quarta-feira, 17 de setembro de 2025

AÇÕES AFIRMATIVAS: POLÍTICAS DE COTAS NAS UNIVERSIDADES


A implementação do direito fundamental à educação de boa qualidade, sobretudo no ensino fundamental e médio, tem sido um dos maiores fracassos das políticas públicas brasileiras. Pesquisa encomendada pela consultoria britânica Economist Intelligence Unit(EIU), em 2012, coloca o Brasil em penúltimo lugar no ranking global de qualidade da educação. Segundo dados do IBGE, a taxa de analfabetismo de nordestinos acima de 15 anos é de 16,9% (em Alagoas, o percentual é de 21,8%). Tais índices colocam o ensino público brasileiro entre os piores do mundo. 

Diante desse cenário desolador, o Governo brasileiro busca soluções para reverter a situação: programas sociais, políticas públicas, campanhas, ações afirmativas. Entre as medidas adotadas está o sistema de cotas para universidades federais, que, paulatinamente, foram ampliadas para outros setores - trabalho, cultura, comunicação e serviço público, beneficiando grupos vulneráveis como alunos oriundos de escolas estatais, índios, mulheres, pessoas com deficiência, afrodescendentes etc. O STF tem se manifestado pela constitucionalidade da política de cotas (RE 597285 e ADPF 186). Mas as controvérsias sobre o tema aumentam a cada dia, provocando acalorados debates jurídicos. 

A política de cotas tem se expandido numa velocidade impressionante. E não é apenas no setor educacional; agora as fronteiras foram ampliadas para concursos públicos. São leis federais e estaduais que reservam vagas a grupos étnicos e segmentos sociais historicamente discriminados no Brasil. Recentemente foi editada a Lei n. 12.711, de 29 de agosto de 2012, que reservou 50% das vagas em universidades e escolas técnicas federais para negros, pardos e índios, metade das quais destinadas aos egressos de famílias com renda mensal inferior a 1,5 salários-mínimos mensais. Recentemente, a Lei 12.990, de 09 de junho de 2014, adotou o modelo para o acesso a cargos efetivos federais. Em todos os níveis, o processo de produção legislativa caminha nesse sentido. 

A igualdade de oportunidades é um dos grandes pilares do Estado Constitucional de Direito. Os direitos sociais asseguram a todos a possibilidade de obter do Estado idênticos “pontos de partida” para que possam se desenvolver física, moral e profissionalmente de acordo com os talentos e projetos de vida. Assegurados esses pressupostos básicos ao desenvolvimento pessoal, cabe a cada cidadão ocupar os espaços almejados pelo esforço, dedicação e competência.

Os regimes democráticos também estão assentados sobre outro pilar importantíssimo: meritocracia. As vagas em renomadas instituições de ensino superior, bem como a ocupação de cargos públicos, são constitucionalmente destinadas aos candidatos mais bem preparados do ponto de vista científico e técnico. O concurso ainda é a forma mais eficaz para o recrutamento de estudantes e funcionários públicos. Os excessos na reserva de vagas, ao invés de corrigir injustiças históricas, poderá criar privilégios e causar prejuízos irreparáveis para milhares de brasileiros que optaram pelo caminho do estudo e da pesquisa. É por isso que esse tema é tão polêmico e frequentemente judicializado. 

Na hermenêutica constitucional contemporânea, a igualdade perante a lei não pode ser interpretada de forma absoluta, ilimitada. O mesmo raciocínio pode ser aplicado à meritocracia. O tecido social é formado por grupos vulneráveis que precisam ser protegidos pelas leis brasileiras. Os benefícios que lhes são concedidos não podem ser vistos como privilégios, mas como vantagens legais que visam a atingir a igualdade de oportunidades. Gosto muito de uma metáfora recorrente na doutrina italiana: as normas de calibragemEncher o pneu vazio assegura a estabilidade de todo o veículo, permitindo que trafegue em segurança. Não significa a exclusão daqueles que se encontravam calibrados. As leis que estabelecem cotas devem seguir a mesma lógica: permitir que vítimas da desigualdade, da discriminação, do preconceito, tenham reais chances de participar ativamente da sociedade mediante ações afirmativas racionais e eficientes.

Portanto, a questão não está na existência da política de cotas, mas na qualidade do modelo adotado. O legislador tem competência para editar leis que integrem os hipossuficientes ao mundo profissional, incluindo a reserva de vagas em concursos públicos. São normas corretivas de injustiças, verdadeiros compromissos do Estado de Bem-Estar Social. Contudo, algumas perguntas se impõem. Qual o percentual de vagas a serem reservadas? Como atingir adequadamente a clientela para a qual as leis e as políticas públicas foram concebidas? Como fundamentar e justificar a política de cotas no Brasil?

A missão de enfrentar esse instigante desafio foi aceita por Marcus Rômulo Maia de Melo, que produziu a obra intitulada “Cotas Sociorraciais – As imperfeições do programa brasileiro de ação afirmativa”, originariamente redigida como dissertação de mestrado em Direito da Universidade Federal de Alagoas. O autor debruçou-se sobre as principais controvérsias que envolvem o tema, apresentando respostas convincentes e proposições concretas, numa linguagem simples, objetiva e baseada em sólida fundamentação teórica. Trata-se de pesquisa de grande valor científico pela coerência das ideias, abordagem crítica e argumentação convincente.

 A obra está articulada em torno de cinco capítulos que enfrentam aspectos controvertidos das ações afirmativas no sistema jurídico brasileiro. O autor desenvolve uma crítica ao modelo construído no país, incluindo a inconsistência dos parâmetros adotados pelo STF para a identificação racial, bem como os excessos na fixação do percentual das cotas nas universidades e serviços públicos. Analisa outros fatores que orientam as políticas de cotas socioraciais, apresentando proposições racionais e coerentes para enfrentar o problema. 

A legitimidade das políticas de cotas é analisada sob o prisma das mais importantes teorias da justiça: utilitarismo, igualitarismo, comunitarismo, multiculturalismo e enfoque liberal. O autor disseca as correntes teóricas demonstrando seus aspectos positivos e negativos, não se esquivando de tomar posições corajosas em relação a elas. Embora partindo de pressupostos distintos, essas correntes do pensamento político apresentam um ponto de convergência: a legitimidade das políticas de cotas.

Marcus Rômulo sustenta que a teoria liberal-igualitária é a que melhor justifica a ação afirmativa relativa à instituição de cotas. Trata-se de doutrina que está fundamentada na noção de equidade, de justiça distributiva, cuja finalidade primordial é a inclusão social das minorias, sobretudo dos grupos vulneráveis. Manifesta-se como verdadeira compensação para segmentos historicamente prejudicados pelos sistemas políticos, e que agora terão as condições necessárias para ocupar espaços que seriam seus, caso não tivessem sido vítimas da discriminação.

