segunda-feira, 15 de setembro de 2025

DIREITO À SAÚDE E ACESSO A MEDICAMENTOS NO SUS

George Sarmento



Quando se debate a efetividade dos direitos sociais, a questão da saúde se impõe como tema incontornável. O acesso gratuito a medicamentos aos usuários do SUS surge como uma das principais conquistas do constitucionalismo contemporâneo no Brasil, sobretudo quando se trata de pacientes com doenças crônicas ou terminais, sem condições de arcar os altos custos que os tratamentos exigem. Como o Estado não tem dado respostas adequadas, os magistrados são obrigados a enfrentar a intensa judicialização das demandas individuais e coletivas de grande complexidade. 

 

A partir da Constituição de 1988, o Brasil assumiu o compromisso de assegurar prestações positivas concretizadoras dos direitos sociais, cujas políticas públicas implicam enormes gastos setoriais. Tais prerrogativas são universais, pois abrangem todos os cidadãos indistintamente. Com relação à saúde, as necessidades aumentam de forma avassaladora enquanto os recursos financeiros continuam limitados, insuficientes para satisfazer as expectativas da população. 

 

Diante desse quadro de escassez, o grande desafio consiste na fixação de parâmetros objetivos para o acesso dos usuários a medicamentos gratuitos como forma de equalizar o direito fundamental à saúde e a proteção ao patrimônio público, evitando gastos excessivos e desnecessários que privam outros pacientes de tratamentos médico-hospitalares adequados.

 

Para enfrentar essa tormentosa questão, Davi Gouvêa publica seu livro de estreia intitulado “Direito à Saúde e Acesso a Medicamentos – em busca de parâmetros adequados para a tutela judicial”, onde desenvolve profunda reflexão sobre o tema, apresentando proposições consistentes e racionais. 

 

Davi Gouvêa inicia seu texto por um cuidadoso estudo de direito supraestatal em que analisa os principais tratados internacionais ratificados pelo Brasil, os quais impõem o dever de promover prestações positivas estatais no sentido de assegurar a todos serviços de saúde adequados. Demonstra com sólidos argumentos que a ratificação de tratados como o PIDESC, bem como a fiscalização contínua das políticas públicas pelas Nações Unidas e OEA são elementos determinantes para a efetivação do direito à saúde no Brasil.

 

Também analisa a estrutura do direito à saúde na Constituição de 1988 e na legislação ordinária. Enfrenta a complexa repartição de competências entre os entes federativos e enfatiza a crise de efetividade em razão de políticas públicas ineficientes – sobretudo o disfuncionamento do Sistema Único de Saúde em relação à política de dispensação de medicamentos.

 

Ao longo do texto, sustenta que a saúde é um direito fundamental de dupla face. De um lado, manifesta-se como direito subjetivo assegurando a todos a prerrogativa individual de exigir do Estado serviços médico-hospitalares de qualidade; do outro, exterioriza-se como o dever estatal de assumir prestações positivas no sentido de garantir a toda população o acesso ao SUS, incluindo a dispensação de medicamentos. 

 

O autor enfatiza que existe no Brasil um verdadeiro déficit de efetividade decorrente de políticas públicas ineficientes na área da saúde. A distribuição de medicamentos não é uma exceção. A consequência disso são as milhares de ações judiciais propostas no país. Sob a configuração constitucional de 1988, o Judiciário tem competência para determinar medidas concretizadoras de direitos sociais e políticas públicas. Esse protagonismo está expresso na construção jurisprudencial desenvolvida, sobretudo, na última década pelo STF e STJ. 

 

Da leitura da obra fica claro que a complexidade do tema perpassa a dimensão judicial e exige a participação de outros atores. Por isso, investiga iniciativas pioneiras como as audiências públicas realizadas pelo STF, os atos normativos do Conselho Nacional de Justiça, as ações civis públicas propostas pelo Ministério Público, assim como as ações individuais e coletivas ajuizadas pela Defensoria Pública a fim de assegurar aos usuários da assistência judiciária serviços como internações, intervenções cirúrgicas, procedimentos terapêuticos e, sobretudo, o fornecimento de medicamentos.

 

Após a análise do problema sob diversas perspectivas, lança luzes sobre os parâmetros objetivos para a distribuição de medicamentos a serem observados pelos entes federativos. Entre outras coisas, ele invoca a necessidade de cumprir os “Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas”, as recomendações da ANVISA, os medicamentos reconhecidos pelo SUS, bem como as contribuições das instituições estatais já mencionadas. 

 

Também apresenta importantes princípios hermenêuticos que devem reger a decisão judicial, construída a partir de um discurso judicial racional e comprometido com a efetividade constitucional, baseado ponderação de regras e princípios. Aliás, em sua formulação teórica, o protagonismo do magistrado na interpretação normativa é indispensável para a concretização do direito fundamental ao acesso a medicamentos.

 

Tive a grande honra de orientar Davi Gouvêa em sua trajetória no PPGD/UFAL. Desde o início mostrou-se um pesquisador dedicado, disciplinado e dotado de grande poder de argumentação. É detentor de excelente formação teórica e capacidade de raciocínio lógico. O resultado é um texto preciso, claro, objetivo, sem descuidar da indiscutível dimensão social que envolve o problema já que de sua solução depende a sobrevivência, a qualidade de vida e o bem-estar de milhares de pacientes, sobretudo os de baixa renda, espalhados pelo país. 

 

Lembro que a pesquisa foi acolhida com entusiasmo pelos membros da banca examinadora da dissertação de mestrado, que lhe atribuíram nota máxima com distinção. Foi o reconhecimento do valor científico e a grande contribuição para o constitucionalismo brasileiro. Agora transformada em livro, será leitura obrigatória para os operadores do direito e gestores públicos interessados em fortalecer os direitos da cidadania, a proteção do erário e a promoção da saúde pública.

 

Tem razão Arthur Schopenhauer quando afirma que “em geral, nove décimos da nossa felicidade baseiam-se exclusivamente na saúde. Com ela, tudo se transforma em fonte de prazer”. Na contemporaneidade, é preciso fortalecer os regimes democráticos para que se comprometam cada vez mais com a implementação de políticas de saúde consistentes e eficientes. O bem-estar social prometido pelos constituintes de 1988 passa obrigatoriamente pelo fortalecimento do SUS e a superação das graves distorções no modelo estatal de acesso a medicamentos e outras prestações médico-hospitalares. Tenho certeza de que as reflexões de Davi Gouvêa serão de grande utilidade para atingirmos esse fim estatal e avançarmos na construção de uma sociedade justa, igualitária e feliz.


Maceió, 2015.

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