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domingo, 14 de fevereiro de 2010

O POUSO NA CHAMPS-ELYSÉES


Os brasileiros que passeiam pela elegante Avenida Champs-Elysées, em Paris, deveriam olhar com muito orgulho o prédio 114. Ali morou Santos Dumont. Mais ainda: foi também o lugar onde posou o Dirigível n. 9, sob os olhares perplexos de milhares de franceses. Além de morar no local mais nobre da cidade, o cara era ousado. Em 1903, nada de chegar em casa de nos modernos automóveis que encantavam a burguesia. Autenticidade era a palavra de ordem. Depois de sobrevoar a Cidade Luz num frágil balão, tinha mesmo que pousar na porta de casa para comemorar o feito com muito champagne.
Santos Dumont foi morar na França aos 20 anos de idade, onde seguiu estudos superiores. Sua primeira grande invenção foi o Balão Brasil, assim batizado em homenagem à terra natal. Depois vieram outros, até a construção do 14 BIS, que o celebrizou como o pai da aviação mundial.
Enquanto espero o avião que me conduzirá ao Brasil depois dessa breve temporada parisiense, penso na grande contribuição que Santos Dumont deu para a humanidade: um meio de transporte que encurta distâncias e aproxima pessoas de todos os continentes.
Visitei algumas vezes sua casa em Petrópolis. Um sobradinho acolhedor e cheio de criatividade. Uma mostra da genialidade de seu proprietário. Todos ficam impressionados com o formato da escada, o sistema de aquecimento d’água, entre outras invenções inusitadas. Pouca gente sabe, mas ele também foi o inventor do relógio de pulso, ornamento tão comum na contemporaneidade. Santos Dumont suicida-se em 1932, desgostoso por ver que os aviões que ele ajudou a construir tinham-se tornado máquinas de guerra. O golpe foi muito forte para a sua frágil saúde física e mental.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

MINHA VISITA A AUGUSTE COMTE

GEORGE SARMENTO
Quando entrei na Faculdade de Direito, no final dos anos 70, tive as primeiras noções da dicotomia direito natural x direito positivo. O primeiro marcado pela inspiração divina ou pela natureza humana. O outro, fruto do pensamento científico, racional, indutivo. Representava a vitória da ciência sobre a superstição, o empirismo e o apriorismo que dominaram todo o pensamento medieval.

Os professores esforçavam-se ao máximo para demonstrar o caráter científico do Direito. Pontes de Miranda, o maior jurista brasileiro de todos os tempos, defendia vivamente a positividade e afirmava que a incidência da norma jurídica sobre o suporte fático era a origem de toda a juridicidade, que se desenvolvia num universo virtual: o mundo do direito. Exilado nos Estados Unidos, Hans Kelsen também concebia um sistema de ciência pura do direito, uma tentativa de separá-lo das demais ciências sociais.

O que os mestres não explicavam é que o normativismo nada mais era que o positivismo aplicado ao Direito. Mesmo que não queiram admitir, o positivismo de Auguste Comte (1798-1857) está na origem das chamadas ciências jurídicas. Ele foi o primeiro filósofo a defender com todas as letras que o século XIX decretara o fim do obscurantismo científico. Era chegado o momento de a sociologia atingir a sua dimensão positiva, da mesma forma que a física e as matemáticas.

Auguste Comte... Quem foi esse homem paradigmático que influenciou os proclamadores da República Brasileira? Que foi fonte de inspiração para os grandes juristas nacionais do começo do século 20? Mesmo tendo lido os seus textos mais conhecidos, resolvi visitar seu apartamento parisiense a fim de conhecer melhor o seu universo intelectual.

Pego o metrô e desço na estação Odeon, em pleno Quartier Latin, a fim de visitar o imóvel onde o filósofo viveu os últimos 16 anos de sua vida. Fica num prédio construído no século 18 e o apartamento jamais foi ocupado por outros moradores desde a morte de Comte. Seus discípulos não permitiriam tal afronta ao monstro sagrado.

A primeira surpresa que tive, foi saber que o imóvel foi totalmente restaurado em 1960, a expensas de Paulo Carneiro (1901-1982), um químico brasileiro, que foi também diplomata na UNESCO. Ele teve a idéia de criar um museu e preservar todos os objetos pessoais do filósofo, inclusive a biblioteca, a mesa de trabalho e todo o mobiliário original.