Os opositores das políticas de cotas frequentemente evocam a violação ao princípio da igualdade jurídica, em razão do tratamento diferenciado que o Estado assegura a determinados setores da sociedade. Afirmam que a ocupação de espaços em universidades e serviço público deve se fundamentar exclusivamente na meritocracia. As vagas só deveriam ser preenchidas pelos mais aptos ao exercício das funções. No Brasil, tal perspectiva perdeu força nas últimas décadas, sobretudo com o advento da Constituição de 1988.

Entretanto, a forma como as cotas serão distribuídas ainda é o principal problema a ser enfrentado. A implantação de programas dessa natureza deve ter como a regra geral o recrutamento por concurso público em que prevaleça o mérito. O princípio da igualdade de oportunidades mobiliza milhares de jovens no Brasil a buscar o caminho do estudo e do aprimoramento profissional para ter acesso a um espaço profissional adequado, fruto de seus esforços pessoais, sobretudo as incontáveis horas de estudos para cobrir o conteúdo programático das disciplinas exigidas. A fixação do número de vagas para cotistas tem de ser feita com racionalidade para evitar que a exceção se transforme em regra.

É compreensível que Marcus Rômulo proponha a ponderação como elemento hermenêutico norteador tanto da fixação de vagas em universidades como no recrutamento de servidores públicos. A ponderação surge como uma bússola que deve guiar tanto os legisladores como os aplicadores do direito. Graças a autores como Ronald Dworkin e Robert Alexy, que influenciaram profundamente renomados publicistas brasileiros e ajudaram a construção de sólida jurisprudência, que auxilia a solução de casos complexos, quase sempre envolvendo questões de grande interesse social.

Marcus Rômulo demonstra que a ponderação é o melhor caminho para proteger a igualdade fática – princípio reitor da política de cotas – sem anular o conteúdo essencial da igualdade jurídica (que tem na meritocracia sua principal justificativa). Amparado pelos ensinamentos de Rawls, defende a igualdade democrática: a norma jurídica deve estabelecer o regime de cotas satisfaça as expectativas dos grupos desfavorecidos, criando-lhes reais condições de acesso ao ensino de boa qualidade e ao emprego digno. Ao invés de privilégios, equidade; ao invés de violação à igualdade perante a lei, equilíbrio de pontos de partida. É evidente que, como medida excepcional e temporária, as vagas para os cotistas não podem ser superiores às oferecidas para os demais candidatos. Atitude diversa subverteria o princípio constitucional do concurso de provas e títulos, prejudicando os mais aptos para as funções públicas.

A escolha da clientela me parece outra questão extremamente relevante. Diante dos vários modelos propostos, Marcus Rômulo associa-se à cota social, que toma como parâmetro a renda familiar para priorizar os candidatos oriundos dos extratos mais pobres da sociedade, em sua maioria alunos das escolas públicas. Em sua opinião esse critério deveria ser regra em todos os certames. Porém admite como legítimas as chamadas cotas raciais, cujos candidatos seriam admitidos pelo critério de autodeclaração, com a dispensa de perícia étnica. Ambos os modelos se justificam pela superação das desigualdades de oportunidades tanto sociais como raciais estimuladas por um modelo político econômico marcado pela discriminação, clientelismo e apadrinhamento.

O texto produzido por Marcus Rômulo é corajoso e inovador. Preenche uma lacuna na literatura jurídica e lança luzes sobre as formas de inclusão social através das ações afirmativas. É evidente que o sistema de cotas, por si só, não é capaz de reduzir o déficit da qualidade do ensino público brasileiro. A melhoria das escolas estatais depende de grandes investimentos em infraestrutura e formação do corpo docente, medidas que parecem não ser prioridades de governo. Mas não deixa de ser um passo no tortuoso caminho para a justiça social, o fortalecimento da cidadania e reconhecimento das injustiças ancestrais.

Os resultados das políticas de cotas executadas no Brasil ainda estão sendo analisados por sociólogos e educadores. Desde a iniciativa pioneira da UERJ, em 2002, a experiência tem se mostrado positiva, inclusive em relação ao desempenho dos alunos-cotistas das universidades. Ao contrário do que muitos pensavam, as instituições de ensino superior mantiveram o mesmo nível de excelência após a admissão dos alunos-cotistas. Essa realidade descontrói a tese de setores conservadores que sustentavam tratar-se da institucionalização do racismo e da violação da igualdade perante a lei. A vitória do igualitarismo sobre o preconceito é um grande passo para o amadurecimento da democracia brasileira, cada vez mais inspirada em princípios como a dignidade humana, a solidariedade e a igualdade.

Tive a honra de ser orientador do autor e acompanhar de perto a evolução do projeto de pesquisa, agora transformado em livro de estreia. O texto é produto de profundas reflexões e reflete seu amadurecimento intelectual e teórico. Tenho certeza de que as ideias expostas contribuirão para o aprimoramento das políticas de cotas sociorraciais, sobretudo na difícil tarefa de conciliar a oferta de vagas aos beneficiários da ação afirmativa com a necessidade de preservar a natureza dos vestibulares e concursos públicos, que buscam selecionar os candidatos intelectualmente mais preparados pela adoção de critérios isonômicos e meritocráticos.

Maceió, 2013.

 

 

 

 

 

DIREITOS CULTURAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS

 

Conheci Laryssa França na Faculdade de Direito de Alagoas, onde tive a alegria de ser seu professor no curso de graduação em Direito e, posteriormente, seu orientador no Mestrado da Universidade Federal de Alagoas. Desde cedo demonstrou grande vocação para as artes e literatura, tornando-se uma talentosa pianista, poetisa e pesquisadora cultural. Atualmente é professora universitária de grande prestígio, além de autora de diversos artigos em importantes periódicos. Fiquei muito feliz ao ser convidado para prefaciar seu livro de estreia, fruto de anos de investigação científica, cujo resultado agora é apresentado ao grande público.  

 

A obra “Direitos Culturais e os desafios das políticas públicas na proteção do Patrimônio Cultural” trata com originalidade tema atual e controvertido, uma vez que a efetividade dos direitos culturais implica não apenas prestações estatais positivas, sobretudo políticas públicas consistentes, como também a participação ativa da sociedade civil na preservação do patrimônio histórico, artístico, cultural, estético, paisagístico do país, nos termos previstos na Constituição Federal.

 

Articula-se em torno de três conceitos centrais: cultura, patrimônio cultural e políticas culturais. Na primeira perspectiva, a autora desenvolve a ideia de cultura, enfatizando a pluralidade de significados e abordagens distintas pelas ciências sociais, como a sociologia, antropologia, filosofia e direito. 

 

Com relação ao patrimônio cultural, sustenta sua natureza de direito supraestatal, inclusive demonstrando como as Nações Unidas construíram um sistema de tutela dos bens e valores que dão o substrato às identidades nacionais, buscam preservar e proteger monumentos de arte e de história, o patrimônio imaterial, os bens culturais e naturais etc. 

