George Sarmento
O sonho da casa própria tem sido uma das aspirações mais legítimas e essenciais para uma vida digna. Por isso a expressão “ter onde morar” goza de indiscutível força simbólica, pois representa o espaço vital propício para o fortalecimento dos laços familiares; da integridade física e psíquica dos habitantes; do respeito à vida privada e à intimidade. A moradia é também o símbolo do sentimento de pertença do indivíduo à comunidade, o que faz dela uma verdadeira expressão da cidadania.
O direito à habitação adequada é reconhecido pelas Nações Unidas em diversos tratados e convenções internacionais. Os Estados têm o dever de criar leis e de promover políticas públicas na área habitacional de forma a ampliar cada vez mais o acesso à moradia, sobretudo para as camadas mais pobres da população. Além do Estado outros atores contribuem para a sua efetividade, a exemplo da sociedade civil, agências multilaterais, instituições financeiras, construtoras etc.
Reafirmar a universalidade sem ações concretas para efetivar esse importante direito fundamental é uma das maiores fragilidades do Estado Constitucional de Direito. O que dizer dos milhões de habitantes do Planeta que, em pleno Século XXI, ainda têm acesso à moradia? E daqueles que vivem em condições miseráveis, insalubres, privados de equipamentos comunitários e serviços públicos básicos? Como desconhecer o drama das populações privadas de suas terras por despejos violentos e ilegais?
O direito à moradia adequada não significa dizer que o Estado deva promover a distribuição gratuita de casas à população. Tampouco se concretiza pela existência de um “teto”, onde as pessoas possam se abrigar da chuva e do calor. Consiste em um conjunto articulado de ações estatais para assegurar a todos o acesso à moradia que proporcione dignidade e conforto aos seus ocupantes, permitindo o desenvolvimento da liberdade, igualdade e solidariedade mútuas.
Da mesma forma não se deve confundir o direito à habitação com o direito de propriedade. O direito à habitação pressupõe um conjunto de fatores que asseguram as condições necessárias para que a pessoa humana se beneficie de uma casa para abrigar a si e sua família, com satisfatórias condições de vida, salubridade, serviços básicos, equipamentos comunitários e infraestrutura. Portanto, não basta o título de propriedade do imóvel. É preciso que as condições de habitabilidade sejam adequadas, isto é, permitam o pleno desenvolvimento das famílias.
O livro de estreia de Vitor Andrade Monteiro, intitulado Direito à moradia adequada: perspectivas de efetivação como direito fundamental, tem o objetivo de clarificar a norma constitucional insculpida no art. 6º, caput, da Constituição Federal, preenchendo seu conteúdo através de interpretação jurídica consistente e racional.
A pesquisa tem como base teórica a supraestatalidade do direito fundamental à habitação adequada. Demonstra que a ordem jurídica internacional impõe ao Brasil o dever de efetividade de forma a assegurar aos núcleos familiares a fruição de prerrogativas como habitabilidade, adequação cultural, acessibilidade e saneamento básico. Analisa a formatação de tal direito social à luz de tratados e convenções, sobretudo o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Também demonstra o controle de conformidade exercido pelo Comitê DESC sobre as políticas públicas de moradia desenvolvidas no país, mediante relatórios e recomendações elaborados a partir de visitas periódicas e de informações colhidas junto à sociedade civil.
A ideia de supraestatalidade – que muitos autores preferem chamar supranacionalidade ou internacionalização dos direitos humanos – é o reconhecimento da universalidade de um conjunto de princípios que primam sobre as ordens jurídicas nacionais. Os direitos fundamentais são substancialmente supraestatais. Seu fundamento de existência não é a norma constitucional, mas o direito internacional. A positivação no direito interno tem o objetivo de protegê-los e não o de criá-los. Mesmo os limites que lhes são impostos pela norma jurídica não podem afetar seu conteúdo essencial, que é inorganizável pelo Estado. Uma vez constitucionalizados, a legislação ordinária só pode discipliná-los para desvendar o seu conteúdo, criar as condições necessárias à sua efetividade. Portanto, diante dos direitos supraestatais, o Estado deve exercer a tripla função de proteger, limitar e clarificar.
