a família e a escola fomentem o interesse do adolescente pela solidariedade social, construindo desde cedo uma cidadania engajada e participativa.

Sem descuidar dos aspectos constitucionais mais relevantes, o livro analisa a ação popular sob o prisma da teoria processual, dissecando questões como a legitimidade ativa e passiva, o papel do Ministério Público, a eficácia preponderante das sentenças e o sistema recursal. Aponta a lesividade como a principal ilicitude do ato administrativo passível de desconstituição. Alerta para o risco de a actio popularis invadir o território da ação de responsabilidade por improbidade administrativa e distanciar-se de seu objeto principal: prevenir ou reprimir prejuízos ao patrimônio público.

Enfim, estamos diante de uma obra redigida com esmero,  com sólida fundamentação doutrinária e jurisprudencial. Em todo texto está presente a preocupação com a efetividade da garantia processual, razão pela qual o autor enfrenta questões tormentosas e de difícil resolução. Mesmo diante dos aspectos mais polêmicos lança um olhar crítico e original, apontando os caminhos a serem trilhados pelo intérprete da Lei 4.717/1965.

Tudo isso faz com que a obra  contribua para que os operadores do direito encontrem preciosas orientações no tratamento do tema. Ao optar por desenvolver uma análise jurídico-processual, Rosmar Rodrigues de Alencar demonstra de forma contundente que a ação popular é um instrumento de tutela coletiva que se legitima por procedimentos democráticos para efetivar o  direito  fundamental a administração pública proba, voltada para o bem comum, o uso racional dos recursos do erário e a preservação ambiental.

Além de organização política, 0 Estado brasileiro deve ser encarado como uma empresa que visa lucros sociais. Os recursos arrecadados e os bens públicos devem ser administrados com eficiência, moralidade e respeito à legalidade. É inadmissível que o cidadão cruze os braços enquanto 0 país é pilhado por gestores corruptos, administradores perdulários ou comprometidos com  interesses escusos e inconfessáveis. 

Mais do que nunca os homens e mulheres de bem estão convocados para lutar contra os governantes que insistem em práticas patrimonialistas ou se quedam diante da voracidade capitalista, que não respeita as finanças estatais, a natureza ou as tradições culturais. Essas pessoas encontrarão na ação popular uma poderosa forma de expressão cívica, um eficaz instrumento de controle jurisdicional dos atos de administrativos e uma possibilidade concreta de combate à malversação dos bens do povo.

Por acreditar a (re)construção da cidadania vigilante e atenta à gestão do patrimônio público, recomendo vivamente a leitura deste livro.  Aqui o leitor encontrará o farol seguro para perseguir o uso racional dos bens coletivos, a eficiência dos programas sociais e das políticas públicas - premissas indissociáveis da república brasileira. É,  portanto, uma grande contribuição científica para a concretização dos direitos fundamentais no Brasil.

Maceió, 2008.



A TESTEMUNHA NA HISTÓRIA DO DIREITO

George Sarmento

 

A reconstituição da verdade no processo judicial é um dos temas mais caros ao Direito. Sobre ele se debruçaram os filósofos e juristas mais renomados de todos os tempos. Sua importância é indiscutível, pois o procedimento justo e equitativo pressupõe o esclarecimento de fatos controversos, dos quais dependem a vida, a liberdade e o patrimônio dos envolvidos no litígio. Ainda hoje, com todos os avanços científicos e tecnológicos, a busca da verdade ainda é o maior desafio da jurisdição civil e penal de todos os países democráticos.

Nos sistemas jurídicos contemporâneos, os principais meios de prova são: documental, pericial e testemunhal. A prova testemunhal é a mais problemática e a menos confiável. O magistrado deve ser prudente na análise dos depoimentos produzidos no processo para evitar que a mentira prevaleça sobre a verdade, conspurcando a sua percepção cognitiva dos fatos investigados. Além disso, ele tem de lidar com imprecisões, análises distorcidas, equívocos e, até mesmo, interesses espúrios.

A História do Direito mostra que as civilizações tiveram grande preocupação com a testemunha. Por muitos séculos, este foi o principal meio de prova adotado nos processos judiciais. Manuscritos antigos e obras milenares como a Bíblia e o Código de Hamurabi são a prova de que todos os povos faziam uso desse recurso para buscar a verdade e defender as suas pretensões diante de soberanos, conselhos e tribunais.

