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sexta-feira, 31 de julho de 2009

O PALAVRÃO TERAPÊUTICO


ISAAC SANDES
Aos domingos, sempre me entrego ao prazer de não assistir o “Fantástico”. Prazer que comecei a descobrir quando notei que tal programa era para a grande maioria, a “ Patriótica Neosaldina ”, enquanto, para mim, era a enxaqueca da segunda feira.
Portanto, não mais assisto o “Fantástico”. Entretanto, em um dos últimos domingos, enquanto lia meus e-mails, minha orelha e meu olho que estavam voltados para a televisão, foram covardemente invadidos por aquela musiquinha e a fatal chamada: “ O papel do palavrão na cura dos machucados”, ou algo assim.
Coincidência ou não, antes já havia submetido, aquele até então não global tema, a elevada consideração de meus amigos no almoço das sextas. Disse-lhes que sempre achei que o palavrão tinha o condão de aliviar dores, de desafogar mágoas, de ser o nosso barato e ordinário psicólogo sempre à mão, ou melhor, sempre à boca.
Os politicamente corretos, até no relaxado almoço das sextas, rosnaram contra. Por outra, aqueles que nos ditos almoços, relaxam até os esfíncteres, de pronto concordaram com a inusitada tese curativa. As duas correntes, politicamente corretos de um lado e incorrigíveis relaxados do outro, já davam, a qualquer isento observador, uma antevisão do escore . Mas, como sabemos, nos almoços das sextas não existem isentos. Todos à mesa, numa sexta-feira, assumem suas paixões e as defendem, se possível com facadas e garfadas. - Até que a pacificadora comida chegue!
Caso a ser estudado. O incêndio das paixões nos almoços das sextas-feiras. – Tem sua origem num atávico ritual dos bandos que se reuniam em torno da ancestral fogueira ? - Ou no tempero apimentado que a fome vai jogando na inocente discussão ? - Digam vocês !!
Fato é que a comida demorava. Estávamos todos já arrotando fome e tomados da hipoglicêmica tremedeira. A discussão se avolumava. Já havia contendedores com caras encrispadas. Espumas epilépticas formavam balõezinhos no canto da boca de alguns. Outros, já utilizavam os ditos palavrões para, sem sentir, escoar sua ira.
Quando, aproveitando um vácuo respiratório dos cansados e esfomeados Freuds e Jungs, tive a maldade de lançar a herética intervenção.
Gritei...! - “Calma amigos!!! - Para encerrar a discussão e como tema para reflexão, proponho a seguinte questão:
- Imagine cada um de vocês que, estando Sua Santidade o Papa, não digo o atual, mas qualquer Papa, de Pedro ao mais recente, andando pelos santos corredores do Vaticano a mancar com um dos pés enfiado em uma improvisada sandália de pescador, pois o inchaço de um latejante panariço transformou o dedão do seu pé em um pulsante macete de bombo. Até uma corrente de ar faz doer a santa mancada. Quando, de repente, aquele quase invisível degrauzinho à sua frente o faz dar violenta topada no latejante dedão. Respondam: - Sem paixões e sem pudores - Com que palavras Sua Santidade contemplaria tal ocorrência, enquanto, rodando num pé só, segura e ampara a pulsante e dolorida chaga ?
Na hora, eu e minha genitora, recebemos os mais “elogiosos” encômios dos crentes ali presentes. Foram eles dos mais comezinhos e chulos a herege e anticristo. Imagine, colocar sua santidade no meio de tão inusitada e profana cena. Enquanto os outros, não tendo coragem de verbalizar sua defesa diante daqueles esgares assassinos, apenas sorriam marotamente e diziam: Calma amigos. Calma. Não pensem no santo, imaginem o homem, pensem no mortal e falível homem que há nele. O santo é apenas a ênfase da cena.
Quando a situação estava se tornando quase um festim diabólico, soou a corneta da cavalaria. Era a comida chegando. Fui, assim, poupado de, ali mesmo, me converter no próprio almoço, e tornar-me gravura de Staden.
Neste momento, a salvo, aguardo o próximo almoço das sextas para, antes da má conselheira fome, colher os já refletidos votos e as isentas respostas.
Isaac Sandes
28/07/09

segunda-feira, 27 de julho de 2009

FLORIANÓPOLIS E A CRISE DE IDENTIDADE


GEORGE SARMENTO

Há pessoas que se sentem tão incomodadas com seus nomes de batismo que ficam loucas para se livrar deles o mais rápido possível. O problema é que a legislação brasileira só autoriza a modificação do prenome quando há erro de grafia ou exposição ao ridículo. Os cartórios de registro estão cheios de averbações bizarras como Manoel Sola de Sá Pato, Dosolina Piroca, Joaquim Pinto Molhadinho, Otávio Bunda Seca, José Xixi e Vivelinda Cabrita. Sem falar em prenomes como Venério, Bucetildes, Waldisnney, Libertino e por aí vai. A lista é tão grande quanto à criatividade do nosso povo.

