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quarta-feira, 3 de setembro de 2025

 DISCURSO DE SAUDAÇÃO A HUGO LEONARDO RODRIGUES COMO SÓCIO EFETIVO DA CADEIRA DE N. 50, PROFERIDO POR GEORGE SARMENTO, EM 30 DE JULHO DE 2025.

 

 

HISTÓRIA E DIREITO NO IHGAL: CONVERGÊNCIA NA DIFERENÇA

 

 

Queridos confrades,

Senhores e Senhoras,

 

 

Permitam-me uma singela confidência: Em mais de 10 anos, é a primeira vez que subo à tribuna desta Casa para apresentar um novo sócio. Mas a espera valeu a pena. O destino quis que acontecesse justamente na posse de Hugo Leonardo Rodrigues, por quem nutro grande admiração e respeito. Estreio, portanto, em grande estilo. Estou muito feliz em abrir as portas do IHGAL para mais um membro ilustre, que, seguramente, dará uma bela contribuição para a preservação da memória e identidade de Alagoas. Apresentá-lo aos confrades e à sociedade alagoana não é mero ato protocolar ou observância à liturgia. É dar testemunho dos atributos que o legitimam a ocupar a Cadeira 50, sucedendo o inesquecível sociólogo e historiador Luiz Sávio de Almeida.


Hugo é pernambucano, nascido em Recife, onde iniciou sua trajetória intelectual e deu os primeiros passos na pesquisa científica, tornando-se mestre e doutor pela tradicionalíssima Faculdade de Direito da UPPE. Chegou a Alagoas para assumir importante cargo no Tribunal Regional Eleitoral, tendo começado por Colônia Leopoldina, passado por Marechal Deodoro, até chegar a Maceió. Talvez por mergulhar na realidade política e social de tantas cidades, entrar em contato com as contradições decorrentes das desigualdades sociais, mas também seduzido pelo anseio de seu povo por melhores condições de vida e serviços públicos de boa qualidade, decidiu ficar, criar raízes, partilhar o capital cultural acumulado às custas de exaustivas horas de estudos e reflexões.


Mas é na Universidade Federal de Alagoas que encontramos a outra metade de sua vocação: o magistério. Professor da graduação e do Mestrado em Direito, Hugo tem se dedicado às ciências criminais, coordenado projetos de extensão universitária, participado de documentários, realizado pesquisa de campo. É criador da disciplina História do Direito Brasileiro por acreditar que é impossível compreender os conflitos intersubjetivos de interesses fora do contexto histórico e cultural em que eles eclodem. Entende que as ciências jurídicas não podem se restringir ao conhecimento das leis; mais do que isso, devem abraçar a missão de assegurar aos cidadãos condições de vida digna, justa e solidária, em que todos tenham amplo acesso aos direitos sociais, sobretudo educação, saúde, habitação, segurança alimentar, trabalho e seguridade social.

 

O campo de estudos de Hugo ultrapassa as fronteiras do direito. Abrange problemas como colonialidade, comunidades indígenas, história do cangaço e políticas criminais. Em todos esses temas, carrega a marca do pesquisador que não se limita à erudição, aos textos herméticos, de difícil compreensão: é nítida sua busca por compreender os dramas humanos que desfilam nos tribunais, nas penitenciárias, nos hospícios e nas comunidades periféricas – vítimas do preconceito e discriminação.


Impossível, neste discurso, enumerar as obras de Hugo Leonardo. Seu Currículo Lattes, averbado no CNPQ, registra copiosa produção científica, com mais de cem títulos entre artigos, capítulos, comunicações, conferências, resumos. Isso nos mostra a envergadura desse grande intelectual que debuta em nossa instituição.


No entanto, Hugo é muito mais do que os cargos, títulos e publicações que ostenta. A preparação para esta solenidade de acolhimento impunha-me o dever de descobrir o outro lado de sua personalidade, a figura humana que se esconde por trás de sua atuação profissional. Essa foi a parte mais difícil da tarefa que me foi confiada. Sempre nos encontramos nos corredores da Faculdade de Direito/UFAL, quando aproveitamos os intervalos para cultivarmos o convívio alegre e fraterno. Por três semanas procurei-o na sala dos professores para entrevistá-lo, sem que ele percebesse. Precisava saber um pouco mais de sua vida privada. Não obtive sucesso. Homem discreto, fala muito pouco de si. A postura afável, serena e risonha é também um escudo que o protege da curiosidade alheia.  Mas não me dei por satisfeito. Decidi recorrer às fontes primárias, pessoas que privavam de sua intimidade. Foi aí que lembrei de Vitor Monteiro, meu orientando no mestrado, a quem procurei para que traçasse o perfil de Hugo fora do ambiente de trabalho. 


Grande foi a minha surpresa ao descobrir facetas inusitadas. Bibliófilo, é um grande colecionador de livros antigos, que garimpa meticulosamente nos sebos das cidades que visita em busca de raridades, obras que são lidas com avidez e comentadas com entusiasmo. Essa característica contrasta com seu gosto pela aventura, sobretudo o turismo ecológico e espiritual. Paixão que o levou a percorrer por duas vezes o Caminho de Compostela e aventurar-se por vários dias na Trilha Inca até atingir o Parque de Machu Picchu, em terras peruanas.  O amor à natureza também está presente no surf, esporte que pratica pelo prazer de estar em permanente contato com o mar. Contudo, o que mais me surpreendeu foi saber que é adepto da vida boêmia, capaz de varar noites em autênticos botequins, cercado de amigos, ouvindo boa música e mergulhado em questões existenciais.


