quarta-feira, 1 de outubro de 2025

A TESTEMUNHA NA HISTÓRIA DO DIREITO

George Sarmento

 

A reconstituição da verdade no processo judicial é um dos temas mais caros ao Direito. Sobre ele se debruçaram os filósofos e juristas mais renomados de todos os tempos. Sua importância é indiscutível, pois o procedimento justo e equitativo pressupõe o esclarecimento de fatos controversos, dos quais dependem a vida, a liberdade e o patrimônio dos envolvidos no litígio. Ainda hoje, com todos os avanços científicos e tecnológicos, a busca da verdade ainda é o maior desafio da jurisdição civil e penal de todos os países democráticos.

Nos sistemas jurídicos contemporâneos, os principais meios de prova são: documental, pericial e testemunhal. A prova testemunhal é a mais problemática e a menos confiável. O magistrado deve ser prudente na análise dos depoimentos produzidos no processo para evitar que a mentira prevaleça sobre a verdade, conspurcando a sua percepção cognitiva dos fatos investigados. Além disso, ele tem de lidar com imprecisões, análises distorcidas, equívocos e, até mesmo, interesses espúrios.

A História do Direito mostra que as civilizações tiveram grande preocupação com a testemunha. Por muitos séculos, este foi o principal meio de prova adotado nos processos judiciais. Manuscritos antigos e obras milenares como a Bíblia e o Código de Hamurabi são a prova de que todos os povos faziam uso desse recurso para buscar a verdade e defender as suas pretensões diante de soberanos, conselhos e tribunais.

A Testemunha na História e no Direito resgata o legado deixado pelo tempo e traça a linha evolutiva da prova nos principais sistemas jurídicos. O texto toma a Antiguidade como ponto de partida para analisar o papel da testemunha no Egito, Mesopotâmia, Israel, Índia, Grécia e Roma. Prossegue com o estudo do direito medieval, destacando a grande contribuição das ordenações portuguesas para o aprimoramento do direito processual. Também situa o tema no Direito Canônico, no Código Napoleônico e no Código de Bustamante. Por fim, disseca o regime de provas testemunhais adotado pela legislação brasileira, apontando os principais avanços e distorções.

Embora tenha sido publicada em 1967, a obra ainda é fonte obrigatória de consulta para todos que pretendam compreender a peregrinação da humanidade em sua luta pela justiça como instrumento de combate ao arbítrio e ao despotismo, ainda tão presentes nas relações intersubjetivas. Com linguagem simples e objetiva, o texto conduz o leitor pelos tortuosos caminhos trilhados pelo direito até a concepção de métodos seguros de avaliação da prova testemunhal no processo.

O autor, Jayme de Altavila, nasceu em 1895 e escreveu Origem dos Direitos dos Povos, um clássico do gênero que é adotado em diversos cursos de Direito no país. Foi um dos fundadores da Faculdade de Direito de Alagoas, hoje integrada à Universidade Federal de Alagoas. Doutor em Direito, ocupou importantes cargos no Ministério Público e na magistratura federal. Teve destacada participação política, exercendo os mandatos de deputado estadual, deputado federal e prefeito de Maceió.

A reedição de A Testemunha na História e no Direito propicia às novas gerações o acesso à literatura jurídica, ao mesmo tempo clássica e de agradável leitura ideal para pesquisadores,  estudantes, advogados juízes e todas as pessoas que apreciem discursos jurídicos e embates no tribunal do júri, e que lutam corajosamente para que a atividade judiciária se transforme num vetor de pacificação social e de promoção dos direitos fundamentais.


 

terça-feira, 30 de setembro de 2025

ASSÉDIO MORAL NO TRABALHO

 George Sarmento

O combate ao assédio moral nas relações de trabalho é um dos maiores desafios do direito contemporâneo. Os efeitos do psicoterror são profundamente nocivos à vítima, pois afeta o seu equilíbrio físico, psicológico e moral. Manifesta-se pelo abuso de poder e pela prática de atos ofensivos, intimidatórios ou descriminatórios que minam a auto-estima e humilham o trabalhador. Essa forma de violência velada desestabiliza-o emocionalmente provocando depressão, angustia, medo, pânico, choros compulsivos, letargia e dores no corpo, entre outros sintomas decorrentes das agressões contínuas a que está submetido.

A prevenção e a repressão ao assédio moral sempre foram objeto de estudo de Vivianny Galvão. Ainda estudante de graduação em Direito, a autora deu início às investigações científicas, movida por grande entusiasmo e disciplina. Participou ativamente do Laboratório de Direitos Humanos/UFAL em pioneira pesquisa sócio-jurídica sobre as agressões sofridas pelas mulheres trabalhadoras no ambiente de trabalho, cujos resultados foram importantíssimos para aquilatar a intensidade do fenômeno em Maceió.

No Mestrado em Direito da UFAL, Vivianny Galvão produziu a dissertação intitulada O Sistema Brasileiro de Repressão ao Assédio Moral, em que desenvolve as principais teses aqui expostas. Tive a honra de ser o seu orientador e poder discutir aspectos do tema até então inexplorados no Brasil. A autora nunca temeu enfrentar questões tormentosas e complexas, sempre interessada em contribuir para a efetividade dos direitos da personalidade do trabalhador nas conflituosas relações profissionais. A leitura de autores nacionais e estrangeiros em diversos campos das ciências sociais deram-lhe excelente base teórica espírito crítico, competências imprescindíveis para enfrentar o desafio explorar tema tão controvertido.

