George Sarmento
A ação popular é uma das mais importantes expressões da cidadania contemporânea, uma trincheira de combate às atividades governamentais nocivas ao patrimônio público, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e aos bens culturais. Também promove o exercício da democracia participativa, legitimando o cidadão comum para a tutela dos interesses primários da coletividade.
A nobreza quixotesca da ação popular está no fato de que o cidadão não luta por interesses pessoais, egoísticos. Não aufere lucros, votos ou vantagens pessoais. A intervenção é pro populo, em defesa do povo, do bem comum. Busca a eficiência dos serviços públicos, a melhoria da qualidade de vida, o uso racional dos recursos do erário.
A globalização neoliberal tem invadido os países periféricos e imposto valores como o individualismo, a excelência dos serviços e a competitividade selvagem. Não há mais espaço para as grandes utopias nem para a solidariedade social. O cenário político brasileiro - marcado por escândalos financeiros, fraudes em licitações e outras formas de corrupção, desestimula a participação popular nas decisões governamentais. Enfraquece o debate político e envolve os cidadãos num clima de apatia e descrença. Isso se reflete no baixo número de ações populares ajuizadas no Brasil.
Considero o controle popular dos atos administrativos um dos mais sólidos fundamentos do Estado Democrático de Direito. A luta contra a improbidade na gestão dos recursos públicos, sobretudo práticas como o clientelismo, nepotismo, tráfico de influência e abuso de poder é o caminho mais curto para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
A propositura de ações populares em defesa da moralidade administrativa, do meio ambiente e do patrimônio cultural é uma contundente demonstração de engajamento do cidadão na defesa dos valores primários da coletividade. Espelha alto nível de consciência política e o comprometimento com a tutela do patrimônio público.
É a reação do povo contra atos administrativos nocivos ao bem comum, prejudiciais ao erário e aos direitos essenciais à preservação dos ecossistemas, dos monumentos históricos, das obras artísticas, dos espaços estéticos, paisagísticos e turísticos.
Ao assegurar a qualquer cidadão a prerrogativa para o ajuizamento de ação popular, a Constituição Federal consagrou o compromisso republicano de proteção aos cofres públicos, aos bens de uso comum do povo e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Ou seja, tornou cada cidadão brasileiro um legítimo fiscal do Tesouro, dos programas sociais e das políticas públicas. Além disso, o isentou do pagamento de custas judiciais, honorários de sucumbência e impôs o duplo grau de jurisdição às sentenças que lhe forem desfavoráveis. Com isso, o controle externo da Administração, tradicionalmente confiado a instituições como os Tribunais de Contas, Poder Legislativo e Ministério Público, amplia-se e assume dimensão verdadeiramente democrática.
Em outras palavras, a configuração constitucional da ação popular estimula o exercício da cidadania e a fiscalização da gestão publica. Coloca à disposição de cidadãos comuns a possibilidade de buscar em juízo a anulação de atos administrativos (contratos, licitações, licenças ambientais, alvarás de demolição etc.) prejudiciais aos interesses coletivos. Daí a necessidade de um amplo movimento cívico para encorajar a sociedade civil a sair da letargia para assumir uma postura mais combativa contra as práticas administrativas ímprobas e antiecológicas.
Essa é a missão da obra Ação Popular - rumo à efetividade do processo coletivo: apresentar de forma clara e didática o procedimento jurídico-processual da ação popular. Mas não é só isso. Rosmar Rodrigues de Alencar desenvolve teses bastante originais sobre o tema, apresenta profunda pesquisa de jurisprudência e analisa magistralmente a trajetória dessa garantia constitucional no sistema jurídico brasileiro.
Desde 2001, tenho acompanhado com grande curiosidade e entusiasmo a concepção deste livro. A semente foi lançada com a elaboração de uma singela monografia de conclusão do curso de graduação em Direito. Convocado para compor a banca examinadora, fiquei impressionado com a bravura e determinação com que autor defendeu suas idéias. Arguido com extremo rigor pelos processualistas presentes à sessão, o então Capitão do Corpo de Bombeiros Militar de Alagoas, não se deixou abater pelas críticas e, um a um, desmontou todos os argumentos contrários à sua tese principal: a desnecessidade de comprovar a condição de eleitor quando o objeto da actio popularis fosse matéria ambiental.
