George Sarmento
A importação de institutos estrangeiros é prática largamente adotada pelo sistema jurídico brasileiro. A falta de originalidade é agravada pela adaptação defeituosa dos modelos transplantados, acarretando graves conseqüências à aplicação do direito. O efeito vinculante é um exemplo contundente dessa assertiva. Transplantado dos países que adotam a common law, foi introduzido na Constituição Federal como forma de racionalizar a atividade jurisdicional, impondo aos juízes o respeito absoluto ao entendimento cristalizado pelo Supremo Tribunal Federal. Mas a introdução da súmula vinculante como instrumento de padronização das decisões judiciais tem sido alvo de severas críticas, entre elas o perigo de engessamento da atividade hermenêutica e a ilegítima criação de normas jurídicas pelo Judiciário e, até mesmo, ingerência na prerrogativa constitucional de julgar.
É sobre essa temática que se desenvolve o livro Efeito Vinculante e Concretização do Direito, escrito por Rosmar Antonni Rodrigues Cavalcanti de Alencar. O fio condutor do texto é a busca da efetividade das normas constitucionais como um dos requisitos legitimadores do Estado Democrático de Direito. Nesse particular, destaca o papel do Judiciário na importante tarefa de mediar os conflitos, aplicar o direito e responder os desafios de uma sociedade complexa e desigual como a brasileira.
A introdução do efeito vinculante pela Emenda Constitucional 45 foi uma tentativa de solucionar a crise do Judiciário, assoberbado pelo aumento de processos, decisões díspares e interpretações equivocadas das espécies normativas. Mas sucesso dessa técnica jurídica depende da superação de diversos entraves. O autor invoca as dificuldades naturais de convivência harmônica entre o sistema de precedentes – cujas origens remontam ao direito inglês – e o modelo brasileiro historicamente marcado pela prevalência da lei, produto de processo legislativo típico dos países que adotam a civil law. Também critica a formação dogmática dos juristas brasileiros, estimulados nas universidades a aplicar o direito de forma dedutiva, quase matemática, baseada na subsunção. Juízes com esse perfil podem ver na súmula vinculante uma ferramenta que justifique a postura mecanicista e acrítica de suas decisões.
O efeito vinculante é dissecado pelo autor de forma minuciosa. Todas as grandes questões são enfrentadas com lucidez e originalidade. O autor ultrapassa as fronteiras da súmula vinculante para embrenhar-se nas entranhas do instituto, analisando-o sob os aspectos histórico, sociológico, filosófico e jurídico. Discute temas polêmicos como a função legislativa do Judiciário, a força vinculante de decisões proferidas em ações de inconstitucionalidade e a segurança jurídica decorrente dessa nova postura jurisdicional.
A obra também apresenta uma crítica extremamente original ao efeito vinculante das ações coletivas, freqüentemente usadas na proteção do meio ambiente, patrimônio público, consumidores, crianças, adolescentes, idosos, portadores de necessidades especiais etc. Inspiradas nas class actions norte-americanas, as ações civis públicas têm se mostrado armas eficazes em defesa de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos. Entretanto, o uso imprudente ou mal-intencionado desse instrumento de defesa da cidadania pode gerar grandes frustrações de expectativas populares, colocando em risco a credibilidade do Judiciário e do Ministério Público.
Como forma de combater a visão dogmática defendida por grande parte da doutrina brasileira, o autor propõe o fim da submissão incondicional às estruturas lógico-formais, que reduz o magistrado a juiz funcionário, neutro, mecanicista, desprovido de qualquer compromisso com a justiça. Em tal ambiência, o efeito vinculante passa a ser um álibi para a manutenção dessa postura conservadora, extremamente nociva à concretização do direito.
Com base, nos ensinamentos de Hans-Georg Gadamer e Heidegger, o autor combate a tendência de padronização das decisões judiciais, propondo uma profunda mudança do paradigma interpretativo. Defende a utilização da hermenêutica filosófica, considerada o método constitucional mais eficiente de resolução dos litígios com racionalidade e respeitos aos princípios conformadores do Estado brasileiro. Demonstra que o reducionismo dogmático encobre a perversa ideologia capitalista, mais preocupada em assegurar os interesses das elites dominantes do que em promover a justiça social. Só um novo olhar sobre a aplicação do direito será capaz de satisfazer as expectativas sociais de concretização dos direitos fundamentais.
