terça-feira, 16 de setembro de 2025

SOCIOLOGIA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

George Sarmento

 

 

    No Brasil, as políticas públicas tornaram-se um dos temas mais importantes para a efetividade dos direitos econômicos, sociais e culturais. Mais do que nunca o acesso à saúde, moradia, educação, transportes, infraestrutura, trabalho, previdência social, meio ambiente e patrimônio histórico depende de sua adequada implementação. A luta pelo acesso dos cidadãos brasileiros a serviços públicos eficientes, de boa qualidade, e, sobretudo, pela concretização dos direitos humanos fundamentais na realidade social, fez surgir o fenômeno da judicialização da política, aumentando extraordinariamente o controle judicial sobre as decisões dos gestores públicos, hoje vinculados à Constituição Dirigente, que estabelece as opções políticas a serem seguidas em todos os níveis de governo.

 

Cada vez mais as políticas públicas, os programas governamentais e as ações afirmativas são questionadas no Judiciário. Proposições como o direito ao mínimo existencial, reserva do possível, proibição do retrocesso social, proibição do excesso e proibição de proteção deficiente, recheiam os discursos neoconstitucionalistas, comprometidos com a efetividade dos direitos sociais, em sentido amplo. A Nova Hermenêutica Constitucional também contribui para a retórica da efetividade, trazendo para o debate jurídico o princípio da proporcionalidade, a interpretação de princípios, regras e valores – tudo para assegurar maior racionalidade às decisões jurisprudenciais.

 

Entretanto, ainda hoje prevalece na doutrina jurídica a ideia de que o Estado é o único responsável pelas prestações positivas (deveres estatais objetivos). J.J. Gomes Canotilho reconhece a existência de direitos originários a prestações quando, entre outras coisas, existe o dever do Estado de criar as condições materiais, indispensáveis ao seu exercício*. Cristina Queiroz, outra jurista portuguesa é taxativa ao afirmar que os “direitos sociais constituem obrigações de prestações positivas cuja satisfação consiste em um facere, uma ação positiva a cargo dos poderes públicos**”. Essa vertente é seguida por grande parte da doutrina brasileira, que sustenta a tese de direitos prestacionais dirigidos ao Estado por força de disposição constitucional***.  Na jurisprudência brasileira, o Supremo Tribunal assentou a convicção de que cabe ao Estado a satisfação dos direitos econômicos, sociais e culturais (ADPF 45). Enfim, nesse particular o Estado é o protagonista absoluto da efetividade.

 

A leitura dessas concepções teóricas expressa a crença no “Estado Todo Poderoso” – o Estado Providência – que traz para si a hercúlea missão de conduzir as políticas públicas inerentes à progressividade dos direitos sociais no Brasil. A sua atuação nesse campo está sob a constante atuação ativista do Judiciário, absolutamente comprometido com a efetividade dos direitos sociais, ainda que para isso interfira em aspectos importantes da gestão pública em nome de imperativos constitucionais inegociáveis.

 

A obra Sociologia da Ação Pública se propõe a quebrar alguns paradigmas, até então cristalizados nas reflexões dos mais importantes juristas brasileiros.  Seus autores, Pierre Lascoumes e Patrick Le Galès, professores do renomado Instituto de Ciências Políticas de Paris, sustentam, já no início da obra, que o modelo clássico de políticas públicas conduzidas exclusivamente pelo Estado está completamente ultrapassado, em virtude das constantes interações entre atores públicos, privados, instituições financeiras, corporações internacionais, organizações não governamentais e agências multilaterais, com poderes de influenciar as estratégias, os projetos e os resultados. 

 

Também chamam a atenção para as sequências que envolvem a implementação das políticas públicas, em que um conjunto de atores públicos (Secretários de Estado, Ministros, Comissões de licitação, funcionários de alto escalão) assume a condução das várias etapas da execução de projetos sociais. Essa visão retrata a distância entre a decisão do governante sobre determinado desafio social e o que sucede após o início dos trabalhos. A compreensão desse fenômeno, em sociedades complexas e extremamente compartimentalizadas, produzirá importantes efeitos nas investigações de improbidade administrativa, facilitando a fixação das responsabilidades civil, penal e administrativa dos agentes públicos envolvidos em atos de corrupção. 

