Um dos principais traços das democracias contemporâneas é o protagonismo do Poder Judiciário na concretização dos direitos fundamentais. O antropólogo francês, Antoine Garapon, refere-se ao Poder Judiciário como o guardador de promessas, justamente para expressar as expectativas que a população deposita nos magistrados, com a esperança de ver cumpridas as promessas emancipatórias materializadas nas normas constitucionais. Os juízes são reconhecidos não apenas pela capacidade de interpretar e aplicar corretamente o direito, mas também pelo poder de mediar conflitos sociais, controlar políticas públicas, prevenir e reprimir a improbidade administrativa, tutelar os direitos da cidadania.
Ao mesmo tempo em que a magistratura representa um dos pilares do Estado Democrático de Direito, cresce a fiscalização interna e externa da conduta dos juízes. O avanço das novas tecnologias de comunicação e a expansão das redes sociais têm dado grande visibilidade à atuação do Judiciário, em muitos casos atraindo o escrutínio da opinião pública. Mais do que nunca a Ética na Magistratura tem se tornado um vastíssimo campo de pesquisa, na medida em que busca estabelecer parâmetros morais que orientem a conduta dos juízes, não apenas na atuação institucional, mas também em sua vida privada.
Se antes o que importava era a capacidade técnica de solucionar conflitos com celeridade, imparcialidade e eficiência, hoje o juiz é também avaliado por sua integridade, confiabilidade e decoro. O ethos contemporâneo exige dos juízes uma imagem irretocável, capaz de inspirar confiança e admiração da sociedade. As normas éticas deixaram de ser tratadas exclusivamente na dimensão moral, para tornarem-se cogentes, obrigatórias, impositivas, com fortes consequências tanto na esfera administrativa como na judicial. A verdade é que, onde quer que esteja, o magistrado leva consigo a responsabilidade de preservar a instituição a que pertence. Isto significa que jamais pode negligenciar ou descuidar-se dos deveres deontológicos a que está obrigado.
Foi pensando em aprofundar essas questões que o professor Alberto Jorge Correia de Barros Lima decidiu organizar o livro coletivo intitulado Ética e Magistratura na Contemporaneidade. Aproveitou sua vasta experiência como juiz de direito e dirigente da ESMAL para provocar reflexões sobre temas controvertidos, essenciais ao exercício da função judicante. Ele mesmo abre a obra destacando o papel das corregedorias como órgãos de controle da carreira judicial, cujos membros também estão sujeitos a rigorosas prescrições éticas. Com o objetivo de racionalizar a atuação do órgão, propõe um plano de ação baseado em distintos níveis de exigências, reservando as punições administrativas para os casos mais graves e, mesmo assim, quando esgotados todos os recursos capazes de prevenir ou corrigir a conduta desviante.
A partir daí os autores que integram a coletânea apresentam aspectos específicos que são indissociáveis do exercício da magistratura. Desprovidos de esprit de corps, os autores enfrentam os grandes desafios impostos aos juízes, sem se esquivar de temas sensíveis que envolvem a ética no exercício de suas funções. Embora os capítulos sejam independentes, existem pontos de convergência tão fortes que garantem a unidade da obra.
É um livro corajoso, sincero, que pode ser lido como um guia para a atuação ética. Encontrar parâmetros que orientem a postura moral do magistrado nas mais diversas circunstâncias da vida é o pano de fundo da obra. Princípios como a imparcialidade, humildade, transparência, publicidade e dever de fundamentar as decisões judiciais são esmiuçados e analisados cuidadosamente como metavalores essenciais à jurisdição. Destaque especial é dado à atuação do juiz como agente de transformação social e de efetivação dos direitos humanos, seguramente os grandes eixos de legitimidade institucional.