Estimulado pela repercussão de sua pesquisa, decidiu publicara 1a edição de Ação Popular, obra que logo se tornou referência doutrinária para os estudiosos da matéria. Premido pelos desafios desua vida profissional, decidiu descortinar novos horizontes. Aprova-do brilhantemente nos mais disputados concursos públicos do país, Rosmar emprestou sua inteligência à Defensoria Pública Federal e ao Ministério Público do Rio Grande do Norte. Anos depois encontra sua verdadeira vocação na Magistratura Federal. Retoma então o gosto pela pesquisa e aceita o desafio de atualizar e ampliar a sua pesquisa sobre o tema. Agora, mais maduro, sente-se preparado para produzir um livro de fôlego, em que as questões controvertidas são esmiuçadas e submetidas a rigoroso tratamento teórico.
Fiel às suas convicções acadêmicas, 0 autor lança um novo olhar sobre o conceito de cidadania. Demonstra com sólidos argumentos que a exigência de título de eleitor (parágrafo 3°, do artigo 1°, da Lei Federal n.o 4.717/1965) como condição indispensável à propositura de ação popular não foi recepcionada pela Constituição de 1988. É mero requisito formal sem o condão de impedir o prosseguimento do processo. Dessa forma, qualquer brasileiro com idade superior a 16 anos detém a legitimidade para a atuação pro populo sem a necessidade de comprovação do alistamento eleitoral. Aí está mais uma oportunidade para que a família e a escola fomentem o interesse do adolescente pela solidariedade social, construindo desde cedo uma cidadania engajada e participativa.
Sem descuidar dos aspectos constitucionais mais relevantes, o livro analisa a ação popular sob o prisma da teoria processual, dissecando questões como a legitimidade ativa e passiva, o papel do Ministério Público, a eficácia preponderante das sentenças e o sistema recursal. Aponta a lesividade como a principal ilicitude do ato administrativo passível de desconstituição. Alerta para o risco de a actio popularis invadir o território da ação de responsabilidade por improbidade administrativa e distanciar-se de seu objeto principal: prevenir ou reprimir prejuízos ao patrimônio público.
Enfim, estamos diante de uma obra redigida com esmero, com sólida fundamentação doutrinária e jurisprudencial. Em todo texto está presente a preocupação com a efetividade da garantia processual, razão pela qual o autor enfrenta questões tormentosas e de difícil resolução. Mesmo diante dos aspectos mais polêmicos lança um olhar crítico e original, apontando os caminhos a serem trilhados pelo intérprete da Lei 4.717/1965.
Tudo isso faz com que a obra contribua para que os operadores do direito encontrem preciosas orientações no tratamento do tema. Ao optar por desenvolver uma análise jurídico-processual, Rosmar Rodrigues de Alencar demonstra de forma contundente que a ação popular é um instrumento de tutela coletiva que se legitima por procedimentos democráticos para efetivar o direito fundamental a administração pública proba, voltada para o bem comum, o uso racional dos recursos do erário e a preservação ambiental.
Além de organização política, 0 Estado brasileiro deve ser encarado como uma empresa que visa lucros sociais. Os recursos arrecadados e os bens públicos devem ser administrados com eficiência, moralidade e respeito à legalidade. É inadmissível que o cidadão cruze os braços enquanto 0 país é pilhado por gestores corruptos, administradores perdulários ou comprometidos com interesses escusos e inconfessáveis.
Mais do que nunca os homens e mulheres de bem estão convocados para lutar contra os governantes que insistem em práticas patrimonialistas ou se quedam diante da voracidade capitalista, que não respeita as finanças estatais, a natureza ou as tradições culturais. Essas pessoas encontrarão na ação popular uma poderosa forma de expressão cívica, um eficaz instrumento de controle jurisdicional dos atos de administrativos e uma possibilidade concreta de combate à malversação dos bens do povo.
Por acreditar a (re)construção da cidadania vigilante e atenta à gestão do patrimônio público, recomendo vivamente a leitura deste livro. Aqui o leitor encontrará o farol seguro para perseguir o uso racional dos bens coletivos, a eficiência dos programas sociais e das políticas públicas - premissas indissociáveis da república brasileira. É, portanto, uma grande contribuição científica para a concretização dos direitos fundamentais no Brasil.
Maceió, 2008.
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