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quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

PROFESSOR EM MONTPELLIER

George Sarmento



É impossível prever a trajetória dos livros. Eles nem sempre dormem nas estantes ou ficam esquecidos em uma caixa de papelão. Uma vez publicados, ganham vida própria, trilham caminhos misteriosos e surpreendentes. Quando escrevi Improbidade Administrativa, em 2002, não tinha a menor idéia das pessoas que iriam lê-lo ou de sua repercussão no sisudo mundo acadêmico. Preocupei-me apenas em denunciar a crescente escalada da corrupção que assola o país e os remédios mais eficazes para combatê-la.

Numa manhã de primavera, propícia para um bom mergulho nas águas cálidas de Guaxuma, recebo uma proposta inesperada: dar aulas na Universidade de Montpellier como professor convidado. O e-mail dizia que eu deveria permanecer um mês proferindo conferências no Instituto Preparatório para a Administração Geral, responsável pela formação da elite do funcionalismo público francês. O convite me pegou de surpresa. Fiquei um pouco receoso. Mas decidi aceitar o desafio, mesmo sabendo que as aulas deveriam ser ministradas em francês para estudantes de relações internacionais e aspirantes à magistratura.

O diretor do IPAG, professor Eric de Mari, havia lido o meu livro e ficara muito impressionado com as idéias expostas. Achava importante promover um debate sobre o perfil do governo Lula, sobretudo as investigações de escândalos financeiros envolvendo recursos públicos. Queria saber como funcionava o sistema brasileiro de repressão à improbidade, à lavagem de dinheiro e ao crime organizado.

A Universidade de Montpellier é uma das mais antigas da Europa. Fundada em 1220, é contemporânea de outras grandes universidades como Salamanca, Bolonha, Sorbonne, Oxford e Cambridge. Por seus corredores passaram intelectuais célebres, entre eles Augusto Comte (1798-1857), estudante de medicina que ficaria mundialmente conhecido como o criador do positivismo e da sociologia.

No século XIX, a Faculdade de Direito abrigou estudantes brasileiros que, inspirados pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, lutavam pelo fim da escravatura e pela proclamação da república. Ao contrário de Coimbra, Montpellier era o palco ideal para discutir as idéias liberais que iriam provocar grandes transformações no cenário político nacional.

Ao desembarcar em Montpellier, eu estava exultante de alegria. O livro atravessara as fronteiras do país e minhas idéias seriam expostas em uma das mais importantes universidades européias. Também me chamava a atenção o interesse que o Brasil despertava entre estudantes e professores. A França estava muito sensível ao fato de um operário, militante do movimento sindical, ter sido reeleito presidente do maior e mais rico país da América Latina.

Montpellier foi fundada no Século X graças ao movimentado comércio de especiarias com o Oriente Médio. Foi completamente devastada pelas lutas religiosas do Século XVI. Sobreviveu a tudo e hoje é a capital da Região Languedoc-Roussillon. É famosa pela efervescência da vida universitária e pela política de integração dos estrangeiros à cultura francesa.

É uma cidade tipicamente estudantil, onde se respira cultura. Suas ruas estão sempre apinhadas de jovens estudantes com suas mochilas nas costas e os olhos cheios de esperança. As livrarias, repletas de leitores ávidos por novidades. Artistas populares atraem multidões com seus animados espetáculos de música, malabarismo e teatro.

A universidade me instalou num simpático apartamento na Rue Baudin, a poucos metros do principal ponto de encontro da cidade: a Place de la Comédie, que abriga o imponente Teatro da Ópera e é cercada por cafés, cinemas, restaurantes e lojas. O que chama mais a atenção é a Fonte das Três Graças, uma alusão às míticas aias de Afrodite – a deusa do amor e da beleza. Também conhecidas como cárites, elas animavam os banquetes, envolvendo os convidados num clima de magia e sedução.

Nas faculdades medievais elas eram a encarnação do trivium: gramática retórica e lógica, artes sem as quais era impossível o exercício da cidadania. Foram imortalizadas por pintores famosos como Botticelli e Rubens. Hoje as três graças representam o savoir-vivre – a fruição das artes, da música e dos prazeres. Na praça elas estão sensualmente abraçadas numa bela escultura que é palco de encontros apaixonados e de eternas juras de amor.

Basta caminhar um pouco mais para, em alguns minutos, avistar o Corum, que é um gigantesco centro de convenções onde acontecem shows, congressos e exposições. Também impressiona o Antigone, um bairro projetado por Ricardo Boffil, construído no estilo neo-clássico entre 1977 e 2000, que abriga residências, lojas e escritórios luxuosos.

Nas tardes ensolaradas os restaurantes a céu aberto são invadidos por animados grupos, que cantam, recitam poesias e falam em voz alta. Nesses momentos é possível sentir a pulsação de uma cidade que celebra diariamente a vida.

Indicaram-me um dos anfiteatros da Faculdade de Direito para a primeira conferência. Os alunos eram candidatos à Escola de Magistratura. Preparavam-se para o difícil concurso público que mudaria para sempre suas vidas.