Mais do que nunca o ofício de julgar tem atraído o interesse da opinião pública. O discurso jurídico produzido pelo Judiciário é acompanhado de perto pela sociedade civil e vastamente difundido pelos meios de comunicação. Muitas vezes os juízes são convidados a prestar esclarecimentos à população sobre casos sob sua responsabilidade. Tal atitude faz parte do dever de informar, que pode ser cumprido de diversas formas. Entretanto a presença de magistrados nas redes sociais e na mídia sujeitam-se a determinados padrões éticos, cuja observância tem a finalidade de evitar exposição excessiva, autopromoção, posicionamentos ideológicos ou antecipação de julgamentos. A prudência, o equilíbrio e a moderação são atributos que devem reger o comportamento dos magistrados em ambientes virtuais, mesmo quando estejam atuando como professores ou influenciadores sociais.
No imaginário popular a imagem do juiz está vinculada à representação simbólica de independência funcional. Em importante entrevista, concedida em 2008, a então ministra do STF, Ellen Gracie, afirmou que a primeira virtude de um juiz é a independência. Não como um conceito abstrato, transcendental, simbólico. Mas como um dado objetivo, perceptível na realidade social. Ela se referia a independência do poder econômico, do poder político, do poder da imprensa. Aliás, a ONU reconhece como garantia processual o direito de todo cidadão a sumeter-se ajulgamento justo, livre de influências estranhas, pressões, ameaças ou interferências.
A obra também aborda, ainda de forma transversal, o dever de lealdade do magistrado à correta interpretação do direito com a produção de um discurso argumentativo racional com pretensão de correção. Os rápidos avanços do constitucionalismo, a complexidade das interações sociais, a judicialização da política, a produção legislativa de normas dotadas de grande abstração, muitas vezes trazendo conceitos indeterminados, ambíguos, tudo isto exige consistência teórica no enfrentamento dos grandes desafios, o que implica a formação contínua dos juízes mediante a oferta de cursos pelas escolas de magistratura. As capacitações devem incluir em seus conteúdos programáticos a abordagem deontológica expressa no Código de Ética Nacional da Magistratura, em resoluções e jurisprudência do CNJ.
Socorro-me em Fábio Konder Comparato para quem “toda a vida ética está fundada em valores, que supõem a liberdade de escolha e criam deveres de conduta. Não existe ética neutra, cega aos valores”. Os magistrados, como todos os agentes públicos, estão vinculados a um conjunto de preceitos axiológicos que devem ser incorporados à sua personalidade. Esse plexo de princípios morais dá substância ao agir ético. O arquétipo do juiz moderno fundamenta-se na integridade pessoal, virtude que sintetiza todos os valores e atrai a confiança dos cidadãos na judicatura. O juiz íntegro traz em si a marca da honestidade, cortesia, honradez, decoro, independência, justiça, preparo intelectual e tantos outros atributos morais fortemente apreciados pela coletividade.
O leitor não encontrará neste livro fórmulas prontas e acabadas do proceder ético, mas seguramente terá em suas mãos importantes ensinamentos que o ajudarão a buscar a virtude, a dignidade, a retidão no exercício da atividade jurisdicional. A ética é uma grande ferramenta para afastar o voluntarismo judicial, o abuso de poder, o autoritarismo e a soberba. Seguir os princípios aqui propostos é um caminho seguro, sem percalços, para a prestação jurisdicional de excelência, pautada em valores partilhados pela sociedade brasileira.
Parabenizo todos os autores pela originalidade com que abordaram temas tão delicados e espinhosos, muitas vezes incômodos. Tenho certeza de que a obra inspirará as presentes e futuras gerações de magistrados, que nela encontrarão uma fonte inesgotável de conhecimentos para uma vida profissional virtuosa e plena. Vocês plantaram uma semente que germinará em solo fértil, cujos frutos são avanços civilizatórios que alimentarão uma sociedade mais justa, solidária, igualitária em que impere a justiça social.
George Sarmento
Doutor em Direito Público
Professor da FDA/UFAL
O Guardador de Promessas – Justiça e Democracia. Lisboa: Instituto Piaget, 1996.
Veja, edição de 31 de agosto de 2011.
Ética – Direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia de Letras, 2006, p. 505.
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