A implementação do direito fundamental à educação de boa qualidade, sobretudo no ensino fundamental e médio, tem sido um dos maiores fracassos das políticas públicas brasileiras. Pesquisa encomendada pela consultoria britânica Economist Intelligence Unit(EIU), em 2012, coloca o Brasil em penúltimo lugar no ranking global de qualidade da educação. Segundo dados do IBGE, a taxa de analfabetismo de nordestinos acima de 15 anos é de 16,9% (em Alagoas, o percentual é de 21,8%). Tais índices colocam o ensino público brasileiro entre os piores do mundo.
Diante desse cenário desolador, o Governo brasileiro busca soluções para reverter a situação: programas sociais, políticas públicas, campanhas, ações afirmativas. Entre as medidas adotadas está o sistema de cotas para universidades federais, que, paulatinamente, foram ampliadas para outros setores - trabalho, cultura, comunicação e serviço público, beneficiando grupos vulneráveis como alunos oriundos de escolas estatais, índios, mulheres, pessoas com deficiência, afrodescendentes etc. O STF tem se manifestado pela constitucionalidade da política de cotas (RE 597285 e ADPF 186). Mas as controvérsias sobre o tema aumentam a cada dia, provocando acalorados debates jurídicos.
A política de cotas tem se expandido numa velocidade impressionante. E não é apenas no setor educacional; agora as fronteiras foram ampliadas para concursos públicos. São leis federais e estaduais que reservam vagas a grupos étnicos e segmentos sociais historicamente discriminados no Brasil. Recentemente foi editada a Lei n. 12.711, de 29 de agosto de 2012, que reservou 50% das vagas em universidades e escolas técnicas federais para negros, pardos e índios, metade das quais destinadas aos egressos de famílias com renda mensal inferior a 1,5 salários-mínimos mensais. Recentemente, a Lei 12.990, de 09 de junho de 2014, adotou o modelo para o acesso a cargos efetivos federais. Em todos os níveis, o processo de produção legislativa caminha nesse sentido.
A igualdade de oportunidades é um dos grandes pilares do Estado Constitucional de Direito. Os direitos sociais asseguram a todos a possibilidade de obter do Estado idênticos “pontos de partida” para que possam se desenvolver física, moral e profissionalmente de acordo com os talentos e projetos de vida. Assegurados esses pressupostos básicos ao desenvolvimento pessoal, cabe a cada cidadão ocupar os espaços almejados pelo esforço, dedicação e competência.
Os regimes democráticos também estão assentados sobre outro pilar importantíssimo: meritocracia. As vagas em renomadas instituições de ensino superior, bem como a ocupação de cargos públicos, são constitucionalmente destinadas aos candidatos mais bem preparados do ponto de vista científico e técnico. O concurso ainda é a forma mais eficaz para o recrutamento de estudantes e funcionários públicos. Os excessos na reserva de vagas, ao invés de corrigir injustiças históricas, poderá criar privilégios e causar prejuízos irreparáveis para milhares de brasileiros que optaram pelo caminho do estudo e da pesquisa. É por isso que esse tema é tão polêmico e frequentemente judicializado.
Na hermenêutica constitucional contemporânea, a igualdade perante a lei não pode ser interpretada de forma absoluta, ilimitada. O mesmo raciocínio pode ser aplicado à meritocracia. O tecido social é formado por grupos vulneráveis que precisam ser protegidos pelas leis brasileiras. Os benefícios que lhes são concedidos não podem ser vistos como privilégios, mas como vantagens legais que visam a atingir a igualdade de oportunidades. Gosto muito de uma metáfora recorrente na doutrina italiana: as normas de calibragem. Encher o pneu vazio assegura a estabilidade de todo o veículo, permitindo que trafegue em segurança. Não significa a exclusão daqueles que se encontravam calibrados. As leis que estabelecem cotas devem seguir a mesma lógica: permitir que vítimas da desigualdade, da discriminação, do preconceito, tenham reais chances de participar ativamente da sociedade mediante ações afirmativas racionais e eficientes.
