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domingo, 19 de abril de 2009

URUBULINOS

ISAAC SANDES
Hoje a prosa não será leve. Tratarei de algo que chega muito próximo ao que era conhecido pelos antigos como causos de assombração .
É certo que não são daquelas tenebrosas estórias, ouvidas de olhos arregalados e agarrados à barra da saia de nossas avós, as quais nos faziam dormir com o cobertor preso aos pés e à cabeça, obrigando-nos a aspirar, no correr da noite, aquilo que os eruditos chamam de ventosidades anais silenciosas; as populares bufas.
Mas… ! Vamos ao assunto, pelo que tem de sério !!!
Os amigos mais próximos não conseguem entender minha imensa ojeriza e rejeição a ritos, práticas ou quaisquer referências funerárias.
Riem, como se eles também não fossem refratários a tais assuntos, e não compreendem a razão de minhas ferozes críticas e ácidos comentários a respeito da comercial e quase pirotécnica exposição de urnas funerárias nas lojas e boutiques do ramo.
Não imaginam quão sérios são meus impropérios em relação àqueles que fazem da morte e desgraça alheias o seu meio de vida e, indo além, rondam hospitais e casas de saúde como abutres rondam o moribundo animal caído na Savana, à espera de, no momento oportuno, enfiarem seus putrefatos bicos no ânus da infeliz vítima. Porque, num covarde oportunismo, sabem que ali estão as partes moles e fáceis de comer, sem sofrerem, do quase cadáver, a última e instintiva reação de defesa.
Assim são e, assim agem os Urubulinos agentes funerários da atualidade. Se entrincheiram nos arredores dos hospitais e, numa macabra tocaia, apontam seus lânguidos olhares e inauspiciosos desejos em direção daqueles que ali ingressam para tratamento. Hipócrita seria, da parte deles, afirmar que dali, de seus postos de vigília, possam fazer qualquer voto de pronto restabelecimento para seus possíveis futuros clientes.
Ornamentam suas casas de morte, como um shopping ornamenta suas vitrines para uma promoção de dia dos namorados. Dão-lhes títulos chamativos como Funerária Céu Azul e, numa atitude que diria, até anti-bíblica, cometem a proeza de, numa negação do milagre em que Jesus livrou um mortal do alcance de seus algozes funerários, chegam a pomposamente ostentar em sua fachada o letreiro: Funerária São Lázaro.
Esperam tais mercadores da morte que agora, como na antiguidade egípcia, os cidadãos acreditam tanto na vida pós morte a ponto de gastarem uma pequena fortuna na encomenda de um ritual de embalsamamento, na compra de um vistoso sarcófago, ou na construção de vistoso túmulo ?
Nutrem eles vã esperança, em ver um dia, famílias entrarem alegremente nos seus estabelecimentos que têm cheiro de morte e, tomada de impulso consumista, escolher o modelo de caixão mais adequado ao perfil físico de cada um de seus membros ?
Invadem nossos lares através da mídia para, num papel de verdadeiros desmancha-prazeres, sorumbaticamente anunciarem seu reclame: “Compre já seu jazigo com vista para o nascente, garanta agora o desfrute de uma digna e duradoura paz celestial… blá, blá, blá.”
Cá do alto de minha cátedra de medroso-mor, voltada para a discussão do trevoso e arrepiante tema defuntista, creio que tais abordagens absurdas já não cabem, pois a humanidade, na medida que vai se libertando da outrora e certa crença na vida pós morte, vai, cada vez mais, se afastando de tais rituais e se desfazendo de tais apelos.
Tanto assim que, como foi dito, longe vão-se os tempos em que os antigos egípcios se orgulhavam de comprar antecipadamente todos os equipamentos que lhes seriam úteis na acreditada próxima vida e conviviam com seu defunto, em preparativos, até por setenta dias.
Os romanos faziam os túmulos de seus entes queridos nas dependências da própria casa e, alí, o varão da família ficava encarregado de manter sempre ativo o o fogo e o culto ao antepassado, na esperança de que aquele facilitasse os caminhos dos demais que estavam por ir.
Mas cá, do meu mui afastado e cautelar posto de observação de tais assuntos, tenho notado que nos períodos em que a humanidade se afastou de tais cultos e credinces, os cemitérios foram sendo construídos, cada vez mais, em lugares distantes e inacessíveis aos vivos. Quem não conhece uma cidadezinha de interior em que o dito se localiza o mais distante possível e, de preferência, no alto de um morro escarpado. Como se, numa mensagem atávica, aqueles cidadãos estivessem querendo dizer: Os que aqui ficam jamais devem voltar para o nosso meio. Enquanto os que estão no nosso meio só devem vir pra cá, muito contra suas vontades e após a resistência de um cavaleiro cruzado.
Quem não conhece a moderna pressa que, mesmo discretamente, as famílias de hoje têm em se ver livres dos seus mortos?
Então, como costumo afirmar para aqueles amigos que ousam comigo discutir o sepulcral tema, não há notícia de cadáver insepulto a perecer sobre a terra, por haver, o próprio quando em vida, ou sua família, deixado de adquirir com antecedência um vistoso plano funerário daqueles inventados e oferecidos pelos Addams de plantão.
Divertem-se meus amigos, quando defendo a criação de um serviço público que seria encarregado das exéquias de todo e qualquer cidadão, o qual por medida de higiene e espaço deveria ser em forma de crematório, onde todos seriam finalmente revertidos ao original pó.
Então, gostaria de ver até onde iria a criatividade e inventividade dos ditos carcarás funerários, na busca por um substitutivo econômico que continuasse a explorar e abusar de seus semelhantes até em sua derradeira hora.
Posso vislumbrar que agiriam mais ou menos assim:
No meio da futurista sala de mídia, de repente, começa a se materializar a imagem holográfica da soturna figura. Vestes e cartola pretas, tez vampiresca de morto vivo, faz uma dracular mesura com sua capa forrada de cetim vermelho, dá uma funérea gargalhada e em voz tonitroante anuncia:
“ Dê novo brilho às cinzas de seu ente querido, dispomos para pronta entrega, das mais belas e fantásticas cores de purpurina funerária…”

