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quinta-feira, 16 de junho de 2016

NIETZSCHE E O AMOR COMO APROPRIAÇÃO DO OUTRO

George Sarmento

Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) é considerado um dos filósofos mais importantes do pensamento ocidental. Suas ideias  são controvertidas, surpreendentes, provocadoras, impactantes, alvo de infindáveis discussões acadêmicas. O autor de obras filosóficas de grande densidade como E assim falou Zarathustra (1885), Além do Bem e do Mal (1886) e Ecce Homo (1888) instiga e atrai estudiosos de todo o mundo. Ferrenho crítico da moral judaico-cristã, dedicou-se a desmascarar os preconceitos da sociedade de sua época, procurando interpretar o que se esconde por trás dos valores burgueses. Neste post desenvolvo alguns aspectos de sua crítica ao amor e ao casamento. Para quem não está disposto a visitar seus livros, recomendo 100 aforismos sobre o amor e a morte (editado pela Companhia das Letras e Penguin), que  reúne os principais escritos do filósofo sobre o tema. O organizador, Paulo César de Souza, teve o mérito de selecionar as  passagens mais paradigmáticas sobre o amor - até então dispersas em várias de suas obras.

Eis a questão: o que se pode entender por amor-paixão na filosofia nietzschiana?

Enquanto muitos acreditam que o amor é a manifestação mais pura do altruísmo e da devoção ao outro, Nietzsche sustenta que ele expressa o inato egoísmo que habita em cada um de nós, sobretudo o inesgotável desejo de se apropriar da pessoa amada. Não está em jogo a felicidade do outro, o exercício de sua auto-determinação, o agir sem a interferência de quem quer que seja. O que importa é o desejo de transformar em propriedade a pessoa que encarna o produto de nosso amor. Para o filósofo alemão,  o amor sexual é a materialização de nossa ânsia de propriedade. Por isso "o amante quer a posse incondicional e única da pessoa desejada, quer poder incondicional tanto sobre a alma como sobre o corpo, quer ser amado unicamente, habitando e dominando a outra alma como algo supremo e absolutamente desejável". 

Para tomar posse do território sentimental não há limites: jogos de sedução, juras de amor, súplicas desesperadas, humilhações aviltantes, atos heroicos. Essas armadilhas fazem parte do discurso que se destina a persuadir a vítima a capitular sem impor condições. Ao aceitar a relação amorosa, ela cede inconscientemente uma grande parcela sua liberdade e permite  a  apropriação de sua vida amorosa. O amor, para Nietzsche, é uma insidiosa armadilha do egoísta, que termina por saciar o seu desejo de conquista, abrindo caminho para outras formas de dominação.

O egoísta aspira ser o único alvo dos sentimentos da pessoa amada. Acha que só ele é merecedor daquele amor. Por isso trata de isolá-la das relações sociais anteriores. Exige exclusividade e total devoção. Desenvolve um acentuado sentimento de ciúme e passa a ver ameaças em todos os lugares. De repente os amigos se afastam, escaceiam-se as visitas familiares, os clientes diminuem. Ele tenta persuadi-la que se tratavam de pessoas artificiais e invejosas, cuja partida trará grandes benefícios para o casal. Pouco a pouco começa a introduzi-la em seu universo, desenraizando-a de seu passado até roubar-lhe a subjetividade. O distanciamento dos entes queridos  alimenta o processo de apropriação sobre o outro. Cria todas as condições para o exercício da posse, ainda que por meio de pequenas compensações. 

Muitas vezes a vítima não se deixa seduzir e rompe a relação amorosa. Ao ver seus objetivos de dominação fracassarem, muitas pessoas passam a adotar uma postura submissa: vitimizam-se, prometem fidelidade eterna, abundância de bens materiais, choram copiosamente ou ficam deprimidas. Outras vezes são violentos e cruéis. Por trás desses discursos, está latente o desejo de apropriação do outro. Se ele cede, logo os atos de posse e de dominação reaparecem. Se a vítima não muda de ideia, o opressor sente profunda dor, o "chagrin d'amour" - fruto do orgulho ferido -, que só acaba quando as atenções voltam-se para outra vítima. E aí tudo recomeça.