Embora aborde temas tão complexos, o livro foi redigido em uma linguagem clara e objetiva. O autor não se contenta com a mera descrição de teorias hermenêuticas. Ao contrário, manifesta aguçada visão crítica sobre a prática jurisdicional vigente no país, apontando caminhos seguros para superar a crise por que passa o Judiciário. Chama a atenção para a necessidade de mudanças no ensino jurídico, para romper com as velhas amarras do positivismo dogmático e formar operadores do direito comprometidos com a efetividade das liberdades públicas e dos direitos sociais. Sustenta, enfim, a liberdade de julgar – sem amarras, vinculações ou ameaças de punições disciplinares. A função político-jurídica do magistrado não pode restringir-se a modelos rígidos, preestabelecidos por tribunais superiores, mas desenvolver-se com base em parâmetros hermenêuticos seguros e vinculados às peculiaridades do caso concreto.
A obra de Rosmar Antonni é corajosa e original. É produto de profundas reflexões desenvolvidas no tradicional Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia. Foi apresentada pela primeira vez à comunidade jurídica como dissertação de Mestrado, orientada pelo festejado jurista Dr. Edvaldo de Brito. Tive a honra de integrar a banca examinadora e pude testemunhar a notável contribuição que a obra dá ao fortalecimento da hermenêutica constitucional contemporânea. O autor sintetiza as ideais centrais do pós-positivismo e descortina novos horizontes a serem seguidos pelos aplicadores do direito, aproximando-os do ideal ético de justiça e do compromisso de efetivar os direitos humanos nas relações sociais.
Para defender suas teses, alia sua vasta experiência como juiz federal a uma movimentada atividade acadêmica. Além de conferencista e articulista, Rosmar Antonni é doutrinador consagrado, sendo autor de obras como Ação Popular – Rumo à Efetividade do Processo Coletivo, Curso de Direito Processual Penal (em co-autoria) e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988 (organizador). Detentor de espírito inquieto e criativo, tem mostrado grande preocupação com os rumos do constitucionalismo brasileiro, ainda muito influenciado pelos velhos paradigmas hermenêuticos, tão nocivos aos avanços de valores democráticos como a liberdade, igualdade e solidariedade. A obra Efeito Vinculante e Concretização do Direito é mais uma tentativa de desenvolver uma hermenêutica concretizadora dos direitos humanos, livre das manipulações lingüísticas e dos modelos fechados, mas focada no caso sub judice e aberta à pluralidade de argumentos e de pontos de vista sobre a solução a ser dada.
Mais do que isso, as idéias desenvolvidas nos leva fatalmente a conclusão de que a saída para a crise do Judiciário passa pela mudança de mentalidade dos juízes, que devem assumir seu papel de protagonistas da criação da norma jurídica e vetores da efetividade do direito. O magistrado não pode ficar passivo e indiferente à construção de uma sociedade justa e igualitária. Tampouco deve se quedar a entendimentos preconcebidos, sem levar em consideração as particularidades do caso sob julgamento. A legitimidade das decisões judiciais está condicionada à eficiente mediação concretizadora das normas jurídicas, muitas das quais dotadas conteúdos abertos, polissêmicos e indeterminados. É aí que a hermenêutica assume uma importância central: assegurar a todos o exercício da cidadania e a plena fruição dos direitos fundamentais.
A interpretação constitucional não deve ser monopólio do Judiciário, mas uma tarefa coletiva que envolva todas as forças vivas da sociedade. É preciso que os conflitos sejam analisados sob diversos ângulos, sem desprezar nenhum argumento que possa contribuir para o seu desfecho. Esse pluralismo está no cerne do pensamento de Peter Härbele, que defende a idéia de uma sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. Nela o processo hermenêutico ganha contornos democráticos e interdisciplinares, já a que solução de cada caso será sempre o produto da conjunção de esforços para concretizar o direito legítimo e válido.
A contribuição científica de Rosmar Antonni supre uma importante lacuna na doutrina brasileira. Tenho certeza de que suas proposições servirão de baliza para todos que queiram participar ativamente do processo de concretização dos direitos humanos no Brasil, tarefa que implica a redução das desigualdades sociais, a melhoria dos serviços públicos, a luta contra a corrupção e a promoção de políticas públicas articuladas e voltadas para a justiça social.
Maceió, 2009.