A obra aborda igualmente a eficácia da norma constitucional que garante o direito à moradia adequada, sob a ótica da fundamentalidade e exigibilidade. A partir daí, demonstra os mecanismos pelos quais se desenvolveram as principais políticas públicas de combate ao déficit habitacional, a exemplo da implantação do Sistema Financeiro de Habitação e do Programa Minha Casa, Minha Vida.
Finalmente discute a efetividade do direito social à moradia adequada à luz do discurso jurídico no Poder Judiciário. Nesse sentido, enfatiza a necessidade de aplicação da Observação n. 4 do Comitê DESC como instrumento de combate à inadequação habitacional. Da mesma forma, salienta a necessidade de aplicação dos princípios da reserva do possível, do mínimo existencial e da proibição do retrocesso social como formas de garantir a concretização do direito à moradia.
Ressalto que o autor realizou ampla pesquisa de jurisprudência no sentido de verificar a forma como se estrutura o discurso concretizador do direito à moradia nos tribunais brasileiros. Para demonstrar as constantes violações ao compromisso de adequação preconizado pela ONU, estudou a implantação de conjunto habitacional no município de São Luiz do Quitunde, Alagoas, cujo modelo é reproduzido na maioria dos municípios brasileiros. Essa contribuição pessoal do pesquisador dá originalidade ao texto e lança luzes sobre a necessidade de se repensar as políticas habitacionais no Brasil.
Vitor aponta os principais obstáculos para a implementação do direito à moradia adequada e aponta as causas do crescimento do déficit habitacional no país. Denuncia o grave problema da inadequação habitacional que atinge milhões de brasileiros, obrigados a viver em imóveis absolutamente impróprios, nocivos à saúde e a segurança familiar. As péssimas condições de alojamento dão causa à degradação da qualidade de vida, à proliferação de doenças infecciosas, ao acirramento das desigualdades sociais e ao aumento da violência. Daí a necessidade de políticas públicas eficientes para assegurar a todos, sobretudo a parcela da população que vive em situação de miséria ou de elevada pobreza, o pleno acesso ao direito fundamental à moradia adequada.
A bibliografia utilizada na composição do texto é de indiscutível qualidade científica, já que fundamentada nos melhores autores nacionais e estrangeiros. As proposições são claras e racionais, o texto é fluido e bem concatenado, enfrentando as questões mais controvertidas suscitadas pelo tema. O livro de Vitor Monteiro supre uma lacuna na literatura jurídica brasileira, e será de grande importância para os profissionais das diversas áreas jurídicas comprometidos com a defesa dos direitos coletivos e difusos. Trata-se, sem dúvida, de importante contribuição para o constitucionalismo brasileiro, sobretudo no que tange ao reconhecimento, promoção e garantias dos direitos sociais.
Adoniram Barbosa foi o compositor que retratou com mais fidelidade a angustia dos moradores despejados de suas casas, vítimas da expansão urbana. Na canção Saudosa maloca, evoca os sonhos desmoronados, a impotência diante da destruição implacável de suas frágeis choupanas, a falta de perspectiva de comprar uma casinha para a numerosa família. Tudo isso é traduzido no samba: “Peguemos todas nossas coisas/E fumos pro meio da rua/Apreciá a demolição/ Que tristeza que nóis sentia/Cada táuba que caia/ Doía no coração”... Mais do que nunca o respeito e a garantia ao direito à moradia digna, adequada e de boa qualidade se impõe como uma inescusável prestação estatal.
O acesso à casa própria deve ser considerado um dos componentes essenciais às necessidades básicas de todos os seres humanos. Tenho certeza de que as ideias de Vitor Monteiro contribuirão para que o Brasil avance em suas políticas públicas e consiga assegurar a todos essa prerrogativa básica indissociável de sua condição humana.
Maceió, 2015.
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