Isaac Sandes – 14/04/2009.

VALE A PENA ESTUDAR?

GEORGE SARMENTO
Semana passada, um grupo de colegas do Ministério Público conversava animadamente sobre a polêmica promoção por merecimento para o cargo de procurador de justiça, ainda sem data para chegar ao fim. Em dado momento, um dos interlocutores, com mais de 30 anos de casa e já avançado na idade, pede a palavra e afirma com a arrogância dos parvos:
- Esse pessoal que tem mestrado, doutorado e especialização pensa que é melhor que os outros. Eu mesmo só votaria em quem dá duro no trabalho, que veste a camisa da instituição. Jamais nessa gente que só pensa em dar aulas nas faculdades.
Embora eu seja um habitué dos bate-papos nos cafezinhos, não estava presente para responder na lata a essa pérola da intolerância provinciana.
Não é a primeira vez que tais assertivas chegam aos meus ouvidos pela boca de testemunhas indignadas com tamanha arrogância. Confesso que não tenho raiva dessas manifestações de raquitismo intelectual. Sei que é produto de mentes esclerosadas e corroídas pelas traças do atraso. Discutir com tais indivíduos é dar-lhes um valor que não possuem. É transformar simples grãos de areia em pedras preciosas. Além do mais, como dizia Oscar Wilde, devemos escolher nossos inimigos pela inteligência. E esse, definitivamente, não é o caso.
O curioso é que o preconceito é dirigido a uma das categorias mais injustiçadas do país: os professores. Justamente àqueles que ganham menos, sofrem com as péssimas condições de trabalho e são vítimas do desaparelhamento da educação no Brasil. Sejamos francos. As dezenas de colegas que exercem o magistério o fazem por vocação e não com o objetivo de auferir lucros, já que o salário de docente é insignificante em relação aos subsídios de promotor ou procurador de justiça. A Constituição Federal assegura o direito de ensinar em instituições de ensino superior, sem que isso configure acumulação ilícita de cargos. Além disso, a atuação na sala de aula é uma das estratégias mais eficientes para estimular vocações e atrair jovens talentosos para a carreira no Ministério Público.
Em 24 anos na instituição, jamais testemunhei um caso sequer de negligência ou desídia em razão de atividades no magistério. Ao contrário, os colegas professores são também profissionais exemplares. Ninguém é obrigado a ensinar em faculdades, fazer pós-graduação ou escrever artigos científicos. Conheço excelentes promotores de justiça que decidiram não trilhar esse caminho e são reconhecidos pela sociedade civil pelo excelente trabalho que desempenham. Mas é justo que os pós-graduados sejam execrados por terem estudado? Serão eles promotores de segunda categoria? Claro que não. Trata-se de discriminação tosca que deve ser rechaçada com veemência.
Recentemente fui convidado pelo Diretor da Escola Superior do Ministério Público, Dr. Sérgio Jucá, para proferir uma palestra sobre questões polêmicas do mandado de segurança. Contava-se nos dedos das mãos o número de promotores de justiça presentes. Pensei cá com os meus botões: é o conferencista que não presta? O tema é desinteressante? A divulgação foi insuficiente? Aí lembrei que acontecia a mesma coisa em outros eventos. Quase sempre foi preciso convocar servidores e estudantes de Direito para garantir o quorum necessário à realização dos seminários.
Por que isso acontece? Simples. A participação em cursos organizados pela ESMPAL jamais foi parâmetro de avaliação de desempenho nas promoções por merecimento. Na magistratura estadual e federal, a aprovação em cursos oficiais, inclusive os promovidos pela Escola Nacional de Magistratura é condição sine qua non para a promoção pretendida. Nunca vi um só juiz melindrado por tais exigências. Sem qualificação profissional o magistrado fica estagnado na carreira. E isso ninguém quer. Se a participação nos cursos da ESMPAL ficasse registrada nas nossas fichas funcionais para fins de promoção a situação seria diferente.
A luta de Maurício Pitta tem sensibilizado a classe pela dimensão coletiva que encarna. As manifestações de solidariedade expressam a insatisfação com os critérios adotados atualmente nas promoções por merecimento. Todos estão acompanhando atentamente o desenrolar dos acontecimentos. Tenho certeza que os integrantes do CSMP, eleitos democraticamente pela classe em eleição disputadíssima, saberão apreciar as candidaturas com impessoalidade e equilíbrio, justificando suas escolhas através de votos fundamentados. O Ministério Público só tem a ganhar com isso. Agora é só esperar para ver.
Forte abraço
George Sarmento