Para Nietzche, o fenômeno funciona mais ou menos assim: o rapaz  (mas poderia ser a mulher) é apresentado a uma moça por amigos comuns e, de repente, se sente flechado pelo cupido, tem a sensação de ter sido atingido por um raio, passa a ver a vida sob outra perspectiva. Inconscientemente brota nele o desejo de apropriar-se de sua "amada" para tornar-se exclusivo e imprescindível para ela. Essa ideia domina seus pensamentos, enraíza-se em sua mente, conduz suas ações, fazendo-o acreditar que encontrou a outra metade de seu ser para fazê-lo eternamente feliz. Começa então um jogo de sedução cujo principal objetivo é conquistar o amor que ainda não tem. E aquilo que lhe falta transforma-se na coisa mais importante de sua vida. Às vezes o desejo de posse sequer é percebido pela razão, está escondido nos recônditos da psiquê. Se a moça aceita incondicionalmente o amor, faz concessões, cede sua liberdade. Capitula. Resultado: o desafio deixa de existir. A posse está consumada, o que é motivo de grande prazer, de verdadeiro regojizo momentâneo. Porém, com o tempo, não há mais mistério, o desejo começa a diminuir, o rompimento parece inevitável e logo ele vai em busca de novos territórios a serem ocupados. Se a moça não se deixa conquistar, o processo de apropriação se frustrará causando grande sofrimento ao amante rejeitado, que sofrerá profundamente até que seu interesse se volte para outra vitima. E aí tudo recomeça. Tudo isso ocorre porque o desejo de posse é indissociável da natureza humana, alimentando a vaidade, o orgulho e, muitas vezes, o machismo. Isso pode explicar a efemeridade dos amores contemporâneos tão bem descritos em várias obras de Zygmunt Bauman.

A literatura judiciária está repleta de crimes motivados pela rejeição amorosa. Na maioria dos casos, o criminoso não sabe lidar com a perda da posse, com o orgulho ferido, com a vaidade arranhada. Narrativa notável sobre o tema pode ser encontrada livro Paixão e Crime, escrito na década de 60 pelo polêmico jornalista Carlos Lacerda. Destacado para cobrir o julgamento do maître Pierre Jaccoud, eminente político e advogado suíço, acusado do assassinato de Charles  Zumbach (pai de seu rival), Lacerda deparou-se com uma personalidade complexa, capaz de correr todos os riscos - inclusive a desgraça pública - para satisfazer seus desejos de apropriação. Ao traçar o perfil do acusado, até então considerado um cidadão acima de qualquer suspeita,  revela uma alma dominadora, incapaz de aceitar  o rompimento de sua amante, a jovem Linda Baud. Movido pelo egoísmo, Maître Jaccoud desenvolveu o complexo de Pigmaleão, pois quis transformar Linda Baud numa projeção de sua própria imagem, decidindo recriá-la, modelá-la, aperfeiçoá-la. Quando ela se recusou a representar o papel, o acusado entrou em desespero e decidiu praticar o crime.  

Por que o desejo de posse está tão incrustado no ser humano? Nietzche explica esse fenômeno pela propensão natural de auto-renovação. A posse significa a reintrodução de algo novo em nós mesmos, funciona como a reinvenção de nossa subjetividade. É motivo de verdadeiro regojizo. "Meu marido", "meu apartamento", "minha casa", "minha viagem", "minhas joias", tudo isso tem sabor irresistível no momento da apropriação. O problema é que logo nos cansamos dos objetos ou pessoas  e partimos em busca de outras conquistas, já que uma posse será sempre substituída por outra posse. "Enfadar-se de uma posse é enfadar-se de si mesmo", diz o filósofo. Por isso,  o amor nada mais seria que o desejo de nova posse que alimenta e faz com que a conquista seja motivo de grande prazer.

Outro aspecto importante do pensamento de Nietzche - com evidente influência de Kant - é a constatação da impossibilidade de se controlar os sentimentos amorosos para garantir as expectativas do outro.  O sentimentos suplantam a racionalidade. São ingovernáveis pela razão. Quando prometemos amor eterno, mentimos (ou nos enganamos); afirmamos algo que não podemos garantir. O máximo que se pode fazer é prometer atos específicos, ainda que tenham motivações distintas. Para ele, a promessa de amar eternamente alguém significa: "enquanto eu te amar, demonstrarei com atos o meu amor; se eu não mais te amar, continuarei a praticar esses mesmos atos, ainda que por outros motivos". Exemplo: a mulher apaixonada cerca o homem de cuidados, gentilezas, respeito e doçura; por sua vez o homem com o coração pleno de amor age com cavalheirismo, cumplicidade, carinho e fidelidade. Acreditam que será assim para sempre. Aspiram a sensação de plenitude. Mas se um deles deixa de amar, o outro poderá continuará a praticar os mesmos atos sem que isso implique contradição ou hipocrisia.

Nietzche é contrário à ideia de igualdade de gênero. Para ele, existe verdadeira assimetria entre os direitos do homem e da mulher no amor. As condutas são guiadas pelo determinismo genético, que não pode ser modificado por contrato social ou desejo de justiça. O amor possui significados absolutamente distintos a depender do sexo. A mulher vê o amor como dedicação e entrega incondicional ao homem escolhido, o que implica total renúncia de direitos e fidelidade absoluta.