Alagoas foi palco de sua maior conquista: a formação de uma bela família, porto seguro, alicerce que lhe permite perseguir os seus sonhos e objetivos. Ao lado de sua esposa, Maria Raquel, escreve uma bela história de amor que se prolonga em Laila, filha do casal e motivo permanente de alegria e contentamento.


Muitas vezes perguntam-me – com uma ponta de ironia – o porquê de tantos juristas no IHGAL. Procuro responder com duas perguntas. Estaria o direito dissociado da história? Haveria incompatibilidade ou pontos de confluência entre eles?


Costumamos dar mais atenção à grande história — a dos povos e nações. Mas esquecemos de valorizar a pequena história — a dos indivíduos. Uma e outra se completam, como fios entrelaçados de um belo tecido. Cada processo judicial retrata o indivíduo em momentos extremos diante de circunstâncias históricas precisas. Pelos corredores dos tribunais desfilam os dramas mais dolorosos, expectativas frustradas, dores que martirizam as almas. Não é à toa que esses espaços, que abrigam esperanças, expectativas e frustrações, são chamados salões dos passos perdidos. Os advogados surgem como biógrafos de seus clientes: traçam o perfil psicológico, analisam o contexto em que eclodiu o litígio, lutam pela justiça. Muitas vezes casos particulares, aparentemente sem importância, têm o poder de operar grandes transformações sociais.


O processo que levou Maria Antonieta à guilhotina é fundamental para a compreensão do regime de terror que se sucedeu à Revolução Francesa. O julgamento de Tiradentes traça um retrato dos métodos utilizados pela Justiça Colonial para casos de sedição. Isso também acontece com arquivos judiciários da Revolução de 1817, Confederação do Equador e Guerra dos Cabanos. Milhares de exemplos poderiam ser citados.


Mais do que nunca os processos judiciais têm sido consultados como preciosíssimas fontes de pesquisa. É impossível explicar acontecimentos que mudaram o rumo da história sem analisar experiências individuais transformadoras. Isso explica o sucesso de tantas biografias no Brasil. Necessário levar em consideração as circunstâncias, os costumes, a cultura, os fatores psíquicos e políticos que moldaram atitudes ou forjaram embates individuais ou coletivos. Nesse aspecto, a micro-história dá voz a pessoas comuns e atua como alicerce para a explicação de fenômenos mais amplos. 


Foi nessa perspectiva que Carlo Ginzburg escreveu o magnífico livro O Queijo e os Vermes, em que analisa os autos do processo que tem como acusado um modesto moleiro, Menocchio, para explicar os efeitos da inquisição na Itália do século XVI. A mesma metodologia foi adotada por Evandro Lins e Silva ao publicar A Defesa tem a Palavra, obra que aborda as consequências dos crimes passionais na sociedade contemporânea, tomando como ponto de partida o Caso Doca Street em que atuou como advogado. Ninguém discorda que os autos de inquéritos policiais, laudos médico-legais, termos de depoimento e ações judiciais são documentos imprescindíveis para o historiador. 


O Tribunal de Justiça de Alagoas, por exemplo, criou o Centro de Cultura e Memória do Poder Judiciário para digitalizar e catalogar processos que tramitaram desde o século XVIII, agora disponíveis para a consulta e pesquisa. A Justiça do Trabalho, por sua vez, abriu as portas do Museu Pontes de Miranda e disponibiliza seu acervo para a população. Em todo o país percebe-se esse movimento de digitalização de processos de valor histórico, com o objetivo de democratizar o acesso a pesquisadores imbuídos em compreender e interpretar episódios marcantes.


Tudo isso mostra a necessidade de atrair o interesse da pesquisa histórica para as trajetórias individuais, como estratégia para interpretar uma época, mudar paradigmas e avançar no projeto civilizatório. A análise de fatos isolados pode explicar estruturas complexas. Afinal, a história é uma narrativa de eventos: “Os historiadores narram fatos reais que têm o homem como ator; a história é um romance real”, ensinava Paul Veyne. Nesse aspecto, cada caso judicial nos ajuda a compreender o contexto em que se deu o ato ilícito, os valores vigentes, a motivação dos partícipes, as relações econômicas e sociais preponderantes. Escrever a história, nesse sentido, não é prerrogativa exclusiva de determinada categoria profissional, mas impõe a todos compromisso com a verdade, mediante a apreensão de episódios que expliquem o contexto de determinado momento da vida de um país, de um povo, de uma coletividade. 


Assim, não é absurdo dizer que os operadores do direito são legítimos promotores da história. São eles que acompanham de perto os fatos de grande repercussão, produzem a necessária documentação para compreendê-los na dimensão tempo-espaço, analisam os aspectos dos problemas sob diversas perspectivas e apresentam soluções. Nesse sentido projetam-se como testemunhas privilegiadas das grandes transformações sociais.


É por isso que sua chegada de Hugo foi largamente festejada nesta Casa. Temos a certeza de que seus notáveis conhecimentos de ciências jurídicas estarão sempre a serviço da preservação da memória, da tradição e da cultura, ajudando a construir uma consciência histórica vibrante, crítica e participativa, capaz de inspirar as novas gerações de alagoanos. 


George Sarmento, sócio do IHGAL.

 

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