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sábado, 11 de abril de 2009

CICLÓPIA

ISAAC SANDES
Ciclópia era uma pequenina cidade estado que dispunha, até certo ponto, de uma privilegiada posição política econômica e geográfica no contexto geral da grande pátria denominada Hipnópolis.
À duras penas, conquistara um certo grau de democracia que causava alguma inveja à suas irmãs e vizinhas populações. Democracia esta que seus habitantes envergavam com certo ar de altivez e superioridade. Afinal de contas poucas pequenas cidades haviam conquistado, em toda a continental Hipnópolis, tal aperfeiçoamento em suas instituições, poucas tinham, como Ciclópia, tantas eleições para tantos cargos e posições.
Como seus ancestrais fundadores, os moradores de Ciclópia nunca deixaram de cultuar o antigo hábito de dividir sua comunidade em castas; a dos antigos e a dos modernos. Na maioria das vezes, nos debates políticos os antigos eram jocosamente chamados de ultrapassados e engessados nas teias do tempo, por aqueles modernos mais afoitos, em contrapartida, os antigos, às vezes, colavam nos modernos rótulos de imaturos e inexperientes.
A grande dificuldade para os governantes de Ciclópia, nos últimos séculos, passou a ser, não de ordem material, mas sim administrar o ego de seus concidadãos, pois, paradoxalmente, tais egos estavam sendo afetados por um mal totalmente inusitado que estava corroendo as bases das suas, outrora, pacíficas e construtivas amizades.
Explica-se. Não que o exercício da democracia fosse danoso aos ciclopienses. Ao contrário. O exercício da democracia fez com que os ciclopienses se tornassem conhecidos como os mais engajados cidadãos da imensa nação de Hipnópolis .
Então como explicar-se o aparecimento de tão exdrúxula síndrome que estava corroendo as entranhas da comunidade ciclopiense.
Após intensa e demorada pesquisa o grupo de estudos, composto por psicólogos que foram nomeados para tal, apresentou a toda comunidade, o mecanismo da cruel mecânica que engendrava e disparava a inusitada síndrome entre os cidadãos de Ciclópia.
Após várias sessões de análise a que submeteram os mais diversos grupos de Ciclopienses, os estudiosos da psique humana concluíram que tais cidadãos eram portadores de uma raríssima e nunca antes catalogada síndrome: A síndrome da urna recorrente.
Em seus exaustivos estudos e pesquisas, o grupo de trabalho descobriu que, no exercício febril da democracia, os ciclopienses estavam passando pelo estresse das eleições até três vezes em um único ano. E que, em razão do amplo geral e irrestrito debate democrático, várias feridas que calavam fundo na ética na moral e na vida pessoal de cada um dos cidadãos, eram abertas por ocasião de cada certame.
Pior, verificou-se mais, a recorrência e proximidade dos pleitos que, quase se atropelavam naquela comunidade, não permitiam que nenhuma ferida anterior cicatrizasse e já, em seguida, novas cutiladas que punham a carne já exposta em estado lastimável e a alma de cada um em verdadeiro estado de guerra. Tantas eram as agressões mútuas provocadas pela recorrência das urnas que, como numa mesa de comensais, se cada um adivinhasse o pensamento do outro, aquele encontro terminaria como um encontro de canibais.
Dentre as descobertas feitas pelo grupo de estudos, que culminaram no diagnóstico da síndrome da urna recorrente, uma chamou a atenção pelo que continha de inusitada e insidiosa. Descobriu-se que no último pleito, um dos candidatos tendo concluído um curso intensivo de aprendiz de feiticeiro com o mundialmente conhecido Bruxo Gargamel, numa espécie de exibicionismo para o seu amado mestre, por ocasião da elaboração de seu TCC, criou e distribuiu entre seus acólitos e eleitores, um espelho mágico que tinha o perverso poder de distorcer a imagem de suas personalidades. Ao se confrontarem com o dito espelho, medíocres se enxergavam capazes, iníquos se viam como indispensáveis, infiéis como escudeiros, traidores como leais e chacais se viam como verdadeiros cordeiros.
Passado o pleito, o encanto e o espelho se quebraram e todos retomaram suas verdadeiras personas, fato que, por sua agudeza, disparou o gatilho biológico de algo que já vinha se desenvolvendo há bastante tempo no interior de cada um dos cidadãos ciclopienses: A síndrome da urna recorrente.

Isaac Sandes
Maceió. 10/04/09

quinta-feira, 9 de abril de 2009

A DIVINA EMBRIAGUEZ

COARACY FONSECA

Há um provérbio escocês que diz: “desconfie do homem que não bebe”. É bem verdade que a Escócia produz um dos melhores destilados do mundo, do qual sou um moderado apreciador, porém, a máxima vai além da conotação jocosa, e desafia certa especulação filosófica, de mesa de bar. Não irei falar sobre os grandes malefícios que o álcool tem causado à saúde pública, a exigir vigilância permanente das autoridades e das famílias, pois tudo em excesso, mesmo o remédio, transmuda-se em veneno. O comedimento deve plasmar a conduta humana.

Exagero à parte, quem não bebe, de fato, vive na sombra, encastela-se numa arrogante racionalidade, e não permite nem a si, nem ao outro, perscrutar as entranhas do seu ser, os recônditos da alma, onde, muito amiúde, habitam fantasmas, demônios e também a energia criadora da beleza, que faz bem. O que seria deste mundo sem as belas-artes, além da música e da poesia?