 

Finalmente analisa de que forma as políticas culturais podem ser determinantes para a efetivação desse conjunto de direitos fundamentais de hierarquia constitucional no sistema jurídico brasileiro.

 

Os direitos culturais – que têm espaço normativo privilegiado no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966) – estão constitucionalizados no Brasil, implicando a obrigatoriedade de adoção de políticas públicas consistentes e voltadas de seu reconhecimento, proteção e garantia. 

 

Laryssa França analisa a forma pela qual os direitos culturais – com ênfase na preservação patrimonial – evoluíram no constitucionalismo brasileiro a partir da Constituição de 1934, passando pelas posteriores cartas de 1937, 1946 e 1967. Com relação à Constituição de 1988, debruça-se com profundidade sobre o conteúdo dos artigos 215 e 216 que normatizam os direitos culturais, apresentando seus principais fundamentos, inovações e críticas.

 

 A autora investiga os princípios que norteiam essa categoria de direitos em sua dimensão normativa e axiológica, além de apresentar os pilares que sustentam a visão holística de meio ambiente cultural por ela defendida. Da mesma forma propõe caminhos para a democratização da cultura, através da educação ambiental e patrimonial, assegurada a todos os brasileiros. 

 

Ao debruçar-se sobre o aspecto normativo, trata de temas controvertidos como competência administrativa, instrumentos acautelatórios, bem como os mecanismos de tutela judicial e extrajudicial do patrimônio cultural. Na dimensão administrativa, insiste na necessidade de políticas públicas consistentes em todos os níveis federativos, o que implica vontade política, formação de pessoal qualificado, continuidade dos projetos, participação efetiva da sociedade, além da alocação dos recursos financeiros necessários ao seu financiamento.

 

Na parte final, apresenta um interessante estudo sobre o Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC), cujo objetivo central é a captação de verbas para o setor cultural, mediante três mecanismos: o Fundo Nacional de Cultural (FNC), os Fundos de Investimento Cultural (FICART) e os polêmicos incentivos fiscais. No capítulo apresenta e analisa as principais críticas feitas à Lei Rouanet no que tange ao financiamento de atividades culturais, sobretudo por pessoas jurídicas, bem como as possíveis soluções de seu aprimoramento. 

 

O Sistema Nacional de Cultura (SNC) e o Plano Nacional de Cultura (PNC) foram amplamente examinados em seus aspectos formais e práticos, com foco nas dificuldades de implementação das políticas públicas relacionadas ao Patrimônio Cultural, à educação patrimonial e a própria implementação sistêmica das políticas culturais. 


O texto é claro, preciso, fluido, objetivo, linear - o que facilita a compreensão de seu conteúdo. O tema é problematizado e examinado sob diversas perspectivas. Tudo isso dá ao texto a densidade necessária para explicar fenômenos e apresentar proposições racionais, apontando caminhos a serem trilhados para a concretização dos direitos sociais no Brasil.


A mensagem subjacente do texto é o alerta de que a preservação do patrimônio cultural é incontornável para a manutenção das tradições, valores, costumes e expressões artísticas de um povo. Dela depende a própria identidade da nação, que deve sempre se apoiar na diversidade e no diálogo intercultural. Daí a importância de políticas públicas voltadas para a valorização dos bens culturais, a conservação de sítios de valor histórico, do folclore, da arte popular, e tantas outras formas de expressão. Tudo isso só é possível com o engajamento da sociedade civil na promoção, fiscalização e democratização das medidas destinadas a efetivar os direitos culturais no Brasil.

 

As reflexões desenvolvidas pela autora baseiam-se em riquíssima bibliografia nacional e estrangeira. Terminou por produzir um trabalho acadêmico alentado, de indiscutível qualidade científica, integridade intelectual, profundidade e ineditismo.

 

Tenho a convicção que se trata de importante contribuição científica no campo do direito constitucional, que tem diante de si o enorme desafio de concretizar o conjunto de prerrogativas e princípios essenciais ao fortalecimento e sobrevivência das manifestações culturais que expressam a identidade do povo brasileiro. 

 

Maceió, 2023

 

terça-feira, 16 de setembro de 2025

SOCIOLOGIA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

George Sarmento

 

 

    No Brasil, as políticas públicas tornaram-se um dos temas mais importantes para a efetividade dos direitos econômicos, sociais e culturais. Mais do que nunca o acesso à saúde, moradia, educação, transportes, infraestrutura, trabalho, previdência social, meio ambiente e patrimônio histórico depende de sua adequada implementação. A luta pelo acesso dos cidadãos brasileiros a serviços públicos eficientes, de boa qualidade, e, sobretudo, pela concretização dos direitos humanos fundamentais na realidade social, fez surgir o fenômeno da judicialização da política, aumentando extraordinariamente o controle judicial sobre as decisões dos gestores públicos, hoje vinculados à Constituição Dirigente, que estabelece as opções políticas a serem seguidas em todos os níveis de governo.

 

Cada vez mais as políticas públicas, os programas governamentais e as ações afirmativas são questionadas no Judiciário. Proposições como o direito ao mínimo existencial, reserva do possível, proibição do retrocesso social, proibição do excesso e proibição de proteção deficiente, recheiam os discursos neoconstitucionalistas, comprometidos com a efetividade dos direitos sociais, em sentido amplo. A Nova Hermenêutica Constitucional também contribui para a retórica da efetividade, trazendo para o debate jurídico o princípio da proporcionalidade, a interpretação de princípios, regras e valores – tudo para assegurar maior racionalidade às decisões jurisprudenciais.

 

Entretanto, ainda hoje prevalece na doutrina jurídica a ideia de que o Estado é o único responsável pelas prestações positivas (deveres estatais objetivos). J.J. Gomes Canotilho reconhece a existência de direitos originários a prestações quando, entre outras coisas, existe o dever do Estado de criar as condições materiais, indispensáveis ao seu exercício*. Cristina Queiroz, outra jurista portuguesa é taxativa ao afirmar que os “direitos sociais constituem obrigações de prestações positivas cuja satisfação consiste em um facere, uma ação positiva a cargo dos poderes públicos**”. Essa vertente é seguida por grande parte da doutrina brasileira, que sustenta a tese de direitos prestacionais dirigidos ao Estado por força de disposição constitucional***.  Na jurisprudência brasileira, o Supremo Tribunal assentou a convicção de que cabe ao Estado a satisfação dos direitos econômicos, sociais e culturais (ADPF 45). Enfim, nesse particular o Estado é o protagonista absoluto da efetividade.

 

Tais concepções têm como fundamento a crença no “Estado todo poderoso” – o Estado Providência – que conduz  as políticas públicas de implementação progressiva dos direitos sociais no Brasil. A sua atuação nesse campo passa pela também pela atuação do Judiciário, sobretudo em casos controversos  em que a efetividade dos direitos sociais está em risco, ainda que para isso interfira em aspectos importantes da gestão pública em nome de imperativos constitucionais inegociáveis.