Localizado na Rue Monsieur Le Prince, 10, o apartamento também abriga a Associação Maison d’Auguste Comte, criada em 1954. Além da visita ao museu, ela possui um vastíssimo acervo cultural e bibliográfico. São obras raras escritas por seus discípulos, teses de doutorado, biografias e toda a correspondência que ele mantinha com os intelectuais da época. Também fica claro que seu sistema filosófico exerceu forte influência sobre as gerações que se seguiram, a exemplo de Émile Durkheim, Stuart Mill, Littreé e, até mesmo sobre Kropotkine – o grande anarquista russo.

Ao tocar a campainha, a porta abriu automaticamente. Notei que o funcionário ficou surpreso. Era um jovem doutorando de filosofia, às vésperas de defender sua tese na Sorbonne. Nada a ver com o positivismo. Talvez estivesse no emprego apenas para pagar seus estudos. Disse-me que há mais de um mês o espaço não era visitado por ninguém, mesmo sendo o único museu de Paris consagrado a um filósofo francês. Nem mesmo Descartes recebeu tal honraria, comentou. O fato é que, durante 2008, apenas 685 pessoas passaram por ali, contando os grupos e eventos públicos. Mas, nos últimos anos, o número baixou significativamente.

Além disso, poucos livros foram publicados sobre a vida e obra de Comte. Seu pensamento não resistiu à pós-modernidade. Nesses tempos de neoconstitucionalismo, poucos tem coragem de se dizerem positivistas por medo de serem tachados de conservadores ou retrógrados. A cada dia a retórica jurídica ganha mais espaço na vida judiciária, e o discurso científico-positivista tem sido substituído pela hermenêutica concretizadora dos direitos fundamentais no Brasil.

Nascido em Montpellier, Comte desenvolveu sua formação acadêmica na renomada Escola Politécnica de Paris, onde adquiriu sólida formação científica. A partir de 1817 começa a construir os postulados de sua filosofia positiva. Cria o vocábulo sociologia e publica em 1821 a obra Trabalhos científicos necessários para reorganizar a sociedade”. Casa-se com Caroline Massin, com quem tem uma relação tumultuada e infeliz. Em 1826 é vítima de uma crise de loucura e é internado na Clínica do Dr. Esquirol. Tenta o suicídio, mas consegue se reequilibrar.

Nos anos seguintes retoma os seus cursos de filosofia, atraindo grande número de discípulos. Em 1842, publica seu Curso de Filosofia Positiva, obra que tem repercussão mundial, colocando-o no epicentro dos grandes pensadores do Século 19.

Sua vida sofre grande mudança quando conhece a jovem Clotilde de Vaux em 1845. Já separado de sua primeira esposa, Comte se vê perdidamente apaixonado pela jovem discípula. A perplexidade desse sentimento na maturidade deve-se ao fato de o filósofo não acreditar que a afetividade seja apreendida pela ciência. Procura na religiosidade as respostas para suas inquietações. Embora o romance só tenha durado um ano – sua musa morre de tuberculose –, Conte se mantém fiel a esse amor até o fim de sua vida.

Cria a Religião da Humanidade, engaja-se em movimentos sociais de defesa do proletariado. Institui a Sociedade Positivista para a educação dos povos. O positivismo ganha uma dimensão política na medida em que se propõe a restruturar a sociedade, resgatando-a do caos em que se encontrava mergulhada. A ciência e o progresso seriam os grandes motores de transformação. Sua militância política incomoda Napoleão III, que o destitui de sua cátedra da Escola Politécnica em 1854.

A visita ao apartamento de Comte revela algumas características de sua personalidade. Ele só escrevia diante do espelho, pois tinha a necessidade de ter contato permanente com sua própria imagem. Ele também criou uma biblioteca básica do proletariado, composta porexatamente150 livros, considerados básicos para a instrução pública. A cadeira utilizada por Clotilde encontra-se no mesmo lugar de costume, sem qualquer tipo de restauração – já que seus seguidores acreditam na dimensão divina de seu amor pela jovem francesa.