 

Esse conjunto de interações tem, pouco a pouco, substituído a expressão políticas públicas por ação pública, considerada mais adequada para definir esse fenômeno contemporâneo. Políticas públicas têm abrangência mais restrita na medida em que implicam exclusivamente a intervenção do Estado, ações governamentais, atuação setorial das autoridades etc. Ação Pública, por sua vez, se aplica não só à atuação da Administração Pública, mas também a de outros atores públicos ou privados originários da sociedade civil, que agem conjuntamente em busca de objetivos comuns, sobretudo a efetivação dos direitos sociais. Em outras palavras, ambas atuam sob perspectivas distintas. A primeira é substancialmente estato-centrista, enquanto a segunda, leva em consideração a grande diversidade de atores e formas de mobilização que interagem e se articulam para resolver determinado problema público. Dessa forma, a obra busca conciliar tais abordagens em torno da chamada Sociologia Política da Ação Pública.

 

O método de análise dessa disciplina fundamenta-se em grandes rupturas com paradigmas tradicionalmente sedimentados na análise das políticas públicas. Em primeiro lugar, o abandono da crença no voluntarismo político, que assegura grande popularidade dos líderes, partidos ou tecnocratas, apresentados como benfeitores do povo ou “salvadores da pátria”, sempre agindo em nome do bem comum. Em segundo lugar, o rompimento com a ideia de unicidade do Estado, imparcial, racional, detentor do monopólio das políticas públicas, mas uma estrutura administrativa que é fortemente influenciada por grupos de pressão que atuam em diversos setores a gestão pública. Por fim, a descrença do fetichismo da decisão dos governantes, na medida em que, frequentemente, esbarra em processos de implementação defeituosos, confusos, fluidos, com poucos resultados práticos.

 

Embora não exista uma definição consensual de políticas públicas, muitos estudiosos procuraram estabelecer critérios identificadores, que tornam o seu conteúdo bastante complexo. Reproduzo aqui o conceito de Richard Rose: política pública “é um programa de ação governamental e uma combinação específica de leis, destinação de recursos financeiros, administrativos e humanos para a realização de objetivos mais ou menos definidos com clareza”. Mas essa proposição ainda está longe de ser aceita pelos sociólogos. Os autores desta obra enfrentam esse problema, apresentando dimensões específicas acrescentadas por outros estudiosos. Entretanto, de forma criativa, propõem o Pentágono das Políticas Públicas, composto por cinco elementos articulados entre si (atores, representações, instituições, processos e resultados), que, juntos, permitem uma análise bem precisa da ação pública.

 

governança é outro conceito extensamente trabalhado na Sociologia da Ação Pública. Isso decorre da constatação do fracasso de diversas políticas públicas, em razão de problemas técnicos, falha de planejamento, implementação deficiente e resistência dos grupos de interesse com capacidade de bloquear reformas. É aí que surge a noção de governança como um instrumento de coordenação dos atores, dos grupos sociais e das instituições governamentais a fim de construir coletivamente objetivos, metas e resultados que representem o consenso das forças vivas da sociedade. Ela em uma ambiência multiníveis, multiatores e multiformes. Na verdade, ela implica um conjunto de procedimentos que possibilitam modalidades e formas de arranjos sociais em um ambiente concorrencial, em respeito aos princípios democráticos, a proteção dos direitos humanos, o compromisso com a preservação do meio ambiente, o combate à fome, a pobreza e as desigualdades entre os seres humanos. Nesse aspecto aconselho a leitura do documento intitulado Princípios de Governança Corporativa da OCDE, 2004. 

