Os cronistas são os fotógrafos do cotidiano. Os grandes intérpretes da civilização. São eles que expõem o espírito do povo, a degenerescência dos costumes, a crise ética que mina as relações humanas. A partir da análise de acontecimentos banais, retratam o mundo com todas as suas tragédias, contradições e sofrimentos. Quem quiser compreender determinado momento histórico deve ver neles sua principal fonte de pesquisa.
Mendonça Júnior é um desses cronistas que conseguem lançar um olhar crítico sobre a sociedade de seu tempo sem se perder em discursos laudatórios, tão comuns aos intelectuais de província. Seus textos são bem-humorados e permeados de fina ironia. As teses são apresentadas com suavidade e leveza. Quase uma conversa de pé de ouvido. Nesse clima intimista, o leitor mergulha num universo de sonhos, magia e sedução. Mas ninguém pense que se trata de puro lirismo ou de devaneios poéticos: Mendonça Júnior defende corajosamente princípios éticos com coragem e intransigência.
Nascido em 1908, na cidade de Matriz do Camaragibe, foi um dos intelectuais mais férteis de Alagoas. Com a mesma desenvoltura, transitou por vários gêneros literários, entre eles a poesia, crônica, ensaios sociológicos e discursos parlamentares. Também é autor do romance O Último Senhor de Engenho em que disseca o apogeu e a decadência da aristocracia canavieira da região norte de Alagoas.
Dinheiro e Mulher Bonita foi lançado em 1964. Reúne crônicas que o autor publicou no Rio de Janeiro e Maceió durante a década de 50. É também uma amostra dos anos que antecederam à Ditadura Militar. Os temas são os mais variados: reflexões filosóficas, transformações sociais, análises políticas, investigações sociológicas. As idéias por ele defendidas são atemporais, perenes.
Em muitas de suas crônicas está presente a defesa intransigente da alagoanidade. Mendonça Júnior não se conformava com a passividade de seus conterrâneos em submeter-se ao predomínio econômico e político de Pernambuco. Era chegado o tempo de livrar-se desse complexo de inferioridade e assumir a postura altiva de caeté insubmisso. Sustentava que Alagoas deveria ter orgulho de suas raízes, de seus heróis, de sua cultura.
Na crônica intitulada Os Turistas Pernambucanos, relata o episódio em que a polícia pernambucana “exportou” 150 ladrões para Alagoas. Já na primeira noite, um deles invadiu o galinheiro da vizinha e surrupiou todas as galinhas que encontrou pela frente. Não satisfeito, ainda colocou um colar no solitário galo com os seguintes dizeres: estou viúvo desde as 3 horas da manhã!! Esse divertido acontecimento foi o pano de fundo para denunciar a insatisfação com a vinda de políticos pernambucanos às vésperas das eleições com sacolas cheias de dinheiro destinado a comprar o voto e a hospitalidade do eleitor alagoano. Para o cronista era preferível trazer os desastrados ladrões de galinha aos “homens honestos” que chegavam às plagas alagoanas com o objetivo de sugar nossas riquezas e comprar nossas consciências.
O apetite expansionista da aristocracia pernambucana, sua sede de terras férteis para o plantio da cana-de-açúcar e o desejo de ocupar cadeiras reservadas a deputados e senadores alagoanos foram duramente criticados por Mendonça Júnior. Não fazia apologia ao nativismo ou a xenofobia. Ao contrário. Via no espírito acolhedor uma das principais características do nosso povo. Mas não aceitava que os lucros gerados pelas usinas implantadas em Alagoas fossem parar em bancos de outros estados enquanto a população local continuava na mais profunda indigência. Também não admitia a compra de vagas no parlamento por industriais descomprometidos com os interesses do povo alagoano.
Como parlamentar, foi eleito pela imprensa nacional um dos mais importantes oradores da Câmara dos Deputados. Os embates parlamentares não o afastaram do jornalismo. Na verdade, foram matéria-prima para suas reflexões cotidianas. As crônicas abordam temas políticos como o fortalecimento da república, a introdução do parlamentarismo, a liberação de verbas para o combate à seca no Nordeste e a folclórica proibição do uso de biquínis no governo Jânio Quadros.
Em suas crônicas também desfilam tipos populares como o caçador de dotes, o exibicionista e o sedutor. Como um Balzac, expõe as tragédias, costumes e contradições das relações humanas. Narra deliciosos episódios protagonizados por pessoas comuns, retirando deles verdadeiras lições de vida. Mendonça Júnior consegue apresentar o homem em estado puro, despojado de máscaras e adornos. O ser inacabado que, ao mesmo tempo, pode surpreender com atos de coragem ou de fraqueza, com suas virtudes e defeitos.
Nunca escondeu sua predileção pelo universo feminino, fonte inesgotável de mistério e encantamento. As mulheres – reais ou imaginárias – eram sua principal fonte de inspiração. Estava convencido de que amar é que é importante; ser amado é secundário. Por isso cantava os amores malogrados, inacessíveis e irrealizados com a mesma intensidade das paixões tórridas, vividas intensamente pelos amantes desvairados.
Afinal de contas, Dinheiro e Mulher Bonita, título da crônica que dá nome ao livro, sintetiza um princípio universal: a necessidade de acumular riquezas e o desejo de atrair o sexo oposto são as engrenagens que movem o mundo, que justificam a luta pelo poder. Toda a história da humanidade pode ser reduzida a esse binômio. Os grandes avanços civilizatórios tiveram em sua origem interesses econômicos ou o irresistível desejo de sedução. Em seu estudo sociológico, o autor sustenta que “o homem tem sido impelido por duas grandes forças: o amor e o ouro, os sentimentos afetivos e os interesses econômicos, os impulsos irresistíveis do coração e as exigências inelutáveis do estômago; em suma, o instinto de conservação e o de reprodução.” A conclusão não poderia ser outra: para o homem, a receita da felicidade consiste em reunir em torno de si dinheiro e mulher bonita.
Mendonça Júnior tinha uma ligação visceral com a terra natal – a eterna Pasárgada –, presente em toda sua obra literária. Ainda criança, acompanhei meu avô em várias incursões ao Vale do Camaragibe. Estacionava o automóvel, descia e ficava a contemplar a belíssima paisagem que se descortinava à sua frente. Eram longos momentos de reflexão. Eu respeitava o silêncio solene. Seu olhar perdia-se no tempo, na imensidão dos canaviais, nas recordações de uma infância feliz, livre. Já não se via os bangüês, as filas colossais de palmeiras imperiais, as ingazeiras frondosas. Mas no coração do poeta tudo permanecia imaculado, belo e grandioso. Como nos tempos dos seus ancestrais, destemidos senhores de engenho daquelas plagas.
Comemorar o centenário de Mendonça Júnior significa reconhecer a importância de um dos mais férteis intelectuais de Alagoas. De um escritor que teve destacada participação nos grandes acontecimentos literários, contribuindo de forma decisiva para a identidade cultural de sua gente. É um tributo àquele que consagrou toda sua vida à interpretação do espírito de seu povo, à beleza de sua terra e os feitos de seus personagens – famosos ou anônimos.