A obra de Comte teve enorme repercussão no Brasil. No Rio de Janeiro foi construída uma Igreja Positivista, onde uns poucos fiéis ainda cumprem a liturgia deixada por seu mentor. O filósofo morreu em seu leito, cercado de discípulos, deixando um grande legado para a humanidade. Os seus restos mortais repousam no Cemitério Père Lachaise. Ao deixar o apartamento, não pude deixar de notar a bandeira brasileira, que ostenta uma das mensagens do mestre de Montpellier: ordem e progresso.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

CARIDADE NÃO É OBRIGAÇÃO

GEORGE SARMENTO

Fiquei surpreso quando minha professora de direito do trabalho anunciou sua aposentadoria. Era uma mulher ainda jovem e ativa, que gozava de excelente saúde. Perguntei-lhe a razão da repentina decisão. Ela respondeu:

- Já dei minha contribuição ao magistério. Agora pretendo dedicar-me ao voluntariado. Estou à procura de uma instituição que faça trabalho filantrópico para que eu possa ajudar. A caridade... Acho que esse é o sentido da vida.

Alguns meses depois, reencontrei-a na rua e perguntei-lhe:

- Como vai a ajuda aos necessitados? A senhora está militando em que instituição?

- Meu amigo, ela respondeu, a coisa mais difícil do mundo é ajudar os pobres. Ofereci meus préstimos a várias instituições e todas negaram. Fui recebida com muita desconfiança... Pensavam que eu queria fazer política ou tirar algum benefício pessoal. Desisti. Agora pratico yoga todos os dias e busco ajudar meu próprio “eu”.

Lembrei-me desse episódio ao chegar ao Ministério Público, onde teria audiência com alguns idosos ameaçados de despejo do prédio público em que desenvolvem atividades culturais há mais de 10 anos. São integrantes de associações informais que não recebem um centavo do poder público, mas oferecem atividades como dança de salão, capoeira, bumba-meu-boi, academia de ginástica etc. São 650 pessoas carentes que se beneficiam dos serviços ofertados gratuitamente.

Os dirigentes foram pegos de surpresa pela cessão do espaço a um instituto que ambiciona congregar todos os idosos da cidade em seus domínios e, assim, fortalecer determinadas candidaturas ao parlamento alagoano. Coincidentemente, a beneficiária é uma ONG que já recebeu generosas contribuições dos cofres públicos sem participar de qualquer processo licitatório. As vítimas só tomaram conhecimento do despejo pelo Diário Oficial e estavam preocupadíssimas com o encerramento das atividades.

Foi aí que percebi que a professora tinha razão. Está em curso um verdadeiro processo de apropriação dos hiposuficientes no Brasil. Velhinhos, crianças, adolescentes, portadores de deficiência, desempregados, todos são alvos de supostos defensores de sua dignidade. No fundo querem fazer um “belo” trabalho social regado a recursos públicos. Descobriram que a caridade pode se transformar num negócio muito lucrativo. Por isso não há espaço para o homem de bem que queira ajudar, movido exclusivamente por sentimentos altruístas.

A caridade é defendida por todas as religiões que conheço. Muitos pensam que é um passaporte para o céu e um salvo-conduto para generosas benesses terrenas. O “político caridoso” usa os meios de comunicação para divulgar seus atos de benemerência com o objetivo angariar votos. Muitos votos. Para mim, a caridade tem de ser espontânea, desinteressada, discreta. Deve ser praticada sem alarde. É a maior expressão de compaixão e amor ao próximo. Alegra muito mais a quem dá do que a quem a recebe. Sua beleza está em saber que um pequeno gesto pode mudar a vida de seu semelhante.

O problema é quando a caridade se torna uma obrigação. O prazer de ajudar ao próximo transforma-se em dívida que não admite atraso. Passa a ser compulsória e improrrogável. Em algumas ocasiões resolvi ajudar instituições religiosas ou caritativas que desenvolvem projetos sociais interessantes. Pouco a pouco as exigências financeiras aumentaram e os telefonemas de cobrança passaram a infernizar minha vida. Isso sem falar nas correspondências contendo mensagens subliminares para pressionar o incauto a “abrir o bolso”. Para atingir os objetivos, não poupam nada nem ninguém: imagens de santos, terços, água benta engarrafada e por aí vai...

Certo dia bateu à minha porta um homem vestindo roupas rotas e um chapéu surrado. Sabia o meu nome e se dizia um grande admirador de minha atuação como promotor de justiça na comarca de Batalha ao longo dos anos 80. Disse-me que havia entrado no MST e que agora era um feliz proprietário de gleba num assentamento em Maragogi, região litorânea de Alagoas. Foi então que me entregou uma pequena cesta com produtos de sua roça: inhame, macaxeira, batata doce e algumas bananas. Disse-me que era um presente de admirador. Fiquei muito sensibilizado com o gesto de ofereci-lhe uma quantia em dinheiro como prova de meu agradecimento. Abraçamo-nos fraternalmente e nos despedimos.

