George Sarmento
Para se ter ideia do desafio, basta lembrar que Pontes de Miranda é autor de 53 títulos espraiados em diversos domínios das ciências sociais – direito, política, filosofia, antropologia, sociologia etc. –, sem contar os inúmeros artigos, entrevistas, conferências, pareceres jurídicos, páginas literárias e poéticas. Apenas o clássico Tratado de Direito Privado é composto por 60 tomos. Considere-se ainda obras de grande fôlego como o Sistema de Ciência Positiva do Direito, os Comentários ao Código de Processo Civil e o Tratado das ações.
E as dificuldades não param por aí. Grande parte do acervo é de difícil acesso, disperso em bibliotecas, museus, alfarrábios ou em mãos de ciumentos colecionadores, o que exige um grande esforço de garimpagem. São milhares de páginas que precisam ser lidas, classificadas, selecionadas, sistematizadas. Apenas um pesquisador meticuloso, audacioso, disciplinado e com capacidade de interpretar complexas formulações teóricas estaria à altura de tal missão.
Marcos Vasconcelos Filho impôs-se esse desafio e saiu-se muito bem. O resultado é primoroso como era de se esperar. O autor notabiliza-se pelo refinamento da escrita, pela qualidade das pesquisas, por seu contagiante amor pelas coisas de Alagoas. Doutor em Sociologia (UFS), é também historiador, ensaísta, biógrafo, articulista, crítico literário, conferencista e professor. Tem enorme talento para traduzir conceitos herméticos em linguagem objetiva, precisa, de fácil compreensão, sem jamais deixar-se levar pela superficialidade.
O instigante título, Ao piar das corujas, já atiça a curiosidade do leitor, não só pela evocação da sabedoria, mas também pela dimensão totêmica tão cara a Pontes de Miranda. Desde a Antiguidade as corujas são o arquétipo do conhecimento, da perspicácia, da erudição. A capacidade de enxergar no escuro, de viver em permanente estado de alerta, atentas a tudo que se passa ao redor, é a mais perfeita representação do jurista alagoano em toda sua grandeza intelectual, iluminando as mentes com suas sólidas concepções científicas e filosóficas.
É evidente que Marcos Vasconcelos não pretendeu deter-se em todas as particularidades da vasta produção científica de Pontes de Miranda, o que seria tarefa impossível dadas as dimensões do ensaio. Mas fica clara a intenção de desenvolver rigorosa análise crítica das ideias nucleares que constituem o universo ponteano. Ouso mesmo dizer que se trata de uma introdução geral, obrigatória para quem pretenda conhecer os aspectos mais relevantes do doutrinador.
O ilustre alagoano encarna o espírito de sua época. E é assim que deve ser lido. Salta aos olhos a preocupação de Marcos Vasconcelos Filho em identificar os autores que exerceram influência sobre a sua formação acadêmica e de que forma suas teorias foram por ele interpretadas. É o caso Kant, Comte, Husserl, Bergson, Spencer e Durkheim, entre tantos outros.
Pontes de Miranda foi fortemente influenciado pelo positivismo de Auguste Comte. Ainda no século XIX, o filósofo francês sustentava que a sociedade era vítima da anarquia moral e política que corroía suas bases e ameaçava a própria sobrevivência. A única forma de escapar dessa encruzilhada era a construção de um sistema sócio-político baseado no progresso, na prosperidade e no avanço científico. Pontes de Miranda também era partidário da reorganização social através da ciência – considerada a única forma de libertar a humanidade do atraso, do imobilismo e da corrupção. Em suas palavras, “a ciência tirada dos fatos, a ciência positiva implica a mais profunda revolução, a completa reorganização das sociedades contemporâneas, fundadas todas, em graus diferentes, no empirismo e na escolástica*”.