A chamada mente racional é apenas um equipamento, utilíssimo, diga-se de passagem, para a sobrevivência na selva que, pelo seu próprio engenho, transformou-se em pedra. Porém, como pintou, com tinta de ouro, o gênio de Victor Hugo, após alguns goles de vinho: “A realidade é a alma. O verdadeiro homem é o que está debaixo do homem”. A criatura humana, se pudéssemos vê-la como realmente é, ao revés de homem ou mulher, mostrar-se-ia um pássaro de cantar mavioso, uma águia, um colibri, uma flor, um corcel ou um chacal sedento de sangue.

A embriaguez é o reencontro com o mundo ancestral, o mundo dos instintos, sem qualificações éticas; o mundo dos sentidos, sem a craveira do senso moral. Por isso, antes de chamar alguém de amigo, ou de permitir-lhe a entrada no lar, leve-o a um templo de Baco – sem está ao volante, é claro –, embriague-se e embriague-o, como nos rituais da antiguidade e, certamente, emergirá do fundo d’alma a natureza animal do conviva, já montado na ema, a desvelar o seu verdadeiro ser, “o homem que está por debaixo do homem”.

Não por acaso, escreveu Dostoiévski, em clássico universal: “Entre os russos, em todas as partes se acolhe o bêbado com certa simpatia; no presídio quase lhes prestavam homenagem. Havia qualquer coisa de aristocrático na bebedeira dos presidiários. Assim que se embebedava, o preso começava logo a exigir música. Havia no presídio um polaco desertor, muito repugnante, mas que tocava violino, possuindo um que era mesmo seu e representava toda a sua fortuna”.

Depois de muito meditar, inferi que a embriaguez não pode ser banalizada, por ser divina, e como não ando a cata de novas amizades, passei a respeitá-la como um genuíno ritual, por isso, só me embriago em templos seletos, com amigos verdadeiros, cujos instintos e sentidos já foram aprovados no teste do vinho, e não deixo jamais, ao alfim da festa, empós vários brindes – as libações modernas – de dançar ao som de Zorba.

Enfim, desconfie sempre do homem que não bebe, porém, jamais deixe de ter com ele relações fraternas, afinal, somos seres civilizados.

Coaracy Fonseca

domingo, 5 de abril de 2009

OS ESCRAVOS MODERNOS

O que é ser livre? Neste artigo, o colega Coaracy Fonseca analisa as raízes da servidão e nos mostra que a liberdade de expressão é um poderoso instrumento de combate à tirania do espírito.

COARACY FONSECA


‘Todos nós descendemos de escravos, ou quase escravos. Nossas autobiografias, caso retrocedessem o suficiente, começariam por explicar de que forma nossos ancestrais chegaram a ser mais ou menos escravizados, e até que grau nós nos libertamos dessa herança”. Com esta frase, Theodore Zeldin, eminente historiador de Oxford, inicia o seu agudo estudo de caso, encartado em livro, sobre os reflexos inconscientes da escravidão no mundo moderno.

Destaca o autor, que no passado os serem humanos tornavam-se escravos por três motivos: a) o medo, não queriam morrer, por maiores sofrimentos que lhes causasse a vida; b) voluntariamente, mesmo esmagados pela depressão, para escaparem às responsabilidades; b) o terceiro tipo de escravo foi o ancestral do ambicioso executivo e burocrata de hoje. Homens livres se recusavam a trabalhar para outros, por isso, se recusavam a ser escravos do imperador, que inaugurou, então, o serviço civil que utilizava escravos. Os impérios otomano e chinês foram, afirma o autor, frequentemente mantidos por escravos comuns, que ascendiam aos mais altos postos.

Não é fácil exorcizar os fantasmas do passado, encarcerados em nosso inconsciente. Ser livre significa romper, dentre outras, a barreira do medo, tomar para si as responsabilidades e encarar o trabalho como uma dimensão da própria humanidade e, deste modo, buscar sempre a valorização - que não se confunde com o exibicionismo - não raras vezes, revelador da baixa auto-estima-, e ter a cidadania, sobretudo, respeitada pelo gestor da organização. É ter consciência de que o “chefe” não é o imperador, mas um outro trabalhador com funções definidas, além das quais resvala no arbítrio e abuso de poder, num verdadeiro assédio moral.

Inúmeras corporações são prenhes de escravos modernos. O medo da perseguição, manifesta ou velada, do corte de vantagens pecuniárias ou da atribuição de mais trabalho, transformam alguns indivíduos em elementos servis, complacentes, em verdadeiros cordeiros apascentados pelo filho de Posidão, o ciclope Polifemo.

A culpa é da memória genética, dizem os doutos. O medo transforma indivíduos, inclusive, em bobos da corte, bajuladores – escravos da mais alta periculosidade -, e espiões do grande rei. Quanto aos bajuladores, Pierre Maréchaux legou-se interessante abordagem: ”ele trabalha, tal como oculista astuto, na esfera dos espelhos deformantes e no mundo dos reflexos falsos. Um rei que cantarola se torna um Apolo, um potentado que se embriaga é feito deus das vinhas, um príncipe na palestra tem tudo de um Hércules”.

Eu, de minha parte, procuro ser vigilante aos impulsos ancestrais, e escapar da armadilha tão bem exposta por Theodore Zeldin, na seguinte passagem: “A inveja cegava-os para o sofrimento comum. Nas fazendas americanas era possível encontrar escravos africanos chicoteando outros escravos africanos. Em outras palavras, uma vez estabelecida uma instituição, mesmo os que dela padecem encontram maneiras, por mais sutis, de explorá-la, e assim ajudam-na a sobreviver”. Demais disso, não me sai da cabeça a frase de Publilius, um escravo sírio: “O cúmulo da miséria consiste em depender da vontade de outrem”.

Viva o Império das Leis e da Consciência!