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quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

A FELICIDADE NO COTIDIANO

GEORGE SARMENTO
Em recente entrevista à Paris Match, Sebastian Marroquin, filho do sanguinário narcotraficante Pablo Escobar, Chefe Supremo do Cartel de Medelín, na Colômbia, falou do documentário intitulado Os Pecados de Meu Pai, que será exibido em breve nos cinemas. Depois de viver muitos anos na Argentina, resolveu assumir sua verdadeira identidade, contar a história da família e pedir desculpas ao povo colombiano pelas atrocidades cometidas pelo pai.
Durante a perseguição implacável imposta a Escobar, Sebastian foi obrigado a viver trancafiado nas centenas de esconderijos escolhidos pelo Cartel de Medelín. O regime de "prisão domiciliar" durou cerca de 10 anos, consumindo toda sua infância. A agonia só acabou quando o narcotraficante foi encontrado pela polícia e morto após violenta troca de tiros em 1993.
Num dos trechos mais pungentes da entrevista, Sebastian relembra os dias de fome que passou quando se encontrava abrigado em casa de agricultores, nas imediações da cidade Medelín. Os policiais montaram uma barreira na frente do esconderijo e ali permaneceram durante uma semana, sem saber que os foragidos estavam tão perto. Pablo Escobar mantinha dois sacos contendo a quantia de 2 milhões de dólares em espécie. Mas com toda essa dinheirama, a família não podia comprar sequer um pedaço de pão.
Esta situação paradoxal, obriga-nos a refletir sobre a dicotomia riqueza-liberdade. De que adianta sermos ricos, poderosos e temidos se não podemos gozar os prazeres simples da vida como ir à padaria do bairro ou visitar o melhor amigo? E ter milhões na conta bancária, mas viver sob permanente tensão já que a fortuna foi obtida ilicitamente? Vale a pena tanto apego às coisas materiais se somos obrigados a abdicar dos prazeres mais singelos como chupar um picolé, comer pipoca na praça ou sentar nas areias da praia para contemplar um belo pôr do sol? Sei que estou entrando em terreno perigoso, pois essas questões são universais e foram discutidas pelos grandes filósofos desde a Antiguidade.
Em meu ofício de promotor de justiça, vejo a vida de tantos jovens se despedaçar ao entrar no mundo do crime! Mortes prematuras, inocência perdida, infância fanada, famílias despedaçadas... Em troca de quê? De um celular de luxo, roupas de grife, algum dinheiro e a vida abreviada por uma execução sumária. Outros que tinham tudo, mas que desperdiçam suas carreiras ao chafurdar na corrupção. Essas decisões equivocadas e destrutivas sempre me intrigaram. Nunca consegui compreender por que tantas pessoas jogam na lama uma reputação que consumiram anos a construir.
Nada tenho contra a riqueza construída com o suor do trabalho ou legitimada por herança, laços de matrimônio e outras formas legais. Se a pessoa acha que a acumulação de bens materiais a fará feliz, é natural que percorra esse caminho. Se procurar usar parte do dinheiro para investir em ações de solidariedade, tanto melhor. Mas o que importa aqui é analisar o estado de espírito de quem enriqueceu ilicitamente e agora vive sob a permanente tensão de ser obrigado a prestar contas à Justiça, ou pior, à Polícia Federal.
Acredito que a maior dádiva do ser humano é a paz de espírito, esse estado emocional em que tudo conspira para a serenidade, calma e harmonia interior. Não pretendo discutir os caminhos que levam à felicidade. Falta-me arte e engenho para tanto. Tampouco quero me transformar em autor de auto-ajuda. Meu objetivo é fazer uma rápida incursão na filosofia para tentar responder as perguntas aqui formuladas.
Socorro-me de Sêneca, um dos mais importantes estóicos da Antiguidade, que foi preceptor de Nero (aquele mesmo que ateou fogo em Roma). A base teórica dos seus ensinamentos consistia na idéia de que o homem deveria viver de acordo com sua natureza, adaptando-se a todas as situações com que se deparasse, mesmo as mais adversas.
Sêneca escreveu um discurso intitulado Da Tranquilidade da Alma, em que apresenta preciosos conselhos para quem deseja paz de espírito. Prega o desapego às coisas materiais em troca da riqueza interior. Para ele o melhor critério para lidar com o dinheiro consiste em não cair na pobreza nem dela afastar-se completamente. A riqueza é vista como uma permanente fonte de infortúnios e desgraças, a menos que os bens sejam usados para ajudar ao próximo: “onde houver um ser humano, aí haverá a possibilidade de se fazer o bem”.
Para ele a harmonia da alma é o bem supremo. Pregava a necessidade de uma vida retirada, consagrada às coisas do espírito, longe dos prazeres que escravizam a mente e tolhe a liberdade. Defendia que é preciso cultivar o comedimento, a refrear a luxúria, a moderar a ânsia de glória, a suavizar a ira, a olhar com simpatia a pobreza, a cultivar a frugalidade. Enfim, a felicidade consistia em uma vida virtuosa em que nossos atos refletissem fielmente os valores éticos em que acreditamos.
O iluminismo prometeu que a felicidade estaria na vitória da razão sobre a supertição. Apenas o progresso científico e material seria capaz de assegurar a tranquilidade da alma ao maior número de pessoas. O droit au bonheur (direito à felicidade) está estampado na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. A felicidade geral era a maior aspiração do Utilitarismo inglês, na pluma de Jeremy Bentham. Infelizmente as promessas não foram cumpridas e terminamos voltando à estaca zero, com as mesmas perguntas e perplexidades.
Tenho a convicção que toda a fonte da infelicidade consiste no descompasso entre as ações cotidianas e as nossas crenças mais íntimas. Isso acontece sempre quando a vida que levamos não reflete os que acreditamos. Ser infeliz é ter consciência da contradição entre o pensar e o agir, o que gera um estado de desarmonia interior profundamente nocivo à saúde. O sentimento de incongruência avança quando insistimos nos equívocos à espera que aconteça algum milagre.
É evidente que a felicidade tem o seu lado objetivo, externo. Ninguém é feliz quando está privado das condições mínimas de existência digna, quando os seus direitos fundamentais são sistematicamente violados pelo Estado ou pela sociedade. A satisfação das necessidades básicas e o exercício da cidadania são pressupostos obrigatórios para o bem-estar do corpo e da mente. Mas também não podemos afirmar que a abundância de bens materiais seja um passaporte para a felicidade. Estudos desenvolvidos por cientistas sérios provam que a maioria dos ricos entrevistados se sentem infelizes, embora não sofram privações de suas necessidades básicas.
A sociedade de consumo está calcada na superficialidade, no efêmero, na ausência de vínculos duráveis. Esse modelo estimula a inveja, a hipocrisia, o supérfluo, o imediatismo e tantos outros sentimentos negativos que envenenam a alma. A indústria famacêutica tenta explorar o vazio existencial criando a pílula da felicidade, apontada como a descoberta do século. Muitos escolhem o caminho do crime como o atalho para a construção de riquezas monumentais. Mas a verdadeira felicidade só é possível como experiência subjetiva a partir da consciência de que os nossos atos refletem precisamente o que acreditamos, as nossas mais profundas e verdadeiras convicções.