 

A obra Sociologia da Ação Pública, que traduzi em língua portuguesa, se propõe a quebrar alguns paradigmas, até então cristalizados nas reflexões dos mais importantes juristas brasileiros.  Seus autores, Pierre Lascoumes e Patrick Le Galès, professores do renomado Instituto de Ciências Políticas de Paris, sustentam, já no início da obra, que o modelo clássico de políticas públicas conduzidas exclusivamente pelo Estado está completamente ultrapassado, em virtude das constantes interações entre atores públicos, privados, instituições financeiras, corporações internacionais, organizações não governamentais e agências multilaterais, com poderes de influenciar as estratégias, os projetos e os resultados. 

 

Também chamam a atenção para as sequências que envolvem a implementação das políticas públicas, em que um conjunto de atores públicos (Secretários de Estado, Ministros, Comissões de licitação, funcionários de alto escalão) assume a condução das várias etapas da execução de projetos sociais. Essa visão retrata a distância entre a decisão do governante sobre determinado desafio social e o que sucede após o início dos trabalhos. A compreensão desse fenômeno, em sociedades complexas e extremamente compartimentalizadas, produzirá importantes efeitos nas investigações de improbidade administrativa, facilitando a fixação das responsabilidades civil, penal e administrativa dos agentes públicos envolvidos em atos de corrupção. 

 

O conjunto de interações tem, pouco a pouco, substituído a expressão políticas públicas por ação pública, considerada mais adequada para definir esse fenômeno contemporâneo. Políticas públicas têm abrangência mais restrita na medida em que implicam exclusivamente a intervenção do Estado, ações governamentais, atuação setorial das autoridades etc. Ação Pública, por sua vez, se aplica não só à atuação da Administração Pública, mas também a de outros atores públicos ou privados originários da sociedade civil, que agem conjuntamente em busca de objetivos comuns, sobretudo a efetivação dos direitos sociais. Em outras palavras, ambas atuam sob perspectivas distintas. A primeira é substancialmente estato-centrista, enquanto a segunda, leva em consideração a grande diversidade de atores e formas de mobilização que interagem e se articulam para resolver determinado problema público. Dessa forma, a obra busca conciliar tais abordagens em torno da chamada Sociologia Política da Ação Pública.

 

O método de análise dessa disciplina fundamenta-se em grandes rupturas com paradigmas tradicionalmente sedimentados na análise das políticas públicas. Em primeiro lugar, o abandono da crença no voluntarismo político, que assegura grande popularidade dos líderes, partidos ou tecnocratas, apresentados como benfeitores do povo ou “salvadores da pátria”, sempre agindo em nome do bem comum. Em segundo lugar, o rompimento com a ideia de unicidade do Estado, imparcial, racional, detentor do monopólio das políticas públicas, mas uma estrutura administrativa que é fortemente influenciada por grupos de pressão que atuam em diversos setores a gestão pública. Por fim, a descrença do fetichismo da decisão dos governantes, na medida em que, frequentemente, esbarra em processos de implementação defeituosos, confusos, fluidos, com poucos resultados práticos.

 

Embora não exista uma definição consensual de políticas públicas, muitos estudiosos procuraram estabelecer critérios identificadores, que tornam o seu conteúdo bastante complexo. Reproduzo aqui o conceito de Richard Rose: política pública “é um programa de ação governamental e uma combinação específica de leis, destinação de recursos financeiros, administrativos e humanos para a realização de objetivos mais ou menos definidos com clareza”. Mas essa proposição ainda está longe de ser aceita pelos sociólogos. Os autores desta obra enfrentam esse problema, apresentando dimensões específicas acrescentadas por outros estudiosos. Entretanto, de forma criativa, propõem o Pentágono das Políticas Públicas, composto por cinco elementos articulados entre si (atores, representações, instituições, processos e resultados), que, juntos, permitem uma análise bem precisa da ação pública.

 

governança é outro conceito extensamente trabalhado na Sociologia da Ação Pública. Isso decorre da constatação do fracasso de diversas políticas públicas, em razão de problemas técnicos, falha de planejamento, implementação deficiente e resistência dos grupos de interesse com capacidade de bloquear reformas. É aí que surge a noção de governança como um instrumento de coordenação dos atores, dos grupos sociais e das instituições governamentais a fim de construir coletivamente objetivos, metas e resultados que representem o consenso das forças vivas da sociedade. Ela em uma ambiência multiníveis, multiatores e multiformes. Na verdade, ela implica um conjunto de procedimentos que possibilitam modalidades e formas de arranjos sociais em um ambiente concorrencial, em respeito aos princípios democráticos, a proteção dos direitos humanos, o compromisso com a preservação do meio ambiente, o combate à fome, a pobreza e as desigualdades entre os seres humanos. Nesse aspecto aconselho a leitura do documento intitulado Princípios de Governança Corporativa da OCDE, 2004. 

 

Pierre Lascoumes e Patrick Le Galès demonstram com clareza que a análise das políticas públicas sempre gravitou em duas dimensões: (1) a abordagem top down (de cima para baixo), isto é, partem das estruturas mais elevadas do poder estatal, funcionários de alto escalão, respeitáveis grupos de tecnocratas e suas decisões para solucionar problemas públicos; e (2) abordagem bottom up (de baixo para cima), ou seja, o estudo da implementação, das consequências e dos fracassos das políticas públicas preponderam sobre sua planificação pelas instâncias estatais de todos os níveis (federal, estadual ou municipal). Os seguidores dessa orientação teórica não se interessam pelas boas intenções dos líderes ou gestores públicos, mas a forma como foram implementados os projetos e programas sociais, seus defeitos e suas virtudes.  

 

 Na perspectiva botton up, os fracassos das políticas públicas passaram a ser explicados sob três aspectos: inefetividade,ineficácia e ineficiência. Por inefetividade devemos entender falhas na implementação daquilo que foi planejado, a exemplo de ausência de decretos para regulamentar leis existentes, entraves burocráticos como a demora nas desapropriações nas concessões de licença e outros obstáculos que impedem a realização adequada dos trabalhos; já a ineficácia é a constatação de que os resultados obtidos depois da implementação da política pública foram insatisfatórios; por fim, a ineficiência acontece quando o volume de investimentos destinados a determinada política pública não causa o impacto esperado, que é extremamente inferior às expectativas do governo e dos destinatários.

 

Pesquisas realizadas nos Estados Unidos e na Europa buscaram imprimir um forte grau de racionalidade nas políticas públicas. Quase todas as correntes verificaram a insuficiência da planificação exclusivamente baseada em organogramas hierárquicos, na atuação mecanizada dos funcionários, presos a esquemas operacionais rígidos e inflexíveis. A grande novidade foi a existência de espaços em que os atores poderiam agir com determinada autonomia, elaborar estruturas ou conceber sistemas originais para atingir melhores resultados. Esse espaço de liberdade se justifica pelo fato de que os programas governamentais estão repletos de ambiguidades, omissões, contradições, sem rigorosa repartição de competências. Em outras palavras, as pesquisas voltaram-se para os executores, como elementos essenciais ao sucesso das políticas.

