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quinta-feira, 4 de setembro de 2025



 STF: DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO NOS PROCESSOS CRIMINAIS 

 

Prefácio  

 

É um prazer prefaciar o livro de estreia de José Ailton da Silva Júnior, intitulado Natureza Material Constitucional do Duplo Grau de Jurisdição nos Processos Criminais: análise em relação aos julgamentos do STF, obra que tem a marca da originalidade, rigor científico e comprometimento com um dos maiores pilares do Estado Democrático de Direito: a ampla defesa dos réus em processos penais.  

 

O autor é funcionário do Ministério Público Estadual, advogado e professor de Direito Constitucional no CESMAC do Sertão. Destaca-se no cenário jurídico alagoano por ser pesquisador de alto nível e docente respeitado, tendo participado ativamente de diversos projetos desenvolvidos pela OAB/AL.  Em todas as atividades profissionais, José Ailton imprime a marca da defesa intransigente pelos direitos humanos, pela segurança jurídica e pela dignidade humana. Na condição de seu orientador de mestrado, sou testemunha de sua luta pela excelência científica e pela solução de questões controversas que envolvem a interpretação constitucional. 

 

 O livro é fruto de pesquisa realizada no âmbito do mestrado em Direito da Universidade Federal de Alagoas, sob minha orientação. Preenche lacuna na literatura jurídica nacional por apresentar uma visão inédita do duplo grau de jurisdição no processo penal.  Tradicionalmente os autores desenvolveram o tema sob a acanhada perspectiva de princípio processual a ser disciplinado pelo legislador ordinário. O autor, no entanto, vai mais além e demonstra que se trata de uma garantia fundamental implícita no sistema constitucional brasileiro, apresentando sólidos argumentos para sustentar sua tese.

 

  A decisão do autor em enfrentar as questões controversas que implicam a interpretação do duplo grau de jurisdição nasceu de duas perplexidades. A primeira decorre da constatação de que tão importante prerrogativa individual não se encontra prevista na Constituição Federal, embora presente em tratados internacionais de direitos humanos – o que constitui grave omissão do constituinte nacional. 

 

A segunda, mais circunstancial e não menos relevante, remonta ao célebre Caso Mensalão, escândalo político que atingiu autoridades do alto escalão federal, acusadas de corrupção e outros crimes contra a Administração Pública. O processo teve grande repercussão na imprensa brasileira e atraiu a atenção da mídia internacional. As ações penais foram julgadas pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal em única e última instância, sem que os réus pudessem exercer o direito de recorrer das decisões da Corte. 

 

 A ideia de conceber o livro foi impulsionada pela inquietação de José Ailton  ao constatar que o duplo grau de jurisdição não é plenamente aplicado no Brasil nas decisões penais proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em processos que envolvem réus detentores de   foro por prerrogativa de função.  Foi o que aconteceu no paradigmático Caso Mensalão, que serviu de ponto de partida da investigação científica. A impossibilidade de apresentar recursos para rever decisões condenatórias é considerada uma deficiência do sistema judiciário brasileiro, o que causa grande desconforto entre os constitucionalistas.

 

Embora o Pacto de São José da Costa Rica preveja o duplo grau de jurisdição como um direito fundamental a ser respeitado por todos os países vinculados ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos, a Constituição brasileira não o incluiu formalmente entre as liberdades públicas constantes do art. 5o. Tal omissão dá margem a diversos questionamentos. É possível conceber um modelo de devido processo legal em que o duplo grau de jurisdição não esteja assegurado? Os julgamentos originários de réus com foro por prerrogativa de função no STF são passíveis de recursos? Existem direitos fundamentais fora da Constituição? 

 

Para responder a essas questões, o autor analisa o duplo grau de jurisdição ao longo da história, demostrando sua lenta mas consistente evolução na literatura jurídica até se tornar um dos direitos fundamentais mais importantes para as democracias contemporâneas. E o faz com base em sólida fundamentação teórica, que inclui autores nacionais e estrangeiros de grande envergadura no cenário jurídico. O duplo grau de jurisdição é ainda estudado sob o prisma do direito  processual penal, com destaque para o atual posicionamento do Supremo Tribunal Federal.

 

José Ailton sustenta que o duplo grau de jurisdição é um direito fundamental supraestatal,  previsto em tratados internacionais das Nações Unidas e do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Seu reconhecimento pelos tribunais atende à necessidade de se respeitar as prerrogativas inerentes à pessoa privada de liberdade, à paridade de armas e à equidade processual.   

 

O texto apresenta sólidos argumentos que apoiam o primado do direito internacional sobre os sistemas jurídicos nacionais. O monismo influencia o direito interno na medida em que o catálogo de direitos fundamentais da Constituição de 1988 pode ser complementado por outros direitos humanos proclamados em tratados e convenções, sanando eventuais omissões. É o caso do duplo grau de jurisdição, cuja função consiste em assegurar aos acusados em processos criminais a possibilidade de exercer o direito à ampla defesa e ao contraditório, o que inclui a  revisão de decisões proferidas por órgãos colegiados, também sujeitas à falibilidade humana.  

 

Como dito, José Ailton desenvolve um estudo de caso -  o paradigmático Mensalão -, apontando as falhas procedimentais que dificultaram a defesa dos réus. Com sólidos argumentos, demonstra que o direito de interpor recursos constitui legítima garantia processual, não podendo ser dispensado em nenhuma hipótese, ainda que o julgamento da ação se dê, em primeira instância, pelo Supremo Tribunal Federal.

 

No entanto, reconhece que houve avanços com a edição da Emenda Regimental 49/2014, que ampliou a competência da Turmas do STF para julgar originariamente  autoridades com prerrogativa de função acusadas de crimes comuns ou de responsabilidade. Dessa forma, o Pleno terminaria atuando como instancia recursal para os processos. Mesmo que essa solução esteja em harmonia com as recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ainda há espaço para aumentar a efetividade do duplo grau de jurisdição. O autor apresenta diversas proposições para  isso, algumas radicais como o fim do chamado foro privilegiado; outras mais brandas, como a redução dos cargos por ele abrangidos. Para solucionar o problema da histórica morosidade e assegurar o direito à duração razoável do processo, defende o aumento da competência dos órgãos fracionados da Corte para o julgamento de ações penais em primeira instância. 

 

Essas são apenas algumas ideias são desenvolvidas no livro.


Acredito firmemente que a obra  atrairá a atenção de pesquisadores, operadores do direito, estudantes universitários e de todos os que lutam pelo respeito aos direitos e garantias fundamentais em nosso país. A importância do tema para o constitucionalismo contemporâneo, a leitura acessível do texto e a excelente qualidade da pesquisa garantem uma leitura prazerosa, rica em conteúdo, propositiva, instigante. Ao final, o leitor ficará convencido de que o respeito incondicional ao duplo grau de jurisdição deve ser um dos pressupostos inegociáveis da república brasileira e do Estado Constitucional de Direito.   

 

George Sarmento
FDA/UFAL

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