Por outro lado, o homem anseia por dedicação, que é o principal componente da posse conquistada. Daí Nietzche afirmar que "a mulher quer ser tomada e aceita como posse, quer ser absorvida na noção de posse, de possuído". Para o homem, o amor resume-se a um querer-ter, o que não comporta renúncias ou concessões. Se o homem age como mulher, agindo com profunda generosidade, transforma-se em escravo e atrai o desprezo do sexo oposto. Assim, o papel de cada cônjuge estaria bem delimitado com a satisfação de expectativas cognitivas orientadas pela natureza das coisas. Esse equilíbrio só seria quebrado se o homem decidisse se distanciar de sua condição de dominador. Se, por amor, ambos abrissem mão do poder, o resultado seria um verdadeiro vazio existencial que terminaria por infernizar suas vidas.

Em sua formulação teórica, o casamento surge como a mais alta forma de amizade espiritual entre pessoas de sexo diferente. Por isso não pode ser baseado no amor. Os casais apaixonados deveriam ser proibidos de tomar decisões sobre esse importante passo da vida, pois vivem em estado alterado da consciência. Sob o efeito do que supõem ser amor - frequentemente confundifo com paixão - eles sempre vêem as coisas como não são, pois a força da ilusão está no seu apogeu. Nessa condição perdem a noção de realidade e passam a ver as coisas distorcidas. Nietzche também é partidário dos casais que vivem em casas separadas, decisão essencial para o bom casamento. Em suas palavras: "se os cônjuges não morassem juntos, os bons casamentos seriam mais comuns". A distância geográfica entre os cônjuges aumentaria o clima de mistério e prolongaria a ruptura inevitável, pior ainda, a falta de interesse pela pessoa conquistada.

Ao invés de satisfação sexual, o matrimônio tem como objetivo maior gerar e educar uma nova geração. O amor sobreviveria na prole que, em tese, seria a garantia da perpetuidade da espécie. Ele chega a recomendar a adoção de concubina para desempenhar o papel de elemento sexual suplementar a fim de aliviar a carga que recai sobre as costas da mulher na administração do lar. A boa esposa está plenamente ocupada em ser boa amiga, ajudante, genitora, mãe, cabeça da família, administradora etc.

Portanto, as relações sexuais não seriam determinantes para a manutenção do casamento. Nietzche sustenta que as afinidades intelectuais e de gostos são indissociáveis da vida a dois. A convivência pressupõe diálogo entre os cônjuges. Mais do que isso, está baseada no prazer da conversa, da convivência, da cumplicidade. A afinidade dos laços matrimoniais se constrói a partir da prática dialógica. O casamento é, acima de tudo, uma longa conversa. Com a palavra o filósofo: "ao iniciar um casamento, o homem deve se colocar a seguinte pergunta: você acredita que gostará de conversar com essa mulher até na velhice? Tudo o mais no casamento é transitório, mas a maior parte do tempo é dedicada a conversa". Penso nisso quando vejo longos silêncios entre casais em restaurantes, que mal se olham e cujas companhias nada mais são que um espectro de um passado cheio de mágoas e rancores.

As ideias de Nietzche  fustigam a moral judaico-cristã, colocando em dúvida os seus valores e convicções. Muitas vezes dando uma visão árida do amor - sentimento no qual depositamos todas as esperanças. Temos dificuldade em perceber esse sentimento tão doce como uma forma de dominação do mais fraco, de apropriação, de posse. Pode-se até mesmo discordar de tudo que ele defende, sobretudo de seu pessimismo em relação à nossa felicidade. Mas é inegável que o pensamento do filósofo alemão é rico, autêntico, corajoso e revolucionário, pois nos convida a retirar as máscaras da face para que nos percebamos tal como fomos criados, sem o verniz da civilização. Cruamente. Sem subterfúgios.

PARA REFLEXÃO: OUTROS AFORISMOS DE NIETZCHE


  • Após uma desavença e disputa pessoal entre uma mulher e um homem, uma parte sofre mais com a ideia de ter magoado a outra; enquanto esta sofre mais com a ideia de não ter magoado o outro o bastante, e por isso se empenha depois, com lágrimas, soluços e caras feias, em lhe amargurar o coração.
  • Às vezes bastam óculos mais fortes para curar um apaixonado; e quem tivesse força  de imaginação para conceber um rosto, uma silhueta vinte anos mais velha, talvez passasse pela vida imperturbado.
  • Em toda espécie de amor feminino também aparece algo do amor materno.
  • Para a doença masculina do autodesprezo o remédio mais seguro é ser amado por uma mulher inteligente.
  • o que é o amor, senão compreender que que um outro viva, aja e sinta de maneira diversa e oposta da nossa e alegrar-se com isso?
  • Todo grande amor traz consigo o cruel pensamento de matar o objeto do amor, para subtraí-lo de uma vez por todas ao sacrílego jogo da mudança: pois o amor tem mais receio da mudança que do aniquilamento.