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domingo, 22 de março de 2009

ROTEIRO SENTIMENTAL DA CIDADE DE PENEDO

GEORGE SARMENTO

Da varanda do hotel contemplo a placidez do Velho Chico. O vento quente, seco, voraz, afogueia o espírito e atiça a fome. Um bando de garças corta o verde-esmeralda, enquanto os barcos preguiçosamente singram as águas cálidas e silenciosas. Contemplo a bela paisagem através das torres da Igreja Nossa Senhora das Correntes, construída no século XVIII por uma família simpatizante da causa abolicionista, e que hoje é uma jóia do barroco colonial.

Que rio democrático, o São Francisco! Acolhe a todos sem distinção – a imponente balsa da Empresa Fluvial Tupan que faz a travessia para Neópolis, em Sergipe; os barcos coloridos, que levam os passageiros para cidades ribeirinhas em troca de uns poucos reais; as prosaicas canoas de pesca, típicas da região, conduzidas por orgulhosos e destemidos remadores. Suas margens generosas abrigam delicadamente os casais apaixonados que se beijam sob o sol a pino, bêbados que fazem discursos inflamados contra inimigos imaginários, comerciantes anônimos que, aos gritos, tentam atrair os poucos clientes que se aventuram a sair de casa naquela hora do dia.

Em meus devaneios, fico imaginando a chegada de Duarte Coelho, em 1522, para fundar uma povoação que lhe assegurasse os domínios de sua capitania hereditária contra os corsários franceses que infestavam a região em busca do precioso pau-brasil. Olho para frente e chego ao ano de 1637. Vejo os holandeses invadirem a vila, derrubarem as resistências militares e construírem um inexpugnável forte no alto do rochedo, de onde se tinha uma vista inebriante. Conta-se que Maurício de Nassau morou ali por algum tempo só voltando para Olinda em razão do impaludismo que lhe minava a saúde. Ainda hoje, arqueólogos de diversas universidades brasileiras tentam encontrar as fundações do famoso forte, provavelmente fincadas abaixo dos prédios públicos e casarões aristocráticos que circundam a prefeitura da cidade.

A procura do legado holandês me faz lembrar um episódio familiar, narrado por parentes idosos, que mexeu muito com minha imaginação infantil. Na década de 30, meu avô paterno era um rico fazendeiro lá para as bandas de União dos Palmares. Um belo dia, uns gringos chegaram em suas terras com mapas, aparelhos de prospecção e uma conversa bonita. Disseram-lhe que holandeses em fuga haviam enterrado um baú contendo milhares de florins de ouro. Se os cálculos estivessem certos, o tesouro seria encontrado e ele ficaria com a metade da fortuna. Dinheiro suficiente para cinco gerações viverem confortavelmente. Desviaram o curso do rio e iniciaram as escavações. Os jornais deram grande destaque ao inusitado acontecimento. Os coronéis da região passavam os dias acompanhando os trabalhos na esperança de testemunhar a grande descoberta. Meu avô, por sua vez, embriagado com a repentina notoriedade, começou a gastar por conta. Contraiu empréstimos bancários, contratou os melhores alfaiates, reformou a casa-grande.

Numa madrugada chuvosa, a barragem cedeu e o rio retomou seu curso. Foi nessa fatídica noite que ele ficou sabendo que os gringos desapareceram sem deixar rastros, a não ser suas sementes no ventre de duas cablocas do engenho. Completamente falido e alvo de comentários jocosos, mergulhou em profunda depressão, da qual jamais se recuperou. Resultado: fiquei privado para sempre das preciosas moedas de ouro que passariam para mim como quinhão hereditário. Até hoje fico a me perguntar se os florins foram encontrados pelos espertalhões ou se tudo não passou de uma aventura malograda de exploradores inexperientes.

O fim de tarde se aproxima. Como é lindo o pôr do sol e o reflexo dos seus raios tingindo as águas do rio de tons avermelhados! Estou em Penedo na condição de padrinho da primeira turma de bacharéis em Direito da Fundação Raimundo Marinho. Fui um dos responsáveis pela autorização do curso e pela implantação do escritório de prática jurídica, que presta assistência gratuita à população carente. Isso me valeu o convite e o honroso título honorífico. A cerimônia acontece no Teatro 7 de setembro, projetado pelo arquiteto Luiz Lucariny e construído em 1884. O teatro não é grande. Mas é aconchegante, charmoso e está em bom estado de conservação. Perfeito para uma noite de gala.

Penedo é uma cidade de muitos encantos. Os monumentos devem ser visitados sem pressa. Vale a pena conhecer o oratório da forca, construído em 1769 para abrigar os condenados na última noite de suas vidas. Ali o escravo fujão, o ladrão de gado ou o homicida ficavam em oração à espera do enforcamento, repetindo desconhecidas palavras em latim extraídas do breviário de um jesuíta piedoso . Pediam perdão pelos pecados não cometidos, pela vida miserável que levaram, pela liberdade que lhes foi negada, pela viúva e filhos que ficariam desamparados.

Em frente fica a Casa da Aposentadoria, um suntuoso prédio construído por José de Mendonça Matos Moreira, em 1781, para abrigar os ouvidores-gerais em visita à cidade. No andar térreo funcionou uma cadeia onde os réus ficavam apinhados à espera de julgamento. O Ouvidor Mendonça é um ancestral longínquo sem o apetite sexual do qual eu não estaria escrevendo essa crônica. Além de ocupar o mais alto cargo da magistratura em Alagoas - representava a justiça real -, foi autor do principal inventário sobre as matas da província, texto que, ainda hoje, é referência para pesquisadores de todo o mundo.