Portanto, a questão não está na existência da política de cotas, mas na qualidade do modelo adotado. O legislador tem competência para editar leis que integrem os hipossuficientes ao mundo profissional, incluindo a reserva de vagas em concursos públicos. São normas corretivas de injustiças, verdadeiros compromissos do Estado de Bem-Estar Social. Contudo, algumas perguntas se impõem. Qual o percentual de vagas a serem reservadas? Como atingir adequadamente a clientela para a qual as leis e as políticas públicas foram concebidas? Como fundamentar e justificar a política de cotas no Brasil?
A missão de enfrentar esse instigante desafio foi aceita por Marcus Rômulo Maia de Melo, que produziu a obra intitulada “Cotas Sociorraciais – As imperfeições do programa brasileiro de ação afirmativa”, originariamente redigida como dissertação de mestrado em Direito da Universidade Federal de Alagoas. O autor debruçou-se sobre as principais controvérsias que envolvem o tema, apresentando respostas convincentes e proposições concretas, numa linguagem simples, objetiva e baseada em sólida fundamentação teórica. Trata-se de pesquisa de grande valor científico pela coerência das ideias, abordagem crítica e argumentação convincente.
A obra está articulada em torno de cinco capítulos que enfrentam aspectos controvertidos das ações afirmativas no sistema jurídico brasileiro. O autor desenvolve uma crítica ao modelo construído no país, incluindo a inconsistência dos parâmetros adotados pelo STF para a identificação racial, bem como os excessos na fixação do percentual das cotas nas universidades e serviços públicos. Analisa outros fatores que orientam as políticas de cotas socioraciais, apresentando proposições racionais e coerentes para enfrentar o problema.
A legitimidade das políticas de cotas é analisada sob o prisma das mais importantes teorias da justiça: utilitarismo, igualitarismo, comunitarismo, multiculturalismo e enfoque liberal. O autor disseca as correntes teóricas demonstrando seus aspectos positivos e negativos, não se esquivando de tomar posições corajosas em relação a elas. Embora partindo de pressupostos distintos, essas correntes do pensamento político apresentam um ponto de convergência: a legitimidade das políticas de cotas.
Marcus Rômulo sustenta que a teoria liberal-igualitária é a que melhor justifica a ação afirmativa relativa à instituição de cotas. Trata-se de doutrina que está fundamentada na noção de equidade, de justiça distributiva, cuja finalidade primordial é a inclusão social das minorias, sobretudo dos grupos vulneráveis. Manifesta-se como verdadeira compensação para segmentos historicamente prejudicados pelos sistemas políticos, e que agora terão as condições necessárias para ocupar espaços que seriam seus, caso não tivessem sido vítimas da discriminação.
Os opositores das políticas de cotas frequentemente evocam a violação ao princípio da igualdade jurídica, em razão do tratamento diferenciado que o Estado assegura a determinados setores da sociedade. Afirmam que a ocupação de espaços em universidades e serviço público deve se fundamentar exclusivamente na meritocracia. As vagas só deveriam ser preenchidas pelos mais aptos ao exercício das funções. No Brasil, tal perspectiva perdeu força nas últimas décadas, sobretudo com o advento da Constituição de 1988.
Entretanto, a forma como as cotas serão distribuídas ainda é o principal problema a ser enfrentado. A implantação de programas dessa natureza deve ter como a regra geral o recrutamento por concurso público em que prevaleça o mérito. O princípio da igualdade de oportunidades mobiliza milhares de jovens no Brasil a buscar o caminho do estudo e do aprimoramento profissional para ter acesso a um espaço profissional adequado, fruto de seus esforços pessoais, sobretudo as incontáveis horas de estudos para cobrir o conteúdo programático das disciplinas exigidas. A fixação do número de vagas para cotistas tem de ser feita com racionalidade para evitar que a exceção se transforme em regra.