A Testemunha na História e no Direito resgata o legado deixado pelo tempo e traça a linha evolutiva da prova nos principais sistemas jurídicos. O texto toma a Antiguidade como ponto de partida para analisar o papel da testemunha no Egito, Mesopotâmia, Israel, Índia, Grécia e Roma. Prossegue com o estudo do direito medieval, destacando a grande contribuição das ordenações portuguesas para o aprimoramento do direito processual. Também situa o tema no Direito Canônico, no Código Napoleônico e no Código de Bustamante. Por fim, disseca o regime de provas testemunhais adotado pela legislação brasileira, apontando os principais avanços e distorções.

Embora tenha sido publicada em 1967, a obra ainda é fonte obrigatória de consulta para todos que pretendam compreender a peregrinação da humanidade em sua luta pela justiça como instrumento de combate ao arbítrio e ao despotismo, ainda tão presentes nas relações intersubjetivas. Com linguagem simples e objetiva, o texto conduz o leitor pelos tortuosos caminhos trilhados pelo direito até a concepção de métodos seguros de avaliação da prova testemunhal no processo.

O autor, Jayme de Altavila, nasceu em 1895 e escreveu Origem dos Direitos dos Povos, um clássico do gênero que é adotado em diversos cursos de Direito no país. Foi um dos fundadores da Faculdade de Direito de Alagoas, hoje integrada à Universidade Federal de Alagoas. Doutor em Direito, ocupou importantes cargos no Ministério Público e na magistratura federal. Teve destacada participação política, exercendo os mandatos de deputado estadual, deputado federal e prefeito de Maceió.

A reedição de A Testemunha na História e no Direito propicia às novas gerações o acesso à literatura jurídica, ao mesmo tempo clássica e de agradável leitura ideal para pesquisadores,  estudantes, advogados juízes e todas as pessoas que apreciem discursos jurídicos e embates no tribunal do júri, e que lutam corajosamente para que a atividade judiciária se transforme num vetor de pacificação social e de promoção dos direitos fundamentais.


 

Maceió, 2009

terça-feira, 30 de setembro de 2025

ASSÉDIO MORAL NO TRABALHO

 George Sarmento

O combate ao assédio moral nas relações de trabalho é um dos maiores desafios do direito contemporâneo. Os efeitos do psicoterror são profundamente nocivos à vítima, pois afeta o seu equilíbrio físico, psicológico e moral. Manifesta-se pelo abuso de poder e pela prática de atos ofensivos, intimidatórios ou descriminatórios que minam a auto-estima e humilham o trabalhador. Essa forma de violência velada desestabiliza-o emocionalmente provocando depressão, angustia, medo, pânico, choros compulsivos, letargia e dores no corpo, entre outros sintomas decorrentes das agressões contínuas a que está submetido.

A prevenção e a repressão ao assédio moral sempre foram objeto de estudo de Vivianny Galvão. Ainda estudante de graduação em Direito, a autora deu início às investigações científicas, movida por grande entusiasmo e disciplina. Participou ativamente do Laboratório de Direitos Humanos/UFAL em pioneira pesquisa sócio-jurídica sobre as agressões sofridas pelas mulheres trabalhadoras no ambiente de trabalho, cujos resultados foram importantíssimos para aquilatar a intensidade do fenômeno em Maceió.

No Mestrado em Direito da UFAL, Vivianny Galvão produziu a dissertação intitulada O Sistema Brasileiro de Repressão ao Assédio Moral, em que desenvolve as principais teses aqui expostas. Tive a honra de ser o seu orientador e poder discutir aspectos do tema até então inexplorados no Brasil. A autora nunca temeu enfrentar questões tormentosas e complexas, sempre interessada em contribuir para a efetividade dos direitos da personalidade do trabalhador nas conflituosas relações profissionais. A leitura de autores nacionais e estrangeiros em diversos campos das ciências sociais deram-lhe excelente base teórica espírito crítico, competências imprescindíveis para enfrentar o desafio explorar tema tão controvertido.

 O produto desse esforço está sintetizado em Assédio Moral: O Mal-Estar no Trabalho. O psicoterror é apresentado como um problema de dimensões supra-nacionais que afeta indistintamente países de todos os continentes e preocupa a comunidade internacional. É fruto de um modelo econômico predatório baseado na alta competitividade, na busca de resultados imediatos e na escassez de postos de trabalho.  Nesse cenário os trabalhadores têm de conviver com as pressões da sociedade de consumo, com a precariedade das relações profissionais e com o fantasma do desemprego.