O mesmo gesto de “amizade” repetiu-se nas semanas seguintes, sempre com mesmo resultado, um dinheirinho para pagar a passagem e comer alguma coisa. Certa feita, dormi até mais tarde e não pude recebê-lo pessoalmente. Mas pedi que lhe entregassem uma quantia um pouco menor que a habitual. Ele recebeu o dinheiro mas se recusou a deixar o “presente”. Dias depois, tentava estacionar o meu carro na Aliança Francesa, quando vi que ele estava à espreita. Quem teria dado o meu endereço de trabalho? Fui logo dizendo que não queria a mercadoria. Ele retrucou com insolência que perdera o seu tempo me esperando e agora seria obrigado a voltar para casa de mãos abanando. Toda a doçura inicial se desvanecera. Agora era um homem violento, desapontado por não receber o dinheiro esperado. Vi que minha bondade inicial, espontânea, caritativa tinha se transformado num compromisso sucessivo e implacável. O prazer que sentia em ajudá-lo transformou-se num desagradável incômodo. Resultado: cortei o mal pela raiz.

Esse episódio me fez lembrar um texto de Jean-Jacques Rousseau no livro Devaneios de um Caminhante Solitário. O filósofo defende a tese de que as boas ações são a expressão da liberdade do benfeitor. Devem ser sempre motivo de prazer, de alegria. Quando a caridade deixa de ser espontânea para sucumbir às pressões externas, torna-se uma dívida e perde toda a sua essência. Esvazia-se em si mesma.

Acredito na solidariedade. Acho que cada cidadão tem a responsabilidade social de ajudar o seu semelhante. Penso que os brasileiros deveriam dedicar-se mais ao voluntariado e à ação humanitária. Essa é uma inegotável fonte de felicidade, que produz endorfina em abundância. Além disso, o engajamento nos movimentos sociais aprimora a democracia e fortalece o Estado de Direito. Entretanto, é preciso ter cuidado com os exploradores da boa-fé alheia, pessoas inescrupulosas que se aproveitam de sentimentos como o altruísmo para desenvolver atividades lucrativas nada compatíveis com os ideais religiosos ou éticos.

É preciso compreender que caridade não é obrigação, mas opção. Caracteriza-se pela ausência de coerção externa. A decisão tem de ser espontânea, fruto da vontade consciente de ajudar o próximo com seu trabalho ou com seus bens, sem nada pedir em troca. Por isso é preciso ter cuidado para escapar das armadilhas baseadas na chantagem emocional, no medo do inferno, na insistência do pedido ou nos boletos de cobrança que todos os dias chegam às nossas casas. Lembre-se, amigo: doador não é devedor, nem está sujeito a execuções judiciais ou divinas. Se quer ajudar, basta seguir o chamado de seu coração. Você estará no caminho certo.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

O QUE É AÇÃO HUMANITÁRIA?

GEORGE SARMENTO
A trajédia do Haiti já provocou cerca de 170 mil mortos e o número pode ser bem maior. Muitos se perguntam como um terremoto tão avassalador não foi previsto pelos cientistas, com seus aparelhos de alta tecnologia. Paradoxalmente, a catástrofe que destruiu um dos países mais pobres do Planeta também revelou milagres, como o da jovem que passou 17 dias sob os escombros e foi resgatada com vida.
A imprensa internacional tem analisado diversos aspectos do sofrimento haitiano e procurado explicar os efeitos perversos do colonialismo no país, vítima do isolamento internacional, da extrema pobreza e da pilhagem dos tiranetes corruptos.
Os meios de comunicação destacam o papel de países como o Brasil e os Estados Unidos no socorro às vítimas e à manutenção da ordem. Entretanto tenho lido muito pouca coisa sobre a ação humanitária desenvolvida por entidades não-governamentais movidas pela solidariedade.
O enfoque humanitário da mídia se restringe ao papel dos boinas azuis, militares de várias nacionalidades vinculados às Nações Unidas, sob a coordenação do Brasil. O noticiário e as centenas de artigos publicados não se preocuparam em esclarecer o público sobre esse novo movimento de solidariedade que tem ajudado povos de todos os continentes a superarem suas dificuldades e a redescobrir a dignidade perdida. A visão reducionista prevalesse tanto na imprensa nacional como internacional. Foi aí que desencavei um artigo que escrevi a algum tempo sobre o papel da ação humanitária no âmbito das ONGS e da ONU.
Talvez seja um pouco longo, mas vale a pena conferir.