 

A obra enfatiza o papel dos atores na dinâmica da ação pública. O vocábulo é utilizado em sociologia para designar todas as pessoas físicas ou jurídicas que atuam ativamente na tomada de decisões. O ator público e o ator privado devem ser capazes de desenvolver estratégias de ação que, efetivamente, repercutam em determinada ação pública a ponto de modificá-la, aprimorá-la, amplie o seu espectro de ação ou, até mesmo, abortá-la.

 

Os atores individuais agem através de denúncias, laudos técnicos, representações a órgãos públicos, sensibilização da opinião pública para questões controvertidas, recurso à mídia, ajuizamento de ações populares, campanhas de rua etc. Muitas vezes o parecer de um cientista renomado muda determinada decisão que já havia sido tomada pelo governo. Mas são os atores coletivos que exercem maior influência nas políticas públicas.

 

Os atores coletivos públicos possuem características como poder de decisão, legitimidade institucional, compromisso com os interesses comuns, atribuições para fiscalizar os órgãos administrativos, promover licenciamentos etc. Claro que o Presidente da República, Governadores, Prefeitos, Ministros e Secretários são importantes atores. O mesmo se pode dizer do Judiciário e do Parlamento. Entretanto, o Ministério Público se destaca como uma instituição estatal – independente e autônoma – que tem estabelecido excelente relação dialógica com a sociedade civil no sentido de promover a tutela dos interesses sociais, coletivos e difusos, através de instauração de inquéritos civis, termos de ajustes de conduta e ajuizamento de ações civis públicas contra atos governamentais que implicam graves disfunções nas políticas públicas promovidas pelos entes federativos. Com isso tem obtido grandes avanços em relação à melhoria de vida da população, à garantia de serviços públicos de boa qualidade e à promoção racional e democrática dos direitos sociais no Brasil.

 

Os atores coletivos privados também são imprescindíveis à concepção e implementação das políticas públicas. Entre eles estão as associações, as organizações não governamentais, estudantes, consumidores, sindicatos, as instituições financeiras e grupos de interesse, todos com capacidade de estabelecer estratégias claras, mobilizar recursos e pessoas que possam agir articulada e coletivamente em direção ao objetivo comum.

  

As políticas públicas são apresentadas como “regulação social e política dos desafios sociais”. Nesse aspecto, o Direito exerce um papel preponderante em sua estruturação. Para as ciências sociais, “regular” significa ajustar ou conformar determinadas condutas sociais às normas jurídicas, que prescrevem comportamentos e atribuem sanções. Em dadas situações significa a criação, a modificação, evolução ou supressão de normas para aprimorar o controle social. Muitas vezes essas transformações decorrem da evolução jurisprudencial ou da necessidade de adequação ao mercado. Os autores da Sociologia da Ação Pública sustentam, de forma original, que a materialização das políticas públicas depende do respeito a que ele denomina, como gênero, normas de aplicaçãonormas de interpretaçãonormas de negociação e normas de resolução de conflitos, cujos conceitos estão bem expostos na obra. Assim, não se pode conceber políticas públicas efetivas sem o comprometimento governamental, forte articulação entre os atores envolvidos e uma estrutura jurídica capaz de viabilizar a correta implementação dos projetos, com resultados satisfatórios. 

 

Além desses elementos formais, a sociologia tem se preocupado cada vez mais com a implementação das políticas públicas, sob o prisma botton up. Desde a década de 60, pesquisadores em  ciências sociais têm refletido sobre o fracasso das políticas públicas. Muitas vezes existe a boa vontade dos governantes, a planificação é racional, há a correta alocação de recursos, mas o resultado final é insatisfatório, até mesmo decepcionante. O resultado disso é um déficit expressivo para a população, que tinha grandes expectativas em obter a satisfação de determinado direito social. Daí a necessidade de encontrar as causas do fracasso e buscar estratégias para reverter os prejuízos.

 

Como dito acima, o modelo top down baseia-se no voluntarismo dos governantes – sobretudo os carismáticos e messiânicos – e na ação dos tecnocratas que assumem postos de alta hierarquia administrativa. As decisões são tomadas em gabinetes ministeriais e anunciadas com grande estardalhaço pela mídia, sem nenhuma participação da sociedade civil organizada. A grande justificativa para tais medidas é a tutela do bem comum ou do interesse geral pelas instituições públicas. Como as decisões são individuais, apenas o governo pode selecionar os desafios que integrarão a agenda pública. Esse formato apresentou muitos problemas no momento da implementação e do levantamento dos resultados advindos de determinadas políticas, sobretudo porque não estimulou ou promoveu nenhum tipo de negociação com os atores diretamente implicados no desafio social.

 

Outro aspecto que merece destaque na obra consiste na construção do problema político. O Brasil depara-se com diversos desafios constitucionalmente institucionalizados (CF, art. 3º): a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza, a redução das desigualdades sociais e regionais. O Estado é obrigado a desenvolver ações concretas para enfrentá-los. Porém, existem muitos fatos sociais que permanecem “órfãos”: visíveis, quase ignorados. Com fraca ou nenhuma reação social. Tal situação pode perdurar por muito tempo sem que haja qualquer reação da sociedade. Entretanto esse fato social pode se transformar em problema público a partir do momento em que os atores sociais (individuais ou coletivos) se interessam por ele e passam a propor soluções para resolvê-lo. A causa ganha legitimidade e visibilidade a partir do apoio de grupos da sociedade civil. Grupos que não tinham nenhum envolvimento com os fatos passam a tomar posições, a expressar-se coletivamente. A causa passa a ser objeto de debates, de tomada de posições, de mobilizações populares e da atenção dos órgãos de comunicação. Enfim, o problema é inscrito definitivamente no espaço social.

 

Em outras palavras, o fato social só se torna problema público quando a sociedade civil perceber que pode agir objetivamente para melhorar a situação. São, por conseguinte, o produto de uma construção coletiva que implica a interação de vários atores sociais. A partir do momento em que a solução do fato problematizado passar por medidas a serem adotadas pelo poder público, nasce o chamado problema político. Há um verdadeiro processo de apropriação do desafio social, gerando expectativa popular em relação aos resultados esperados, agora sob a perspectiva de prestações positivas estatais. O governo traz para si o problema com a promessa de desenvolver políticas públicas capazes de enfrentá-lo. O desafio passa a fazer parte da agenda pública, o que reforça o compromisso governamental de apresentar soluções racionais para o problema. Para Pierre Lascoumes e Patrick Le Galès, o ingresso na agenda pública está condicionado a três requisitos: (1) a situação deve ser considerada verdadeiramente problemática, o que justifica a intervenção governamental; (2) o desafio deve ser considerado de interesse geral; (3) o desafio deve ser formatado e requalificação para que se enquadre nas competências administrativas estatais. Porém, a inserção na agenda não dá nenhuma garantia de resolução definitiva, mas a esperança de que o tema será objeto de soluções concretas mediante a adequada alocação de recursos financeiros, projetos e ações governamentais.