Entre tantas coisas boas de se ver em Penedo está o Convento dos Franciscanos e a Igreja Nossa Senhora dos Anjos, construídos no mais puro estilo barroco e rococó. 2009 é um ano especial para a Ordem, que comemora 350 anos de presença na cidade. A exposição de cartazes descreve a trajetória dos frades na evangelização dos fiéis, na formação de sacerdotes e na pregação dos ensinamentos de Francisco de Assis. Passear pelos corredores do convento é voltar no tempo e penetrar nos mistérios da vida monástica dedicada à contemplação e à caridade. As paredes já acolheram as vítimas da cólera de 1854 e os desabrigados da grande enchente de 1919. Já foram escola e até prisão. Até mesmo o Imperador D. Pedro II assistiu a Te-Deum celebrado em sua homenagem.

A gastronomia é outra grande atração de Penedo. Quando a fome bate, nada melhor do que correr para o Bar do Jorjão para comer uma boa pituzada ao coco. O proprietário nos recebe com um sorriso franco e nos oferece o que há de melhor em sua casa. Coloca uma mesa na calçada, de frente para a Igreja Nossa Senhora dos Rosários dos Negros, e nos serve um verdadeiro banquete. Também há outros restaurantes interessantes como a Rocheira, cujo plat de résistance é o jacaré ensopado, ou o Forte Maurício de Nassau, que oferece uma esplêndida vista do Rio São Francisco e um cardápio de excelente qualidade.

Se você chega a Penedo com o espírito contemplativo, com o desejo de conhecer a essência do seu povo e a força de sua história, não vai se arrepender. É o lugar ideal para alegrar a alma, dar vazão aos sonhos e aproveitar o melhor da vida. O negócio é se deixar levar pelo encanto das ruas, pelo misticismo das igrejas, pela imponência dos casarões coloniais. Pouco a pouco a cidade abrirá os braços e mostrará a você os seus segredos mais íntimos.

A CRISE

ISAAC SANDES

Recebo um conto do amigo Isaac Sandes, mais irreverente e engraçado do que nunca. Nosso Nelson Rodrigues caeté tem a fleuma dos grandes cronistas do cotidiano e sabe explorar como ninguém situações inusitadas como a crise dos 50. Vale à pena conferir!

Ele era amargo como o fel que sobe à boca do condenado em sua derradeira hora. Seu espírito de tão atormentado, parecia haver sido herdado de um suicida. Sua resmungante presença tornava o ambiente em torno dele tão carregado quanto o mormaço de uma tempestade prestes a desabar.
O futuro? Ah, o futuro! Para ele, era visto como pelos olhos de um detento do holocausto.
Quando se concentrava numa queixa, não havia quem o demovesse, nem tampouco quem o fizesse ouvir assunto diverso daquele escolhido para suas lamúrias diárias. Falava, falava e não se cansava de se repetir. Os assuntos tratados ao seu redor atravessavam-lhe a cabeça como um certeiro raio e perdiam-se no imenso vazio de sua teimosia.
O ser e o ter dos outros lhe causavam pesado incômodo, e tudo o que via ou sabia deles era como alfinetadas nos seus olhos e punhaladas no seu irrequieto ego.
Ser seu amigo era para poucos. Enfrentar sua proximidade comparava-se ao bombeiro que beira o perímetro das chamas, ou ao trapezista que faz suas exibições sem redes de segurança. A qualquer momento podia-se ser chamuscado por sua língua ferina ou podia-se desabar atingido por uma disparatada opinião ou imerecedor conceito.
Apesar de tudo, amigos ele os tinha, poucos é verdade, mas verdadeiros, porque só mesmo amigos verdadeiros compreenderiam aquela atormentada alma.
Seria ele um excluído? Seria ele um dos que engrossam a horda de desempregados? Seria ele portador de doença mortal incurável?
NÃO !! Nada disto. Paradoxalmente, ele tinha um bom emprego, uma boa e equilibrada família, um futuro mais que garantido e, ao contrário dos amigos que sempre o confortavam, nunca teve a menor dificuldade financeira em sua vida.
Qual seria então a fonte secreta de desgosto e rancor que alimentava, com farto jorro, tanto mau-humor e ressentimento?
Só os poucos e próximos amigos podiam-na identificar. Seriam traumas de infância? Alguma experiência aterrorizante da adolescência? Abuso sexual na infância?
De repente a surpresa!!! Simples. Muito Simples. Toda aquela frustração, todo aquele rancor, todos os ressentimentos, tinham uma origem única e insuspeita que, repito, só os poucos e altruístas amigos podiam identificar.
ELE NUNCA HAVIA COMIDO NINGUÉM fora da sacrossanta união conjugal!
Ao se olhar no espelho, já via o passo célere do tempo o alcançar com meio século de existência, marca que julgava fatal e intransponível para o ofício da sacanagem.
Sentia seus níveis de testosterona desabarem e, nada, nada de uma comidinha extra. Tal fato o angustiava e gerava, no seu interior, tanto desespero e tanto ressentimento. Sentimentos menores da humanidade eram revolvidos no recôndito de sua alma e afloravam em jorros naquela personalidade rabugenta como sulfurosas erupções vulcânicas.
Tal conjunto de secretas frustrações deixava aos não próximos e desavisados a falsa impressão de tratar-se de pessoa má, quando em verdade não o era, era sim a incauta vítima de um pânico gerado pela frustrante e iminente sensação de que iria passar sua vida, sua irreprisável vida, virgem nos profanos domínios da sacanagem.