 O produto desse esforço está sintetizado em Assédio Moral: O Mal-Estar no Trabalho. O psicoterror é apresentado como um problema de dimensões supra-nacionais que afeta indistintamente países de todos os continentes e preocupa a comunidade internacional. É fruto de um modelo econômico predatório baseado na alta competitividade, na busca de resultados imediatos e na escassez de postos de trabalho.  Nesse cenário os trabalhadores têm de conviver com as pressões da sociedade de consumo, com a precariedade das relações profissionais e com o fantasma do desemprego.

Perder o emprego não significa apenas enfrentar as dificuldades financeiras de quem fica sem remuneração. Significa, sobretudo, a exclusão do mercado de trabalho. A sensação de “imprestabilidade” de quem já não é necessário à cadeia de produção. Na iniciativa privada, os patrões têm consciência dessa fragilidade e abusam do poder para minar a resistência do empregado, com o objetivo de “domesticá-lo” pelo medo. As consequências do assédio moral são tão devastadoras para o equilíbrio psíquico das vítimas que as obriga a recorrer aos benefícios previdenciários ou ao Judiciário em busca de reparações por danos morais.

Vivianny Galvão demonstra que o enfrentamento ao assédio moral deve começar na ordem internacional. É preciso que as Nações Unidas e os sistemas regionais de proteção aos direitos humanos introduzam nos tratados mecanismos jurídicos eficientes para combater esse mal que se alastra tanto no setor público como privado. Em aprofundado levantamento da legislação estrangeira, a autora demonstra como diversos países europeus e latino-americanos têm incluído em suas legislações instrumentos de proteção aos trabalhadores contra o arbítrio das corporações ou de superiores hierárquicos que abusam do poder no exercício de suas funções.

Denuncia que, apesar da gravidade do problema, o Brasil ainda tão possui uma lei federal que puna os agressores, embora existam alguns projetos em tramitação no Congresso Nacional. Por enquanto, a matéria tem sido disciplinada em leis estaduais e municipais dispersas e sem a efetividade desejável. Por outro lado, Vivianny Galvão posiciona-se contrária à criminalização do assédio moral por entender que as penas privativas de liberdade não são adequadas à punição do assédio moral. Prefere propor um sistema de severas indenizações por danos morais – sanções consideradas muito mais eficazes que as prisões, com efeitos pedagógicos indiscutíveis para a prevenção da violência.

Na pesquisa sócio-jurídica, desenvolvida no âmbito do Laboratório de Direitos Humanos/UFAL, a autora demonstra a real dimensão do assédio moral entre as mulheres trabalhadoras, propondo interessante tipologia dos casos mais comuns nas relações trabalho. Histórias de vida das entrevistadas ilustram os sintomas físicos e psíquicos decorrentes das humilhações sofridas em suas atividades profissionais. É também um retrato da impotência com que a maioria delas reage às agressões, o que tem contribuído para impunidade.  A análise dos dados coletados é uma prova contundente que essa prática ainda é muito comum e precisa ser enfrentada com mais rigor pelo legislador brasileiro.

Mas é inegável que alguns avanços já podem ser detectados. Vivianny Galvão desenvolve interessante pesquisa de jurisprudência. A Justiça do Trabalho tem reconhecido a ilicitude do assédio moral e aplicado sanções indenizatórias destinadas a reparar os danos morais infligidos aos empregados no ambiente laboral. Os casos mais paradigmáticos foram analisados na obra, muitos dos quais foram fundamentais para a mudança de certas posturas corporativas. Mas ainda há muito a fazer tanto na diemnsão judicial como legislativa.

Do ponto de vista sociológico, o assédio moral manifesta-se como ilicitude oculta. Ou seja, apenas um pequeno percentual das agressões é registrado nas instâncias oficiais de poder – Delegacias do Trabalho, sindicatos, Poder Judiciário. A cifra negra é assustadora. A desinformação, o medo e a descrença no sistema judicial são alguns fatores do silêncio de milhares de trabalhadores ofendidos em seus direitos de personalidade. Vivianny Galvão apresenta um retrato fiel do psicoterror e aponta caminhos para a sua superação. Mostra que a humanização das relações de trabalho é o caminho mais próximo para a dignidade humana e para a valorização da mão-de-obra. É um convite para a igualdade e a solidariedade entre no espaço laboral.

Ao editar Assédio Moral: O Mal-Estar no Trabalho, a EDUFAL supre lacuna importante lacuna na doutrina. O livro interessa tanto a estudantes de Direito como a militantes de carreiras jurídicas comprometidos com a defesa dos direitos da personalidade de milhões de brasileiros inseridos no mercado de trabalho, cotidianamente molestados em sua honra, autoestima, vida privada e imagem. Escrito em linguagem objetiva, direta e de fácil compreensão, o texto também se destina ao grande público. Tenho certeza de que a obra será uma referência científica para todos que lutam pela valorização da pessoa humana e pela construção de um ambiente de trabalho saudável, respeitoso e produtivo.


Maceió, 2011.