AÇÃO HUMANITÁRIA: A NOVA FACE DA SOLIDARIEDADE

Em meados de 1859, Henri Dunant encontrava-se em Solferino, na Itália, em busca de uma audiência com Napoleão III. Foi quando testemunhou a carnificina que transformaria para sempre sua vida. A guerra entre França e Áustria atingira a sua fase mais violenta. As tropas inimigas combatiam sem trégua. Milhares de baixas desfalcavam os exércitos inimigos. Em apenas um dia, vinte e dois mil austríacos e dezessete mil franceses gravemente feridos em combate foram abandonados no campo de batalha.
Entregues à própria sorte, os soldados agonizavam ao relento sem qualquer esperança de salvação. Foi aí que aconteceu o inesperado. Os habitantes da região decidiram prestar socorro aos feridos sem levar em consideração o exército a que pertenciam. Indiferentes ao ódio que alimentava a guerra, modestos camponeses empenharam-se em aplacar o sofrimento dos mutilados e moribundos, assegurando-lhes cuidados médicos e conforto espiritual.
Na condição de cidadão suíço, Dunant participou ativamente dessa rústica operação de socorro. Acreditava que a ação de salvamento era um instrumento da vontade de Deus. Descobria a ideologia que passaria a comandar sua vida. Três anos depois do sangrento episódio, publicou Un Souvenir de Solferino, livro em que relata sua experiência como voluntário.
Movido pelo desejo de ajudar as vítimas da violência, Dunant funda, em 1863, o Comitê de Internacional de Socorro aos Militares Feridos, organização de natureza supra-estatal destinada a prestar ajuda humanitária nos campos de batalha. Mais tarde, a entidade é transformada em Comitê Internacional da Cruz Vermelha. O reconhecimento internacional não tardou a chegar: em 1901, Dunant recebe o Prêmio Nobel da Paz.
Hoje, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha é uma entidade não-governamental dedicada à difusão do Direito Humanitário Internacional. Sediada em Genebra, organiza missões médico-sanitárias em países vítimas da pobreza, da violência ou afetados por catástrofes naturais de grandes dimensões.
É indiscutível que a criação da Cruz Vermelha foi o grande marco da ação humanitária contemporânea. Mas não se pode afirmar que o humanitarismo começou com ela. Durante toda a Idade Média, a igreja católica promovia assistência aos pobres em forma de alimentos e esmolas. As grandes monarquias associavam-se à igreja para a distribuição de donativos, que geralmente ocorria em grandes ocasiões como a coração do rei, os casamentos e os funerais. Com a Revolução Francesa, o Estado passou a se preocupar com o destino das viúvas, esposas e órfãos dos soldados mortos ou mutilados em combate, instituindo os comitês de mendicância e construindo hospitais nas grandes cidades. Nessa época, surgem as sociedades filantrópicas, constituídas por famílias aristocráticas, que se consagravam à prática da beneficência.
A partir daí, as preocupações humanitárias se manifestaram de diversas formas, a exemplo da luta pela abolição da escravatura, pela melhoria da qualidade de vida, pelo respeito às minorias étnicas, sexuais e religiosas etc.
A ação humanitária tem orientação pacifista e luta pela preservação da vida humana em sua dignidade, socorrendo as vítimas dos desastres naturais, das crises econômicas, da violência política e da intolerância racial ou religiosa. Tem a missão de ajudar os povos a atravessar períodos de crise, amenizar as dores das vítimas dos conflitos armados, das grandes epidemias e das catástrofes naturais, através da distribuição de alimentos, remédios, agasalhos, vacinas e cuidados médicos.
A ação humanitária desconhece fronteiras. Sua dimensão é planetária, universal. O desejo de assegurar o direito à vida, ajudando o próximo a superar tragédias pessoais, é sua principal ideologia. A prática militante da fraternidade, o compromisso com a solidariedade entre os povos e o respeito ao direito internacional são outras vigas que sustentam o movimento.
O humanitarismo não é um instrumento para a derrubada de governos despóticos ou de regimes ditatoriais. A capacidade de escolha dos povos é respeitada em todas as circunstâncias. Seu foco é a organização de missões de socorro às vítimas da miséria, da fome e das epidemias. Sem qualquer outro propósito subjacente, visa a sobrevivência das populações que se encontram em profundo estado de fragilidade física e mental decorrente de brutal ruptura do equilíbrio anterior.