Não tinha ninguém para me apresentar. Apenas um cartaz na porta indicava que haveria uma exposição de direito comparado animada por um professor brasileiro. Meu nome estava estampado em letras garrafais. Havia alguns jovens sentados nos bancos do corredor, com os quais entabulei uma conversa a fim de tomar maiores informações. Minutos depois entrei no anfiteatro. Era a hora da verdade.

Respirei fundo e tomei assento na tribuna sem saber exatamente por onde iria começar. Sentados nas poltronas, os alunos me olhavam com certa curiosidade. Afinal de contas nunca tinham tido um professor brasileiro e ignoravam completamente o meu idioma. Arrumei os papeis na mesa enquanto se instalava um silêncio absoluto. Deixei de lado as formalidades e fiz uma auto-apresentação, falando um pouco da minha trajetória profissional e do flagelo que a corrupção espalhava nos países em desenvolvimento. Durante duas horas expus o tema e respondi perguntas da platéia. Os debates foram muito acirrados e enriquecidos com relatos de escândalos ocorridos na França e em outros países europeus. Ao final, a representante da turma, uma loira de olhos verdes, pediu a palavra para agradecer minha presença e dizer que tinha sido uma tarde muito produtiva. Fiquei feliz com o elogio e conclui que a barreira da língua não pode ser obstáculo para o encontro de culturas.

No dia seguinte enfrentei a turma de relações internacionais. O grupo preparava-se para a carreira diplomática e estava interessado em discutir o papel do Brasil na América Latina. Nessa ocasião estava acompanhado do professor Regis Marchiaro, que seria o mediador dos debates. Para descontrair, perguntei aos alunos com que país a França tinha a maior fronteira. Hesitação geral. Com o Brasil, respondi. E falei da Guiana Francesa, território ultramarinho localizado na América do Sul. Pouco a pouco o clima ficou descontraído e pude analisar os princípios constitucionais que regem o Brasil na condução da política internacional.

As semanas seguintes transcorreram muito bem. Os alunos estavam motivados e alguns mostravam sincero interesse em visitar o Brasil. Outros queriam fazer intercâmbio com estudantes brasileiros. Eu estava mais familiarizado com a cidade e flanava horas a fio pelas estreitas ruas medievais. À noite jantava em simpáticos restaurantes, onde era possível apreciar a boa cozinha mediterânea acompanhada de um bom vinho do Pays d’Oc.

Na última semana fui visitar o criminalista Edilson Mougenot na cidade de Aix-en-Provence. Eu o havia conhecido dias antes de partir para a França. Em 2007, ele fora convidado para julgar a dissertação defendida pelo advogado Welton Roberto, de quem eu era orientador. Contou-me, na ocasião, que estava de partida para ministrar aulas de direito penal na Universidade Paul Cézanne no mesmo período da minha missão.

Como as cidades eram próximas, combinamos de nos encontrar. Tomei a iniciativa da visita. Edilson estava hospedado no apartamento do professor Jacques Borricand, diretor do Instituto de Ciências Penais e Criminologia. Na casa de seus 70 anos bem vividos, o cicerone é uma pessoa afável e extremamente envolvida com a vida acadêmica. Ainda hoje profere conferências em lugares mais inusitados como o Irã e a China. Entreguei-lhe um artigo sobre a Lei de Improbidade Administrativa e ele logo se prontificou a publicá-lo na Revista do ISPEC.

Aix-en-Provence era uma estação termal onde os romanos vinham repousar no verão. Ainda hoje é conhecida como a “cidade das mil fontes”. Paul Cézzanne é um de seus filhos mais ilustres. O pintor foi um dos principais expoentes do impressionismo francês. Seus quadros estão espalhados pelos mais importantes museus do mundo, inclusive no MASP onde está exposto “O grande pinheiro”.

No segundo dia de visita, nosso cicerone nos convidou para conhecer a Provence. Pegou-nos em seu carro e nos levou para Luberon, uma região montanhosa coberta de vinhedos, vilas pitorescas e comida regional servida ao ar livre. É o lugar perfeito para se contemplar a natureza, fazer longas caminhadas ou passear de bicicleta. Fez questão de nos levar a Lacoste, uma cidade de 400 habitantes, para visitar as ruínas do Castelo do Marquês de Sade, que ficou célebre por seus escritos eróticos em que a dor física era o principal instrumento do prazer sexual.

De volta a Montpellier era tempo de arrumar as malas. Os alunos me ofereceram uma garrafa de Bordeaux, que foi tomado no mesmo dia. Despedi-me calorosamente de toda a equipe do IPAG com a certeza de que tinha feito grandes amigos. Perambulei mais uma vez pelas vielas da cidade, revi os restaurantes preferidos, as algazarras dos estudantes, o perfume de alfazema que exalava das casas centenárias. Mais uma vez arrisquei desvendar o mistério das três graças. Conclui que estar em estado de graça significa celebrar permanentemente a vida, saber que ela é uma dádiva que não pode ser desperdiçada por atitudes mesquinhas, renúncias injustificadas ou culpas eternas.