Estou convencido de que a empatia entre nome e usuário é um dos elementos mais importantes para a auto-estima. Como promotor de justiça atuei em muitas ações de retificação envolvendo homens e mulheres insatisfeitos com seus prenomes. Lembro-me da alegria de Lúcio, um travesti de Marechal Deodoro que se submeteu à cirurgia de mudança de sexo numa clínica marroquina e passou a chamar-se Lucileide. E da tristeza de Stephanie, que simplesmente detestava ser chamada assim, embora fosse xará de uma das mais belas e sedutoras princesas de Mônaco. O indeferimento do juiz condenou-a a suportar enternamente o companheiro indesejável.

Estava pensando nessas coisas quando desembarquei em Florianópolis para participar de uma banca examinadora no doutorado da UFSC. Já havia notado um certo desconforto dos moradores em considerar o Marechal Floriano Peixoto um ícone da cidade. No principal museu não há qualquer homenagem ao ilustre alagoano, tampouco exaltação dos seus feitos na Guerra do Paraguai ou à frente da Presidência da República. As placas nas ruas, as estampas das camisetas, os textos publicitários, os jornais, em tudo se percebe claramente a preferência pelo vocábulo Floripa.

Qual a razão de tanta resistência? Realmente, o sufixo polis unido ao nome próprio denota apropriação, posse, controle. Cidade de Floriano, talvez soe presunçoso. Mas não é essa a razão. Senão os moradores de Petrópolis, Tiradentes e João Pessoa teriam a mesma reação. Após perfunctórias investigações, uma perguntinha aqui outra ali, descobri que o velho marechal não é uma figura muito popular por essas bandas. Não pelo fato de ser alagoano, mas pelas atrocidades que lhe são atribuídas. Os mais exaltados o chamam de sanguinário e tirano. Alguns chegam mesmo a propor a mudança de nome da cidade.

Santa Catarina foi palco da Revolução Federalista, movimento político encabeçado por setores conservadores da aristocracia rural, interessados em manter privilégios herdados da monarquia. A revolta começou em 1893 e tinha natureza separatista. Redundou na criação do Estado de Santa Catarina - país livre e independente do restante do Brasil. Os golpistas eram extremamente violentos e disseminavam o terror entre a população. Coube a Floriano Peixoto a difícil tarefa de consolidar a república recém-criada, mesmo que, para isso, tivesse de enfrentar os dissabores de uma guerra fraticida.

Designou o coronel Moreira Cesar para sufocar a revolta e restabelecer a ordem constitucional. Depois de algumas batalhas, as tropas legalistas romperam o cerco e se instalaram na ilha de Nossa Senhora do Desterro. Foi aí que começou o ajuste de contas, com a execução sumária dos líderes revoltosos, entre eles grandes proprietários de terra, políticos, militares e banqueiros. O Corta Cabeças, como ficou conhecido o coronel, foi o responsável pelo fuzilamento de mais de 300 pessoas sem clemência ou julgamento por um tribunal. A atuação do sanguinário militar em terras catarinenses desgastou a imagem de Floriano Peixoto, que passou a ser estigmatizado como um cruel ditador.

Afinal, quem é esse emblemático personagem da História do Brasil? Eu tinha meus 5 ou 6 anos de idade quando meus pais compraram um pequeno lote na praia de Ipioca. Os filhos puseram roupa nova para conhecer a nova "propriedade", com direito a retrato e tudo. Foi um grande acontecimento familiar. Lembro-me perfeitamente quando o meu pai apontou para o alto do morro e disse: "Ali nasceu Floriano Peixoto, o segundo presidente do Brasil". Sempre que posso visito o local, um mirante de onde se tem uma vista paradisíaca do mar e de seus extensos coqueirais, ainda não devastados pela especulação imobiliária. Do marechal, resta apenas uma modesta placa indicativa do acontecimento natalício. Nada mais.

Floriano Peixoto nasceu em uma família muito pobre e foi criado por seu padrinho, um modesto fazendeiro alagoano. Logo cedo mudou-se para o Rio de Janeiro, onde foi brilhante aluno da Escola Militar. Teve notável participação na Guerra do Paraguai, tomando parte de missões arriscadas que exigiam muita disciplina e coragem pessoal. Com a renúncia de Deodoro da Fonseca, assumiu a presidência da república e foi obrigado a enfrentar vários levantes nas Forças Armadas contra o governo. Agiu com energia e saiu vitorioso. Morreu aos 52 anos de idade, de complicações digestivas adquiridas nos campos de batalha.

A verdade é que o Marechal de Ferro foi um dos grandes responsáveis pela unidade nacional num momento em que o Brasil estava ameaçado de se esfacelar em várias repúblicas, seguindo o legado espanhol na América do Sul. Os seus métodos de ação foram controvertidos e, muitas vezes, violentos. Mas ninguém pode negar que a força de seu patriotismo foi decisiva para proteger o país das elites retrógradas, muito mais interessadas na manutenção dos seus privilégios do que em construir uma pátria para todos os brasileiros.

Retorno à Terra dos Marechais sem nenhuma crise de identidade e cada vez mais orgulhoso de ter nascido alagoano.