Pontes de Miranda manteve-se fiel à concepção de que a ciência conduziria a humanidade à evolução civilizatória. O cientificismo de bases naturalistas sempre esteve presente em sua obra, embora a visão positivista não fosse imune a exageros. Exemplo disso é a crença de que, no futuro não muito longínquo, as leis deixariam de ser elaboradas pelos parlamentos eleitos pelo povo. O critério de produção legislativa seria totalmente científico, axiologicamente neutro, desprovido de ideologias. A humanidade, em suas palavras, “fabricará a lei, como faz os soros, – nos laboratórios: sem precisar de aprovação oficial, que constitui o supérfluo despótico**”.
Marcos Vasconcelos Filho retrata Pontes de Miranda, filósofo do direito, debruçado sobre intrincadas questões epistemológicas e metodológicas que procurou solucionar em seu Problema fundamental do conhecimento, livro denso e profundo. Prossegue destacando o sociólogo que propunha um modelo de positivismo biológico capaz de guiar a marcha evolutiva rumo à civilidade a partir da crescente diminuição do despotismo inato à espécie humana visando a alcançar o grau máximo de adaptação social.
Pontes de Miranda transitou com grande desenvoltura tanto no direito público como no direito privado. Sua doutrina se estende por quase todos ramos das ciências jurídicas. Marcos Vasconcelos Filho demonstra toda a perspicácia de pesquisador ao escolher como objeto de análise a teoria do fato jurídico que, seguramente, é a parte mais conhecida do autor – gozando de grande prestígio na doutrina e jurisprudência nacionais –, além de ser o fio condutor de livros jurídicos que escreveu. Apresenta o jurista empenhado em construir um sistema de ciência positiva do direito, aproximando-se do dogmatismo jurídico sem se afastar do sociologismo positivo.
Com igual habilidade investigativa, Marcos Vasconcelos Filho volta-se para as ideias políticas de Pontes de Miranda e enfatiza sua aversão ao autoritarismo estatal. A postura não sancionista destoa de grandes juspositivistas da época, especialmente Hans Kelsen, para quem a sanção é um elemento indissociável da norma jurídica. Para Pontes o direito não é um instrumento punitivista, mas um processo de adaptação social em que as leis devem, de maneira geral, ser obedecidas espontaneamente pelos destinatários, embora o Estado tenha legitimidade para penalizar as condutas desviantes, respeitado o devido processo legal.
Marcos Vasconcelos Filho destaca que Pontes de Miranda propunha uma política científica voltada para o bem comum. Com base em critérios exclusivamente científicos, refutou o anarquismo, o comunismo e o capitalismo por entender que nenhum dos modelos era satisfatório para atingir esse fim. Como alternativa, defendeu o chamado Estado socialista de fins precisos, que tinha como pilares não apenas os avanços científicos-tecnológicos, mas também a equidade assegurada pela justiça social e pela constitucionalização dos “novos direitos” a exemplo da subsistência, trabalho, educação e assistência (direitos sociais, na linguagem contemporânea).
Fica claro que esse modelo de constitucionalismo é produto das circunstâncias de uma época marcada por profundas mudanças de paradigmas. Um período que exigia respostas rápidas para a crise política e institucional que assolava o mundo ocidental colocando em risco os próprios fundamentos do Estado de Direito. Pontes de Miranda participou ativamente desse debate, propondo um sistema político baseado na supraestalidade dos direitos fundamentais, no controle de constitucionalidade, no primado da liberdade, igualdade e democracia.
O ensaio que o leitor tem em mãos não é apenas a tentativa de resgate de um autor que, mesmo diante da indiscutível importância de sua contribuição científica, é vítima do distanciamento ou até mesmo do ostracismo imposto pelas universidades brasileiras. Trata-se sobretudo de uma pesquisa de fôlego, dotada de profunda capacidade de reflexão, leitura agradável e originalidade, que seguramente vai despertar o interesse das novas gerações por aquele que considero o maior jurista que o Brasil já produziu em todos os tempos: Pontes de Miranda!
* MIRANDA, Pontes de. Preliminares para a revisão constitucional. In À Margem da História da República. Rio de janeiro: Anuário do Brasil, 1924, p.190-200.
** MIRANDA, Pontes de. Introdução à Sociologia Geral. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 176.
Nenhum comentário:
Postar um comentário