 

Sociologia da Ação Pública também chama a atenção para os empreendedores da causa, individuais ou gerais. São atores que assumem a ação coletiva em defesa de determinada causa de interesse coletivo. Eles têm a tarefa de mobilizar a opinião pública, apresentar documentos, relatórios, estudos técnicos; publicizar o desafio mediante comícios, entrevistas, filmagens, articulação de redes de apoio, difundir as revindicações. São eles que acompanham de perto a concepção, implementação e resultado das políticas públicas. Em virtude de seu grau de engajamento, eles estão prontos para duelar nas arenas públicas em defesa de seus pontos de vista.

 

Muitas vezes são interlocutores dos governos nas tomadas de decisão; outras vezes atuam como grupos de veto em um espaço concorrencial. A arenas públicas são o palco em que se defrontam atores estatais, privados e redes de interesses, em que as interações acontecem com mais vigor na interpretação e na problematização de determinado desafio. Os debates travados pela multiplicidade de atores são marcados por forte força argumentativa, retórica e dialética, componente essencial para a construção do problema político e pelo fortalecimento da democracia. É nesse espaço que se manifesta a importância dos atores contestadores, que apontam as questões negligenciadas, as decisões contraditórias, os interesses não contemplados, as estratégias imprecisas. É em seu interior que são apresentadas as revindicações das clientelas afetadas pelas medidas a serem tomadas em nível de política pública.

 

Aliás, a controvérsia não é vista como algo nocivo ou contraprodutivo no processo de construção do desafio público. As ideias divergentes são apresentadas pelos atores, os pontos controvertidos da questão são avaliados cuidadosamente, relatórios técnicos são interpretados, todos os atores têm oportunidade de se expressar livremente. Quando bem conduzida, a controvérsia pode redundar na confluência de interesses, celebração de acordos ou ratificação de compromissos que serão honrados na condução das políticas públicas. O sucesso das negociações deve-se, em grande parte, aos procedimentos de concertação, isto é, meios de ação que antecipam ou resolvem situações de conflito na ação pública, através de soluções negociadas em que todas as partes envolvidas estão dispostas a fazer concessões em prol do interesse geral. 


Além das esferas de negociação, os autores chamam a atenção para as estruturas normativas que disciplinam a conduta dos atores, criam instituições, alocam recursos orçamentários, estabelecem rotinas e procedimentos essenciais ao sucesso das políticas públicas. O grande problema consiste na falta de efetividade em razão do desconhecimento de seu conteúdo, da deliberada decisão de violar a lei e dos estratagemas utilizados para contornar as exigências legais em prol de interesses particulares. Mesmo assim, os autores consideram as normas jurídicas “essenciais à estabilização da ação coletiva”. 


Como os direitos sociais implicam custos financeiros extremamente altos, a ação pública se vê diante de imposições orçamentárias e do controle de despesas para atender satisfatoriamente as prestações estatais. Muitas vezes os recursos alocados para determinada política pública são insuficientes para atingir os resultados esperados, razão pela qual o desafio público pode persistir por alguns anos, no nível de proteção deficiente. Num cenário em que as despesas não param de crescer para financiar políticas públicas cada vez mais diversificadas e dispendiosas, o uso racional dos recursos implica escolhas políticas difíceis e, até mesmo, escolhas trágicas. Diante da complexidade desses elementos, a Sociologia da Ação Pública sublinha a importância do vocábulo instituição, para definir o conjunto de normas, procedimentos, sequências de ações padronizadas, coordenados entre si, para viabilizar a ação coletiva.

 

Enfim, a múltiplas interações entre os atores para a construção de políticas públicas, tem superado a noção de Administração Pública centralizada e rigidamente hierarquizada.  Daí a necessidade de pensar essa questão em termos de ação pública, abrangendo a multiplicidade de atores que exercem indiscutível influência nas decisões governamentais; os espaços sociais onde são travados os debates, bem como as ferramentas a serem utilizadas para fortalecer a regulação e a implementação das tarefas planejadas. Por tudo isso, os autores sustentam que a “ação pública é um sistema de ordem negociada”, que não admite o voluntarismo político, populismo, clientelismo ou demagogia. Tudo passa por uma nova reconfiguração do Estado contemporâneo, suas estruturas de poder, seus objetivos constitucionais, a interpretação dos desafios sociais, pela adoção de instrumentos de democracia participativa.

 

É nesse sentido que Pierre Lascoumes e Patrick Le Galès filiam-se ao construtivismo moderado****. Trata-se de uma corrente teórica que reconhece a necessidade de interpretação aberta dos desafios sociais, que protege os interesses concretos ou simbólicos dos atores sociais envolvidos, assimila as controvérsias e as técnicas de concertação, mas, ao mesmo tempo, respeita os espaços cognitivos e normativos preestabelecidos. Embora as interações ocupem um espaço privilegiado nessa formulação, nem tudo é negociável. As normas, regulamentos, rotinas e diretivas internacionais permanecerão como elementos essenciais à formatação das políticas públicas.

 

Tenho certeza de que a obra preenche importante lacuna na literatura brasileira, sobretudo para profissionais e estudantes comprometidos com a efetividade dos direitos sociais no Brasil, que depende, necessariamente, de políticas públicas consistentes e comprometidas com a justiça social. Embora tenhamos alguns exemplos significativos de articulação de forças da sociedade civil em busca de estratégias eficazes para a resolução de graves problemas sociais e políticos – a exemplo das audiências públicas, dos orçamentos participativos, conselhos consultivos e mobilizações populares –, ainda há muito para se fazer. Talvez um bom começo seja a quebra do paradigma do monopólio estatal das políticas públicas para incluir definitivamente a sociedade civil em todas as sequências das políticas públicas, desde a sua concepção, passando pela implementação, até a análise dos resultados.  



CANOTILHO, J.J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003, p. 477.

** Queiroz, Cristina. O Princípio da Não Reversibilidade dos Direitos Fundamentais Sociais. Coimbra: Coimbra Editora, 2006.

*** LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo. Teoria dos Direitos Fundamentais Sociais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

****O construtivismo é uma corrente teórica que foi concebida como reação ao positivismo. Enfatiza as interações entre sujeito e objeto, além de se preocupar com a dimensão ética do conhecimento. Trata-se de concepção adotada por várias disciplinas, a exemplo da filosofia, psicologia cognitiva, ciência política e sociologia. Nessa perspectiva, a produção de conhecimentos é o resultado de processos de construção coletiva. Para a sociologia, as realidades sociais são “construções históricas e cotidianas dos atores individuais e coletivos (Philippe Corcuff)”. Nessa perspectiva, a realidade social está em permanente construção graças às interações. Os fatos sociais são sempre submetidos permanentemente à interpretação dos atores individuais e coletivos. Existem obras de referência como a Construção Social da Realidade, publicada em 1966 por Peter Berger e Thomas Luckman; As Novas Sociologias, publicada em 1995 por Philippe Corcuff; Entre a Ciência e a Realidade. A Construção Social De Quê?, publicada por Ian Hacking em 1999. Outros sociólogos que também podem ser considerados construtivistas: Pierre Bourdieu, Erving Goffman, Friedrich Hayek etc.