 

Pierre Lascoumes e Patrick Le Galès demonstram com clareza que a análise das políticas públicas sempre gravitou em duas dimensões: (1) a abordagem top down (de cima para baixo), isto é, partem das estruturas mais elevadas do poder estatal, funcionários de alto escalão, respeitáveis grupos de tecnocratas e suas decisões para solucionar problemas públicos; e (2) abordagem bottom up (de baixo para cima), ou seja, o estudo da implementação, das consequências e dos fracassos das políticas públicas preponderam sobre sua planificação pelas instâncias estatais de todos os níveis (federal, estadual ou municipal). Os seguidores dessa orientação teórica não se interessam pelas boas intenções dos líderes ou gestores públicos, mas a forma como foram implementados os projetos e programas sociais, seus defeitos e suas virtudes.  

 

 Na perspectiva botton up, os fracassos das políticas públicas passaram a ser explicados sob três aspectos: inefetividade,ineficácia e ineficiência. Por inefetividade devemos entender falhas na implementação daquilo que foi planejado, a exemplo de ausência de decretos para regulamentar leis existentes, entraves burocráticos como a demora nas desapropriações nas concessões de licença e outros obstáculos que impedem a realização adequada dos trabalhos; já a ineficácia é a constatação de que os resultados obtidos depois da implementação da política pública foram insatisfatórios; por fim, a ineficiência acontece quando o volume de investimentos destinados a determinada política pública não causa o impacto esperado, que é extremamente inferior às expectativas do governo e dos destinatários.

 

Pesquisas realizadas nos Estados Unidos e na Europa buscaram imprimir um forte grau de racionalidade nas políticas públicas. Quase todas as correntes verificaram a insuficiência da planificação exclusivamente baseada em organogramas hierárquicos, na atuação mecanizada dos funcionários, presos a esquemas operacionais rígidos e inflexíveis. A grande novidade foi a existência de espaços em que os atores poderiam agir com determinada autonomia, elaborar estruturas ou conceber sistemas originais para atingir melhores resultados. Esse espaço de liberdade se justifica pelo fato de que os programas governamentais estão repletos de ambiguidades, omissões, contradições, sem rigorosa repartição de competências. Em outras palavras, as pesquisas voltaram-se para os executores, como elementos essenciais ao sucesso das políticas.

 

Nesse estudo é dada grande ênfase ao papel dos atores na dinâmica da ação pública. O vocábulo é utilizado em sociologia para designar todas as pessoas físicas ou jurídicas que atuam ativamente na tomada de decisões. O ator público e o ator privado devem ser capazes de desenvolver estratégias de ação que, efetivamente, tenham repercussão palpáveis sobre o desenrolar de determinada ação pública a ponto de modificá-la, aprimorá-la, ampliar o seu espectro de ação ou, até mesmo, abortá-la.

 

Os atores individuais agem através de denúncias, laudos técnicos, representações a órgãos públicos, sensibilização da opinião pública para questões controvertidas, recurso à mídia, ajuizamento de ações populares, campanhas de rua etc. Muitas vezes o parecer de um cientista renomado muda determinada decisão que já havia sido tomada pelo governo. Mas são os atores coletivos que exercem maior influência em toda ação pública, sejam eles públicos ou privados.

 

Os atores coletivos públicos possuem características como poder de decisão, legitimidade institucional, compromisso com os interesses comuns, atribuições para fiscalizar os órgãos administrativos, promover licenciamentos etc. Claro que o Presidente da República, Governadores, Prefeitos, Ministros e Secretários são importantes atores. O mesmo se pode dizer do Judiciário e do Parlamento. Entretanto, o Ministério Público se destaca como uma instituição estatal – independente e autônoma – que tem estabelecido excelente relação dialógica com a sociedade civil no sentido de promover a tutela dos interesses sociais, coletivos e difusos, através de instauração de inquéritos civis, termos de ajustes de conduta e ajuizamento de ações civis públicas contra atos governamentais que implicam graves disfunções nas políticas públicas promovidas pelos entes federativos. Com isso tem obtido grandes avanços em relação à melhoria de vida da população, à garantia de serviços públicos de boa qualidade e à promoção racional e democrática dos direitos sociais no Brasil.

 

Por outro lado, os atores coletivos privados também são imprescindíveis à concepção e implementação das políticas públicas. Entre eles estão as associações, as organizações não governamentais, estudantes, consumidores, sindicatos, as instituições financeiras e grupos de interesse, todos com capacidade de estabelecer estratégias claras, mobilizar recursos e pessoas que possam agir articulada e coletivamente em direção ao objetivo comum.

