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quinta-feira, 4 de setembro de 2025

 

       RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA: DISCRIMINAÇÃO E PRECONCEITO


                                           PREFÁCIO

 

Por cerca de dois anos fui orientador de Isabelle Bordalo no mestrado em Direito da FDA/UFAL. Acompanhei todos os passos da exaustiva pesquisa sociojurídica que hoje é apresentada ao leitor: Orixás, Senzala e Casa Grande: A Discriminação das Religiões de Matriz Africana e a Teoria da (De)Colonialidade nas Decisões do Supremo Tribunal Federal.

 

Durante esse período acompanhei de perto suas perplexidades, angústias e testemunhei a seriedade com que tratou tema tão delicado, verdadeiro patrimônio da dor cujas consequências ainda e visíveis na sociedade brasileira. Foi uma trajetória árdua, plena de percalços e incompreensões. Luta tenaz para romper as barreiras do pensamento hegemônico marcado pela visão reacionária sobre as religiões de matriz africana.

 

O texto propõe a reflexão sobre as raízes históricas da intolerância religiosa no Brasil, suas implicações contemporâneas e, principalmente, a forma como o Direito pode ser usado como ferramenta tanto de perpetuação quanto de transformação dessa realidade.

 

Isabelle Bordalo sustenta que a colonialidade permanece enraizada em manifestações jurídico-institucionais que, em teoria, deveriam refletir os princípios do Estado democrático, laico e pluralista. Não apenas denuncia a intolerância religiosa como manifestação de racismo estrutural, mas também aponta para a necessidade de um giro decolonial – ruptura epistêmica que transcenda o olhar hegemônico e abrace a diversidade de cosmovisões.

 

A autora nos conduz por um estudo interseccional que articula três pilares essenciais para compreender a discriminação: a colonialidade, a religiosidade afro-brasileira e a atuação do Estado, sobretudo dos tribunais. 

 

Ao longo da obra, constrói um elo entre a teoria da colonialidade e a discriminação religiosa, apontando como a estrutura de poder que se consolidou durante o período colonial ainda ecoa em interpretações jurídicas que envolvem religiões de matriz africana. O conceito de colonialidade, que atravessa toda a dissertação, é tratado como ideologia que molda o poder, o saber e a identidade. 

 

A colonialidade do poder, do saber e do ser, como conceitos interligados, operam até hoje, reafirmando e perpetuando estruturas de subordinação e marginalização, especialmente no que se refere às religiões de matriz africana.

 

Além das questões sociológicas abordadas, a obra se destaca pela análise das decisões do STF sobre a liberdade religiosa, colocando em debate a postura da Corte frente a temas como a laicidade do Estado e a proteção aos direitos das minorias religiosas. 

 

Ao revisar diversas decisões judiciais que envolvem o reconhecimento e a proteção das religiões afro-brasileiras, Isabelle Bordalo questiona se o Supremo tem realmente sido um agente de emancipação religiosa ou se, na prática, continua a adotar uma visão marcada pela colonialidade, que invisibiliza ou subestima a importância das crenças e práticas afro-brasileiras.

 

Além disso, faz um resgate histórico para sustentar que a discriminação contra as religiões de matriz africana tem raízes profundas, que remontam ao período colonial. Essa crítica é especialmente visível quando narra o episódio conhecido como Quebra de Xangô em Alagoas, um dos maiores marcos de intolerância religiosa no Brasil.

 

O conceito de decolonialidade emerge como um contraponto essencial ao discurso da colonialidade, sugerindo alternativas para superar a repressão e discriminação histórica. Para a autora, a decolonialidade não é apenas uma teoria jurídica, mas uma proposta de ação, que implica profunda ruptura cultural e propõe a reinterpretação das práticas religiosas à luz da pluralidade de crenças e cosmovisões. A proposta de uma nova hermenêutica constitucional, que leve em consideração a riqueza religiosa e cultural do Brasil, é um dos grandes méritos deste livro.

 

Portanto, Orixás, Senzala e Casa Grande é um estudo fundamental para compreender não apenas as dinâmicas de poder e saber, mas também o papel do Direito na construção de uma sociedade que, ao invés de perpetuar desigualdades históricas, seja capaz de promover a igualdade de direitos e a liberdade de todas as religiões. 

 

O livro instiga o leitor a repensar as questões do racismo religioso, intolerância e decolonização do saber, tornando-se, assim, uma leitura indispensável para todos que se dedicam ao estudo do Direito, da História e das Ciências Sociais no Brasil. 

 

Isabelle Bordalo alia rigor acadêmico e sensibilidade histórica. A obra é um tributo às vozes violentamente silenciadas, aos orixás que guiam os destinos dos fiéis, às histórias de resistência que precisam ser contadas. Insere-se também na pedagogia da memória, do educar para o nunca mais. Um verdadeiro libelo contra a intolerância e a discriminação. Mais do que isso, é um convite ao leitor para que participe de um diálogo transformador, fraterno e libertário.


George Sarmento,2025.

Professor FDA/UFAL

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