Perder o emprego não significa apenas enfrentar as dificuldades financeiras de quem fica sem remuneração. Significa, sobretudo, a exclusão do mercado de trabalho. A sensação de “imprestabilidade” de quem já não é necessário à cadeia de produção. Na iniciativa privada, os patrões têm consciência dessa fragilidade e abusam do poder para minar a resistência do empregado, com o objetivo de “domesticá-lo” pelo medo. As consequências do assédio moral são tão devastadoras para o equilíbrio psíquico das vítimas que as obriga a recorrer aos benefícios previdenciários ou ao Judiciário em busca de reparações por danos morais.

Vivianny Galvão demonstra que o enfrentamento ao assédio moral deve começar na ordem internacional. É preciso que as Nações Unidas e os sistemas regionais de proteção aos direitos humanos introduzam nos tratados mecanismos jurídicos eficientes para combater esse mal que se alastra tanto no setor público como privado. Em aprofundado levantamento da legislação estrangeira, a autora demonstra como diversos países europeus e latino-americanos têm incluído em suas legislações instrumentos de proteção aos trabalhadores contra o arbítrio das corporações ou de superiores hierárquicos que abusam do poder no exercício de suas funções.

Denuncia que, apesar da gravidade do problema, o Brasil ainda tão possui uma lei federal que puna os agressores, embora existam alguns projetos em tramitação no Congresso Nacional. Por enquanto, a matéria tem sido disciplinada em leis estaduais e municipais dispersas e sem a efetividade desejável. Por outro lado, Vivianny Galvão posiciona-se contrária à criminalização do assédio moral por entender que as penas privativas de liberdade não são adequadas à punição do assédio moral. Prefere propor um sistema de severas indenizações por danos morais – sanções consideradas muito mais eficazes que as prisões, com efeitos pedagógicos indiscutíveis para a prevenção da violência.

Na pesquisa sócio-jurídica, desenvolvida no âmbito do Laboratório de Direitos Humanos/UFAL, a autora demonstra a real dimensão do assédio moral entre as mulheres trabalhadoras, propondo interessante tipologia dos casos mais comuns nas relações trabalho. Histórias de vida das entrevistadas ilustram os sintomas físicos e psíquicos decorrentes das humilhações sofridas em suas atividades profissionais. É também um retrato da impotência com que a maioria delas reage às agressões, o que tem contribuído para impunidade.  A análise dos dados coletados é uma prova contundente que essa prática ainda é muito comum e precisa ser enfrentada com mais rigor pelo legislador brasileiro.

Mas é inegável que alguns avanços já podem ser detectados. Vivianny Galvão desenvolve interessante pesquisa de jurisprudência. A Justiça do Trabalho tem reconhecido a ilicitude do assédio moral e aplicado sanções indenizatórias destinadas a reparar os danos morais infligidos aos empregados no ambiente laboral. Os casos mais paradigmáticos foram analisados na obra, muitos dos quais foram fundamentais para a mudança de certas posturas corporativas. Mas ainda há muito a fazer tanto na diemnsão judicial como legislativa.

Do ponto de vista sociológico, o assédio moral manifesta-se como ilicitude oculta. Ou seja, apenas um pequeno percentual das agressões é registrado nas instâncias oficiais de poder – Delegacias do Trabalho, sindicatos, Poder Judiciário. A cifra negra é assustadora. A desinformação, o medo e a descrença no sistema judicial são alguns fatores do silêncio de milhares de trabalhadores ofendidos em seus direitos de personalidade. Vivianny Galvão apresenta um retrato fiel do psicoterror e aponta caminhos para a sua superação. Mostra que a humanização das relações de trabalho é o caminho mais próximo para a dignidade humana e para a valorização da mão-de-obra. É um convite para a igualdade e a solidariedade entre no espaço laboral.

Ao editar Assédio Moral: O Mal-Estar no Trabalho, a EDUFAL supre lacuna importante lacuna na doutrina. O livro interessa tanto a estudantes de Direito como a militantes de carreiras jurídicas comprometidos com a defesa dos direitos da personalidade de milhões de brasileiros inseridos no mercado de trabalho, cotidianamente molestados em sua honra, autoestima, vida privada e imagem. Escrito em linguagem objetiva, direta e de fácil compreensão, o texto também se destina ao grande público. Tenho certeza de que a obra será uma referência científica para todos que lutam pela valorização da pessoa humana e pela construção de um ambiente de trabalho saudável, respeitoso e produtivo.


Maceió, 2011.