  

As políticas públicas são apresentadas como “regulação social e política dos desafios sociais”. Nesse aspecto, o Direito exerce um papel preponderante em sua estruturação. Para as ciências sociais, “regular” significa ajustar ou conformar determinadas condutas sociais às normas jurídicas, que prescrevem comportamentos e atribuem sanções. Em dadas situações significa a criação, a modificação, evolução ou supressão de normas para aprimorar o controle social. Muitas vezes essas transformações decorrem da evolução jurisprudencial ou da necessidade de adequação ao mercado. Os autores da Sociologia da Ação Pública sustentam, de forma original, que a materialização das políticas públicas depende do respeito a que ele denomina, como gênero, normas de aplicaçãonormas de interpretaçãonormas de negociação e normas de resolução de conflitos, cujos conceitos estão bem expostos na obra. Assim, não se pode conceber políticas públicas efetivas sem o comprometimento governamental, forte articulação entre os atores envolvidos e uma estrutura jurídica capaz de viabilizar a correta implementação dos projetos, com resultados satisfatórios. 

 

Além desses elementos formais, a sociologia tem se preocupado cada vez mais com a implementação das políticas públicas, sob o prisma botton up. Desde a década de 60, pesquisadores oriundos de diversas ciências sociais têm refletido sobre o fracasso das políticas públicas. Muitas vezes existe a boa vontade, a planificação é racional, há a vontade dos governantes, a correta alocação de recursos, mas o resultado final é insatisfatório, até mesmo decepcionante. O resultado disso é um déficit expressivo para a população, que tinha grandes expectativas em obter a satisfação de determinado direito social. Era preciso encontrar as causas do fracasso e buscar nos esquemas que revertessem a situação.

 

Como dito acima, o modelo top down baseia-se no voluntarismo dos governantes – sobretudo os carismáticos e messiânicos – e na ação dos tecnocratas que assumem postos de alta hierarquia administrativa. As decisões são tomadas em gabinetes ministeriais e anunciadas com grande estardalhaço pela mídia, sem nenhuma participação da sociedade civil organizada. A grande justificativa para tais medidas é a tutela do bem comum ou do interesse geral pelas instituições públicas. Como as decisões são individuais, apenas o governo pode selecionar os desafios que integrarão a agenda pública. Esse formato apresentou muitos problemas no momento da implementação e do levantamento dos resultados advindos de determinadas políticas, sobretudo porque não estimulou ou promoveu nenhum tipo de negociação com os atores diretamente implicados no desafio social.

 

Outro aspecto que merece destaque na obra consiste na construção do problema político. O Brasil depara-se com diversos desafios constitucionalmente institucionalizados (CF, art. 3º): a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza, a redução das desigualdades sociais e regionais. O Estado é obrigado a desenvolver ações concretas para enfrentá-los. Porém, existem muitos fatos sociais que permanecem “órfãos”: visíveis, quase ignorados. Com fraca ou nenhuma reação social. Tal situação pode perdurar por muito tempo sem que haja qualquer reação da sociedade. Entretanto esse fato social pode se transformar em problema público a partir do momento em que os atores sociais (individuais ou coletivos) se interessam por ele e passam a propor soluções para resolvê-lo. A causa ganha legitimidade e visibilidade a partir do apoio de grupos da sociedade civil. Grupos que não tinham nenhum envolvimento com os fatos passam a tomar posições, a expressar-se coletivamente. A causa passa a ser objeto de debates, de tomada de posições, de mobilizações populares e da atenção dos órgãos de comunicação. Enfim, o problema é inscrito definitivamente no espaço social.