O testemunho do drama é a principal estratégia de persuasão da opinião pública internacional. As organizações não-governamentais precisam da imprensa não só para divulgar as ações humanitárias e angariar recursos, mas também para denunciar as atrocidades que põem em risco a vida das populações. Por outro lado, a imprensa utiliza a estrutura das equipes – aviões, caminhões e contatos locais – para ter acesso a regiões perigosas, quase sempre infestadas de guerrilheiros, moléstias ou exércitos hostis. Essa relação de interdependência tem funcionado muito bem, pois a presença de jornalistas no palco dos acontecimentos assegura transparência às missões de salvamento, inibindo qualquer possibilidade de manipulação da verdade.
Embora não tenha interesses políticos nos países assistidos, a ação humanitária tem o dever de denunciar todas as formas de violência – crimes contra a humanidade, tortura, segregação racial ou religiosa, êxodos forçados, etc. – por que passam as populações civis. Em 1985, foi criada a organização Repórteres sem Fronteiras que tem entre os seus objetivos o financiamento de reportagens sobre conflitos armados nos países esquecidos pelos meios de comunicação. Com sede em Paris, a entidade congrega colaboradores de várias nacionalidades que investigam violações aos direitos humanos, sobretudo os atentados à liberdade de expressão e o aprisionamento de jornalistas no exercício da profissão.
A ação humanitária não tem vinculação com governos ou grupos políticos. Isso não impede a construção de parcerias que garantam o acesso das equipes aos acampamentos com o exclusivo objetivo de auxiliar enfermos e feridos. Ocorre que as negociações nem sempre são fáceis. Há situações em que os governos locais desconfiam das reais intenções das organizações humanitárias. Outras vezes tentam utilizá-las a serviço de seus próprios interesses. O clima de tensão só é superado depois de exaustivas negociações em que os interessados fazem concessões mútuas, estabelecem prioridades e firmam acordos razoáveis.
A missão começa com a delimitação do corredor humanitário, que é o espaço territorial em que as equipes de salvamento podem atuar em segurança. Os voluntários fazem o levantamento das necessidades médicas e nutricionais mais urgentes, avaliam os riscos de doenças infecto-contagiosas, identificam os grupos mais vulneráveis e prestam os primeiros-socorros. Em seguida, montam acampamento, organizam um esquema de distribuição de agasalhos, alimentos, remédios e água potável. Iniciados os trabalhos, as equipes permanecem ao lado das vítimas até o total restabelecimento da autonomia perdida.
Muitas vezes os corredores humanitários são desrespeitados pelos exércitos, milícias e grupos religiosos radicais. Segundo dados da ONU de 1997, 57 países assistidos apresentam elevado risco de violência contra acampamentos, transportes e pessoal de apoio. Em outros 28, a insegurança mostra-se insuportável, obrigando a retirada da maioria dos voluntários de seu território. 150 funcionários da ONU foram assassinados em missão. Centenas de religiosos, ativistas e militares das tropas de paz foram vítimas de emboscadas, fuzilamentos ou execuções a sangue frio. Passados 10 anos, a situação não é diferente.
A onda de violência tem provocado fortes reações ao princípio da neutralidade tradicionalmente defendido pelo humanitarismo. Não que o movimento deva interferir nas decisões políticas dos países em conflito. Isto afrontaria a soberania das nações e a autodeterminação dos povos. Mas não se pode ficar indiferente às graves violações aos direitos humanos fundamentais. Por isso, muitos defendem a legitimidade da intervenção internacional em defesa dos princípios universais consagrados pelas convenções da ONU.
Uma das grandes novidades do século XX é a militarização da ação humanitária. Terminada a guerra no Golfo Pérsico em 1991, o Iraque, embora derrotado pelas forças aliadas, lançou ofensiva contra os curdos do norte, que foram obrigados a fugir para territórios turcos e iranianos. Foi então que o Conselho de Segurança da ONU, preocupado com a situação dos refugiados, exigiu do governo iraquiano o fim das hostilidades e o acesso imediato das organizações humanitárias ao local da tragédia. A Operação Provide Confort – como acabou ficando conhecida – inaugurou a ingerência humanitária, hoje considerada um sólido instituto de direito internacional.