COMO SE FAZ UM RESUMO

 

George Sarmento

No mundo contemporâneo, as informações circulam numa velocidade estonteante. O ritmo de vida do homem moderno não permite a perda de tempo com tormentosas elucubrações ou excesso de erudição. A produção de textos sintéticos, claros e objetivos tornou-se um dos maiores desafios da comunicação de massa. Cada vez mais estudantes, professores, jornalistas, executivos e profissionais liberais recorrem aos resumos como estratégia de aquisição e fixação de conhecimentos. Resumir com eficiência tornou-se um imperativo dos novos tempos. É uma atividade que exige perfeita compreensão das ideias, capacidade de síntese, domínio da língua portuguesa, e, sobretudo, profundos conhecimentos metodológicos.   

 

Embora o resumo seja considerado um poderoso instrumento pedagógico, sua técnica tem sido negligenciada nas escolas e universidades brasileiras. A maioria dos professores desconhece as regras básicas de composição de um resumo eficaz. Muitos tateiam no escuro sem saber exatamente do que se trata. Terminam confundindo  resumo com cópia ou colagem, numa macaqueação desajeitada, superficial e tosca. Os efeitos dessa deficiência são visíveis: diminuição da capacidade de leitura, dificuldade de expressão escrita e baixo nível de compreensão dos temas estudados. 

 

Para suprir essa lacuna no processo ensino-aprendizagem, a professora Renira Lisboa de Moura Lima  publicou, em 1994, Como se faz um resumo, obra destinada a professores e alunos interessados na prática da linguagem, na arte de escrever bem. Pela primeira vez no Brasil, as técnicas de redução de textos foram reunidas e sistematizadas com admirável requinte e honestidade intelectual. Baseada nas melhores práticas teóricas, a autora apresenta soluções simples para problemas que atormentam todos os que se aventuram pelos tortuosos caminhos da escrita. 

 

Os resumos foram divididos em dois grandes grupos, de acordo com a autorização ou a proibição de o redator tecer juízo de valor sobre o material trabalhado. No primeiro grupo, prepondera a abordagem dialética. O texto original a ser resumido é decomposto, analisado, discutido e apreciado minuciosamente. É o caso dos comentários, resenhas e críticas tão comuns nos jornais de revistas científicas. No segundo grupo estão os resumos desprovidos de apreciação pessoal. Possuem a marca da neutralidade intelectual. A redução do texto sem perda qualitativa do conteúdo é sua única preocupação. São largamente utilizados no ensino médio, nos cursos de graduação e pós-graduação como atividade de aprendizagem e pesquisa. 

 

A autora optou pelo estudo das técnicas de composição dos chamados textos-resumo: sumários, esquemas, sinopses e sínteses. Parte da premissa de que resumir é um ato de criação. O texto original é dissecado,  elaborado, reduzido ao essencial. A nova redação não é fruto da intuição, da prática  empírica,  mas produto da correta aplicação de princípios pedagógicos que podem ser exercitados nas salas de aula. Os alunos devem ser estimulados a desenvolver a capacidade de captar a essência das ideias, hierarquizar, separar o principal do acessório, corrigir, cortar, modificar, polir as frases com a precisão e a delicadeza de um ourives. Resultado: um texto límpido, enxuto, claro e sem desperdício de palavras ou profusão de adjetivos. Absolutamente fiel à matriz.    

 

Ao longo do ensaio, autora discorre sobre as técnicas de redação dos textos-resumo com competência invulgar. Explica, esquematiza e exemplifica exaustivamente. Sem prejuízo da profundidade que caracteriza os trabalhos científicos, o tema é tratado com aliciante simplicidade, que seduz e apaixona desde a primeira página. Progressivamente, sem pressa, o leitor descortina um universo em que a palavra é tratada com sobriedade e economia. Logo percebe que resumir não é uma atividade mecânica, impessoal. Mas uma arte que exige argúcia, perícia e muita sensibilidade.

 

É preciso discutir o papel do resumo como gênero textual. Se é certo que o resumo apoia-se em obra alheia, ninguém pode lhe negar a condição de arte, com personalidade, forma e estética próprias. Essas características o legitimam como um interessantíssimo meio de expressão. Quem resume não copia, recria o texto livre dos excessos do linguajar. Mas que uma reconstituição plana e linear do conteúdo original, o resumo é uma autêntica forma de transmissão de ideias, fatos, teses, e informações profissionais. Por isso o conhecimento de suas técnicas torna-se imprescindível tanto para quem escreve a si mesmo como para os escritores profissionais. 

 

A professora Renira Lisboa de Moura Lima insiste na tese de que os professores devem assumir o compromisso de ensinar as técnicas de redação de resumos como forma estimular a inteligência dos alunos, aguçar a percepção crítica e permitir o estreito convívio com as sutilezas da língua portuguesa. E não pára por aí . Propõe uma série de atividades integradas que esse destinam à elaboração de frases-síntese, que é o cerne da reelaboração de textos. Trata-se de uma proposta didático-pedagógica que pode ser aplicada com grande sucesso no processo ensino-aprendizagem sob supervisão docente ou através da autoinstrução. Adepta da máxima “só se aprende a fazer fazendo”, enfatiza o que a eficiência do método depende da experiência direta nas salas de aula, da constante e persistente repetição dos exercícios. 

 

Como se faz um resumo, publicado pela EDUFAL neste ano de 2002,  é fruto de demorada maturação intelectual. O método de redução de textos foi pacientemente concebido ao longo de vinte anos de intenso trabalho. Os exemplos foram testados nas salas de aula, discutidos exaustivamente, analisados à luz das teorias nacionais e estrangeiras. Autora procurou imprimir ao resumo uma linguagem universal, enxuta, concisa. Provou que é preciso ir ao essencial e buscar a todo custo o substrato das ideias sem afetar a qualidade do texto. 

 

Considerado um clássico do gênero, retorna ao mercado editorial completamente reformulado. A segunda edição traz muitas novidades. Os capítulos foram reescritos, ampliados e atualizados. Novos exemplos de esquemas foram introduzidos com o objetivo de facilitar ainda mais a compreensão dos princípios metodológicos trabalhados. Chega, portanto, à  maturidade científica e perfeição formal, o que a torna uma obra de leitura obrigatória para todos os que se preocupam com o bom uso do idioma. 