 

Em outras palavras, o fato social só se torna problema público quando a sociedade civil perceber que pode agir objetivamente para melhorar a situação. São, por conseguinte, o produto de uma construção coletiva que implica a interação de vários atores sociais. A partir do momento em que a solução do fato problematizado passar por medidas a serem adotadas pelo poder público, nasce o chamado problema político. Há um verdadeiro processo de apropriação do desafio social, gerando expectativa popular em relação aos resultados esperados, agora sob a perspectiva de prestações positivas estatais. O governo traz para si o problema com a promessa de desenvolver políticas públicas capazes de enfrentá-lo. O desafio passa a fazer parte da agenda pública, o que reforça o compromisso governamental de apresentar soluções racionais para o problema. Para Pierre Lascoumes e Patrick Le Galès, o ingresso na agenda pública está condicionado a três requisitos: (1) a situação deve ser considerada verdadeiramente problemática, o que justifica a intervenção governamental; (2) o desafio deve ser considerado de interesse geral; (3) o desafio deve ser formatado e requalificação para que se enquadre nas competências administrativas estatais. Porém, a inserção na agenda não dá nenhuma garantia de resolução definitiva, mas a esperança de que o tema será objeto de soluções concretas mediante a adequada alocação de recursos financeiros, projetos e ações governamentais.

 

Sociologia da Ação Pública também chama a atenção para os empreendedores da causa, individuais ou gerais. São atores que assumem a ação coletiva em defesa de determinada causa de interesse coletivo. Eles têm a tarefa de mobilizar a opinião pública, apresentar documentos, relatórios, estudos técnicos; publicizar o desafio mediante comícios, entrevistas, filmagens, articulação de redes de apoio, difundir as revindicações. São eles que acompanham de perto a concepção, implementação e resultado das políticas públicas. Em virtude de seu grau de engajamento, eles estão prontos para duelar nas arenas públicas em defesa de seus pontos de vista.

 

Muitas vezes são interlocutores dos governos nas tomadas de decisão; outras vezes atuam como grupos de veto em um espaço concorrencial. A arenas públicas são o palco em que se defrontam atores estatais, privados e redes de interesses, em que as interações acontecem com mais vigor na interpretação e na problematização de determinado desafio. Os debates travados pela multiplicidade de atores são marcados por forte força argumentativa, retórica e dialética, componente essencial para a construção do problema político e pelo fortalecimento da democracia. É nesse espaço que se manifesta a importância dos atores contestadores, que apontam as questões negligenciadas, as decisões contraditórias, os interesses não contemplados, as estratégias imprecisas. É em seu interior que são apresentadas as revindicações das clientelas afetadas pelas medidas a serem tomadas em nível de política pública.

 

Aliás, a controvérsia não é vista como algo nocivo ou contraprodutivo no processo de construção do desafio público. As ideias divergentes são apresentadas pelos atores, os pontos controvertidos da questão são avaliados cuidadosamente, relatórios técnicos são interpretados, todos os atores têm oportunidade de se expressar livremente. Quando bem conduzida, a controvérsia pode redundar na confluência de interesses, celebração de acordos ou ratificação de compromissos que serão honrados na condução das políticas públicas. O sucesso das negociações deve-se, em grande parte, aos procedimentos de concertação, isto é, meios de ação que antecipam ou resolvem situações de conflito na ação pública, através de soluções negociadas em que todas as partes envolvidas estão dispostas a fazer concessões em prol do interesse geral.

 

Além das esferas de negociação, os autores chamam a atenção para as estruturas normativas que disciplinam a conduta dos atores, criam instituições, alocam recursos orçamentários, estabelecem rotinas e procedimentos essenciais ao sucesso das políticas públicas. O grande problema consiste na falta de efetividade em razão do desconhecimento de seu conteúdo, da deliberada decisão de violar a lei e dos estratagemas utilizados para contornar as exigências legais em prol de interesses particulares. Mesmo assim, os autores consideram as normas jurídicas “essenciais à estabilização da ação coletiva”. 

 

Como os direitos sociais implicam custos financeiros extremamente altos, a ação pública se vê diante de imposições orçamentárias e do controle de despesas para atender satisfatoriamente as prestações estatais. Muitas vezes os recursos alocados para determinada política pública são insuficientes para atingir os resultados esperados, razão pela qual o desafio público pode persistir por alguns anos, no nível de proteção deficiente. Num cenário em que as despesas não param de crescer para financiar políticas públicas cada vez mais diversificadas e dispendiosas, o uso racional dos recursos implica escolhas políticas difíceis e, até mesmo, escolhas trágicas. Diante da complexidade desses elementos, a Sociologia da Ação Pública sublinha a importância do vocábulo instituição, para definir o conjunto de normas, procedimentos, sequências de ações padronizadas, coordenados entre si, para viabilizar a ação coletiva.