Embora as Nações Unidas não disponham de força militar permanente, seu Conselho de Segurança pode requisitar dos Estados-Membros tropas multinacionais e armamentos para operações de manutenção da paz. Conhecidos como boinas azuis, os soldados portam o uniforme de seu país de origem e a insígnia das Nações Unidas. Levam consigo equipamentos ligeiros, que só podem ser utilizados em legítima defesa. Durante as operações, as tropas mantêm posição de neutralidade em relação aos países beligerantes ou aos grupos políticos envolvidos em movimentos revolucionários. Sua missão restringe-se a assegurar a ajuda humanitária, garantir a segurança das populações civis e promover negociações diplomáticas visando o cessar-fogo.
Do ponto de vista humanitário, as missões de observação e de manutenção da paz desenvolvidas pela ONU têm obtido resultados satisfatórios. Nos últimos anos, o mundo testemunhou intervenções de grande envergadura como a do Iraque, Bósnia, Somália e Ruanda e outras menores mas igualmente importantes, como a de Angola e Timor Leste, muitas das quais contaram com a colaboração das forças armadas brasileiras.
Ocorre, porém, que a intervenção militar com fins humanitários tem sido vista pelos militantes não-governamentais sob duas perspectivas: libertária e legitimista.
Acostumados à ação exclusiva das organizações não-governamentais no palco das tragédias, os libertários vêem com desconfiança a intervenção armada dos boinas azuis nos países devastados. Acreditam que o nivelamento com os Estados nas missões de assistência às populações civis atenta contra o princípio da independência do humanitário civil e colocam em risco a vida dos voluntários, freqüentemente confundidos com militares. Temem ainda que o movimento seja utilizado como um instrumento de defesa de interesses espúrios de potências mundiais nos territórios ocupados. Entendem, por fim, que a intervenção política e militar de grandes potências ou de coalizões internacionais sobre países acusados de graves violações aos direitos humanos não pode ser reconhecida como humanitária, mas política.
Outra corrente considera as missões da ONU legítimas desde que respeitem as normas de direito humanitário, assegurem o acesso das equipes de salvamento aos feridos, garantam a segurança dos acampamentos e restabeleçam os direitos humanos fundamentais violados por governos despóticos. Observados tais pressupostos, não haverá incompatibilidade legal ou ética que impeçam a atuação conjunta das entidades e das forças de paz.
Em 1999, a organização Médicos sem Fronteiras é agraciada com o Prêmio Nobel da Paz. Criada em 1971 com o objetivo de levar assistência médica às populações em perigo e testemunhar as tragédias e violações aos direitos humanos, estrutura-se como entidade humanitária sem fins lucrativos e nenhuma vinculação política, econômica ou religiosa. Mantida exclusivamente por donativos privados, é famosa pela eficiente prestação de assistência médica às vítimas de catástrofes de origem natural ou humana. O Comitê do Nobel reconheceu que seus voluntários são dotados de grande coragem, elevada dignidade e espírito de sacrifício, virtudes que são uma grande fonte de esperança para a paz e a reconciliação.
A premiação oxigenou a ação humanitária. A nova face do movimento procura unir assistência aos necessitados à denúncia das atrocidades. Embora represente um avanço em relação à neutralidade dos primeiros tempos, a nova postura ainda está longe de ser consensual. Na verdade, a ação humanitária contemporânea encontra-se diante do seguinte dilema: escolher entre a compaixão e o engajamento político. O resultado do embate entre essas duas tendências será decisivo para o futuro do movimento.
Os mais conservadores sustentam a necessidade de permanecer fieis aos princípios éticos do humanitarismo – compaixão, voluntariado, não-ingerência, universalismo, assistencialismo, neutralidade, devotamento individual, conforto espiritual e luta pela sobrevivência das populações desfavorecidas. Acreditam na solidariedade desinteressada das organizações não-governamentais e nas ações humanitárias espontâneas que se manifestam diante acontecimentos catastróficos como enchentes, incêndios, epidemias, pobreza extrema, etc.
Outros militantes, inconformados com as desigualdades sociais, reivindicam um mundo mais justo e igualitário. Cada vez mais distanciados da caridade e da filantropia, denunciam a exclusão, a miséria e a fome dos países periféricos. Apóiam reivindicações de desempregados, famintos, desabrigados e camponeses sem terra. Mesmo nos países desenvolvidos, a preocupação com as pessoas em dificuldade tem apresentado um crescimento substancial. Na França, por exemplo, os Restaurantes do Coração, associação civil criada em 1985 pelo célebre humorista Coluche com o objetivo de alimentar os indigentes que vagam pelas ruas das cidades, gozam de grande popularidade. Importantes astros da música popular francesa fazem tournées gratuitas no país a fim de aumentar o número de voluntários e arrecadar fundos para a realização dos projetos da entidade.