 

Nietzsche, que, além de grande filósofo, era um mestre da estética, gabava-se do dom de resumir em dez frases o que qualquer outro escrevia em um volume. Como se faz um resumo desmistifica a ideia de que o poder de síntese é atributo dos gênios no estilo, característica inata dos grandes escritores. E desvenda todos os mistérios da construção dos textos ágeis , limpos e bem articulados. A obra também mostra que a língua tem de ser instrumento de integração social e democratização do saber. Tais lições dão a exata dimensão da obra: assegurar a excelência da expressão escrita e contribuir para a construção dá cidadania brasileira.


Maceió, 2002.

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

DIREITO À SAÚDE E ACESSO A MEDICAMENTOS NO SUS

George Sarmento



Quando se debate a efetividade dos direitos sociais, a questão da saúde se impõe como tema incontornável. O acesso gratuito a medicamentos aos usuários do SUS surge como uma das principais conquistas do constitucionalismo contemporâneo no Brasil, sobretudo quando se trata de pacientes com doenças crônicas ou terminais, sem condições de arcar os altos custos que os tratamentos exigem. Como o Estado não tem dado respostas adequadas, os magistrados são obrigados a enfrentar a intensa judicialização das demandas individuais e coletivas de grande complexidade. 

 

A partir da Constituição de 1988, o Brasil assumiu o compromisso de assegurar prestações positivas concretizadoras dos direitos sociais, cujas políticas públicas implicam enormes gastos setoriais. Tais prerrogativas são universais, pois abrangem todos os cidadãos indistintamente. Com relação à saúde, as necessidades aumentam de forma avassaladora enquanto os recursos financeiros continuam limitados, insuficientes para satisfazer as expectativas da população. 

 

Diante desse quadro de escassez, o grande desafio consiste na fixação de parâmetros objetivos para o acesso dos usuários a medicamentos gratuitos como forma de equalizar o direito fundamental à saúde e a proteção ao patrimônio público, evitando gastos excessivos e desnecessários que privam outros pacientes de tratamentos médico-hospitalares adequados.

 

Para enfrentar essa tormentosa questão, Davi Gouvêa publica seu livro de estreia intitulado “Direito à Saúde e Acesso a Medicamentos – em busca de parâmetros adequados para a tutela judicial”, onde desenvolve profunda reflexão sobre o tema, apresentando proposições consistentes e racionais. 

 

Davi Gouvêa inicia seu texto por um cuidadoso estudo de direito supraestatal em que analisa os principais tratados internacionais ratificados pelo Brasil, os quais impõem o dever de promover prestações positivas estatais no sentido de assegurar a todos serviços de saúde adequados. Demonstra com sólidos argumentos que a ratificação de tratados como o PIDESC, bem como a fiscalização contínua das políticas públicas pelas Nações Unidas e OEA são elementos determinantes para a efetivação do direito à saúde no Brasil.

 

Também analisa a estrutura do direito à saúde na Constituição de 1988 e na legislação ordinária. Enfrenta a complexa repartição de competências entre os entes federativos e enfatiza a crise de efetividade em razão de políticas públicas ineficientes – sobretudo o disfuncionamento do Sistema Único de Saúde em relação à política de dispensação de medicamentos.

 

Ao longo do texto, sustenta que a saúde é um direito fundamental de dupla face. De um lado, manifesta-se como direito subjetivo assegurando a todos a prerrogativa individual de exigir do Estado serviços médico-hospitalares de qualidade; do outro, exterioriza-se como o dever estatal de assumir prestações positivas no sentido de garantir a toda população o acesso ao SUS, incluindo a dispensação de medicamentos. 

 

O autor enfatiza que existe no Brasil um verdadeiro déficit de efetividade decorrente de políticas públicas ineficientes na área da saúde. A distribuição de medicamentos não é uma exceção. A consequência disso são as milhares de ações judiciais propostas no país. Sob a configuração constitucional de 1988, o Judiciário tem competência para determinar medidas concretizadoras de direitos sociais e políticas públicas. Esse protagonismo está expresso na construção jurisprudencial desenvolvida, sobretudo, na última década pelo STF e STJ. 

 

Da leitura da obra fica claro que a complexidade do tema perpassa a dimensão judicial e exige a participação de outros atores. Por isso, investiga iniciativas pioneiras como as audiências públicas realizadas pelo STF, os atos normativos do Conselho Nacional de Justiça, as ações civis públicas propostas pelo Ministério Público, assim como as ações individuais e coletivas ajuizadas pela Defensoria Pública a fim de assegurar aos usuários da assistência judiciária serviços como internações, intervenções cirúrgicas, procedimentos terapêuticos e, sobretudo, o fornecimento de medicamentos.

 

Após a análise do problema sob diversas perspectivas, lança luzes sobre os parâmetros objetivos para a distribuição de medicamentos a serem observados pelos entes federativos. Entre outras coisas, ele invoca a necessidade de cumprir os “Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas”, as recomendações da ANVISA, os medicamentos reconhecidos pelo SUS, bem como as contribuições das instituições estatais já mencionadas. 

 

Também apresenta importantes princípios hermenêuticos que devem reger a decisão judicial, construída a partir de um discurso judicial racional e comprometido com a efetividade constitucional, baseado ponderação de regras e princípios. Aliás, em sua formulação teórica, o protagonismo do magistrado na interpretação normativa é indispensável para a concretização do direito fundamental ao acesso a medicamentos.

 

Tive a grande honra de orientar Davi Gouvêa em sua trajetória no PPGD/UFAL. Desde o início mostrou-se um pesquisador dedicado, disciplinado e dotado de grande poder de argumentação. É detentor de excelente formação teórica e capacidade de raciocínio lógico. O resultado é um texto preciso, claro, objetivo, sem descuidar da indiscutível dimensão social que envolve o problema já que de sua solução depende a sobrevivência, a qualidade de vida e o bem-estar de milhares de pacientes, sobretudo os de baixa renda, espalhados pelo país. 

 

Lembro que a pesquisa foi acolhida com entusiasmo pelos membros da banca examinadora da dissertação de mestrado, que lhe atribuíram nota máxima com distinção. Foi o reconhecimento do valor científico e a grande contribuição para o constitucionalismo brasileiro. Agora transformada em livro, será leitura obrigatória para os operadores do direito e gestores públicos interessados em fortalecer os direitos da cidadania, a proteção do erário e a promoção da saúde pública.

 

Tem razão Arthur Schopenhauer quando afirma que “em geral, nove décimos da nossa felicidade baseiam-se exclusivamente na saúde. Com ela, tudo se transforma em fonte de prazer”. Na contemporaneidade, é preciso fortalecer os regimes democráticos para que se comprometam cada vez mais com a implementação de políticas de saúde consistentes e eficientes. O bem-estar social prometido pelos constituintes de 1988 passa obrigatoriamente pelo fortalecimento do SUS e a superação das graves distorções no modelo estatal de acesso a medicamentos e outras prestações médico-hospitalares. Tenho certeza de que as reflexões de Davi Gouvêa serão de grande utilidade para atingirmos esse fim estatal e avançarmos na construção de uma sociedade justa, igualitária e feliz.


Maceió, 2015.