 

Enfim, a múltiplas interações entre os atores para a construção de políticas públicas, tem superado a noção de Administração Pública centralizada e rigidamente hierarquizada.  Daí a necessidade de pensar essa questão em termos de ação pública, abrangendo a multiplicidade de atores que exercem indiscutível influência nas decisões governamentais; os espaços sociais onde são travados os debates, bem como as ferramentas a serem utilizadas para fortalecer a regulação e a implementação das tarefas planejadas. Por tudo isso, os autores sustentam que a “ação pública é um sistema de ordem negociada”, que não admite o voluntarismo político, populismo, clientelismo ou demagogia. Tudo passa por uma nova reconfiguração do Estado contemporâneo, suas estruturas de poder, seus objetivos constitucionais, a interpretação dos desafios sociais, pela adoção de instrumentos de democracia participativa.

 

É nesse sentido que Pierre Lascoumes e Patrick Le Galès filiam-se ao construtivismo moderado****. Trata-se de uma corrente teórica que reconhece a necessidade de interpretação aberta dos desafios sociais, que protege os interesses concretos ou simbólicos dos atores sociais envolvidos, assimila as controvérsias e as técnicas de concertação, mas, ao mesmo tempo, respeita os espaços cognitivos e normativos preestabelecidos. Embora as interações ocupem um espaço privilegiado nessa formulação, nem tudo é negociável. As normas, regulamentos, rotinas e diretivas internacionais permanecerão como elementos essenciais à formatação das políticas públicas.

 

Tenho certeza de que a obra preenche importante lacuna na literatura brasileira, sobretudo para profissionais e estudantes comprometidos com a efetividade dos direitos sociais no Brasil, que depende, necessariamente, de políticas públicas consistentes e comprometidas com a justiça social. Embora tenhamos alguns exemplos significativos de articulação de forças da sociedade civil em busca de estratégias eficazes para a resolução de graves problemas sociais e políticos – a exemplo das audiências públicas, dos orçamentos participativos, conselhos consultivos e mobilizações populares –, ainda há muito para se fazer. Talvez um bom começo seja a quebra do paradigma do monopólio estatal das políticas públicas para incluir definitivamente a sociedade civil em todas as sequências das políticas públicas, desde a sua concepção, passando pela implementação, até a análise dos resultados. 

 



CANOTILHO, J.J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003, p. 477.

** Queiroz, Cristina. O Princípio da Não Reversibilidade dos Direitos Fundamentais Sociais. Coimbra: Coimbra Editora, 2006.

*** LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo. Teoria dos Direitos Fundamentais Sociais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

****O construtivismo é uma corrente teórica que foi concebida como reação ao positivismo. Enfatiza as interações entre sujeito e objeto, além de se preocupar com a dimensão ética do conhecimento. Trata-se de concepção adotada por várias disciplinas, a exemplo da filosofia, psicologia cognitiva, ciência política e sociologia. Nessa perspectiva, a produção de conhecimentos é o resultado de processos de construção coletiva. Para a sociologia, as realidades sociais são “construções históricas e cotidianas dos atores individuais e coletivos (Philippe Corcuff)”. Nessa perspectiva, a realidade social está em permanente construção graças às interações. Os fatos sociais são sempre submetidos permanentemente à interpretação dos atores individuais e coletivos. Existem obras de referência como a Construção Social da Realidade, publicada em 1966 por Peter Berger e Thomas Luckman; As Novas Sociologias, publicada em 1995 por Philippe Corcuff; Entre a Ciência e a Realidade. A Construção Social De Quê?, publicada por Ian Hacking em 1999. Outros sociólogos que também podem ser considerados construtivistas: Pierre Bourdieu, Erving Goffman, Friedrich Hayek etc.

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