É compreensível que Marcus Rômulo proponha a ponderação como elemento hermenêutico norteador tanto da fixação de vagas em universidades como no recrutamento de servidores públicos. A ponderação surge como uma bússola que deve guiar tanto os legisladores como os aplicadores do direito. Graças a autores como Ronald Dworkin e Robert Alexy, que influenciaram profundamente renomados publicistas brasileiros e ajudaram a construção de sólida jurisprudência, que auxilia a solução de casos complexos, quase sempre envolvendo questões de grande interesse social.
Marcus Rômulo demonstra que a ponderação é o melhor caminho para proteger a igualdade fática – princípio reitor da política de cotas – sem anular o conteúdo essencial da igualdade jurídica (que tem na meritocracia sua principal justificativa). Amparado pelos ensinamentos de Rawls, defende a igualdade democrática: a norma jurídica deve estabelecer o regime de cotas satisfaça as expectativas dos grupos desfavorecidos, criando-lhes reais condições de acesso ao ensino de boa qualidade e ao emprego digno. Ao invés de privilégios, equidade; ao invés de violação à igualdade perante a lei, equilíbrio de pontos de partida. É evidente que, como medida excepcional e temporária, as vagas para os cotistas não podem ser superiores às oferecidas para os demais candidatos. Atitude diversa subverteria o princípio constitucional do concurso de provas e títulos, prejudicando os mais aptos para as funções públicas.
A escolha da clientela me parece outra questão extremamente relevante. Diante dos vários modelos propostos, Marcus Rômulo associa-se à cota social, que toma como parâmetro a renda familiar para priorizar os candidatos oriundos dos extratos mais pobres da sociedade, em sua maioria alunos das escolas públicas. Em sua opinião esse critério deveria ser regra em todos os certames. Porém admite como legítimas as chamadas cotas raciais, cujos candidatos seriam admitidos pelo critério de autodeclaração, com a dispensa de perícia étnica. Ambos os modelos se justificam pela superação das desigualdades de oportunidades tanto sociais como raciais estimuladas por um modelo político econômico marcado pela discriminação, clientelismo e apadrinhamento.
O texto produzido por Marcus Rômulo é corajoso e inovador. Preenche uma lacuna na literatura jurídica e lança luzes sobre as formas de inclusão social através das ações afirmativas. É evidente que o sistema de cotas, por si só, não é capaz de reduzir o déficit da qualidade do ensino público brasileiro. A melhoria das escolas estatais depende de grandes investimentos em infraestrutura e formação do corpo docente, medidas que parecem não ser prioridades de governo. Mas não deixa de ser um passo no tortuoso caminho para a justiça social, o fortalecimento da cidadania e reconhecimento das injustiças ancestrais.
Os resultados das políticas de cotas executadas no Brasil ainda estão sendo analisados por sociólogos e educadores. Desde a iniciativa pioneira da UERJ, em 2002, a experiência tem se mostrado positiva, inclusive em relação ao desempenho dos alunos-cotistas das universidades. Ao contrário do que muitos pensavam, as instituições de ensino superior mantiveram o mesmo nível de excelência após a admissão dos alunos-cotistas. Essa realidade descontrói a tese de setores conservadores que sustentavam tratar-se da institucionalização do racismo e da violação da igualdade perante a lei. A vitória do igualitarismo sobre o preconceito é um grande passo para o amadurecimento da democracia brasileira, cada vez mais inspirada em princípios como a dignidade humana, a solidariedade e a igualdade.
Tive a honra de ser orientador do autor e acompanhar de perto a evolução do projeto de pesquisa, agora transformado em livro de estreia. O texto é produto de profundas reflexões e reflete seu amadurecimento intelectual e teórico. Tenho certeza de que as ideias expostas contribuirão para o aprimoramento das políticas de cotas sociorraciais, sobretudo na difícil tarefa de conciliar a oferta de vagas aos beneficiários da ação afirmativa com a necessidade de preservar a natureza dos vestibulares e concursos públicos, que buscam selecionar os candidatos intelectualmente mais preparados pela adoção de critérios isonômicos e meritocráticos.
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