O Brasil tem sido protagonista de muitas lutas humanitárias. Em 1993, o Movimento pela Ética na Política lançou a “Ação da Cidadania contra a Fome e a Miséria e pela Vida” com o objetivo de combater a fome, a pobreza e a exclusão social no país. Seu principal líder, o sociólogo Betinho, conseguiu mobilizar a sociedade civil para a distribuição de alimentos, vestimentas e abrigos, além de desenvolver projetos de educação para meninos de rua, assentamento de camponeses, hortas comunitárias, geração de emprego e renda, etc. Essa iniciativa quebrou o clima de indiferença da classe média em relação aos milhares de famintos que padecem dos males da injustiça social que assola a nação brasileira.
Mas não é só isso. A onda humanitária também sensibiliza importantes segmentos empresariais. O desejo de melhorar a imagem diante do mercado consumidor, a tentativa de restabelecer a crença dos empregados nas virtudes da empresa e o interesse em reforçar as relações entre pessoas envolvidas nos trabalhos de equipe são alguns dos objetivos a serem alcançados a partir dessa nova estratégia. A multinacional Danone, por exemplo, estimula seus executivos a participar de projetos educacionais destinados a alunos de primeiro grau. A Fundação Club Méditerranée promove sessões de cinema para os desabrigados e faz excussões noturnas pelas ruas de Paris para ajudar os mendigos. No Brasil, a Fundação Bradesco desenvolve projetos educacionais, visando educar e profissionalizar crianças e adolescentes pobres. Até mesmo estrelas do futebol e da música popular têm destinado parte de seus lucros para a promoção de projetos humanitários.
Não se pode dizer que essas iniciativas sejam absolutamente desinteressadas. Em muitos casos não passam de artifícios retóricos para encobrir contradições sociais. Verdadeiros paliativos à miséria, ao desemprego e a fome. Em outros, é clara a influência do marketing político, ávido por alavancar a imagem de clientes famosos. Isso sem falar daqueles que querem parecer magnânimos aos olhos da sociedade, posando de grandes beneméritos de um povo sofrido e injustiçado. Mas o que ninguém pode negar é que as novas vertentes humanitárias têm contribuído para aliviar o sofrimento das populações excluídas, restituindo-lhes um pouco da dignidade perdida.
Muitos consideram a ação humanitária excessivamente paternalista e imediatista. Argumentam que, antes de nutrir, agasalhar e medicar, é necessário preparar o homem para o exercício concreto da cidadania. De nada adianta alimentá-lo hoje, se amanhã ele irá defrontar-se com as mesmas condições de pobreza em que se encontrava anteriormente. Na verdade, o humanitarismo não ambiciona governar as nações socorridas, tampouco implantar esta ou aquela ideologia política. O grande propósito é garantir o direito à vida, assegurando as condições mínimas de sobrevivência às populações em perigo.
Qual a razão do sucesso da ação humanitária? O século 20 terminou melancolicamente. Já não se crê nas grandes utopias. Os partidos políticos estão em franca decadência: deixaram de ser a vanguarda das transformações sociais. O mercado parece ser o grande maestro da pós-modernidade. Diante dessa perspectiva pessimista, o humanitarismo surge como uma nova forma de cidadania. As pessoas compreenderam que não podem cruzar os braços diante da intolerância, da exclusão social e da violência. E a prática dessa nova faceta da solidariedade talvez seja o melhor caminho de construir um mundo melhor.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

O QUE PODERIA TER SIDO SE...

GEORGE SARMENTO
A vida tem várias facetas envoltas em insondáveis mistérios. O ser humano é capaz de satisfazer-se com o que conquistou? Por que o vazio existencial insiste em nos atormentar depois que atingimos determinado objetivo? Será que precisamos de desafios permanentes e infinitos para nos sentirmos vivos? Tenho meditado muito sobre essas questões, mas não tenho resposta definitiva. Acho que nunca desvendarei essa trama.

Uma tese muito recorrente na obra poética de Mendonça Júnior é a de que os desejos que permanecem na dimensão dos sonhos são muito mais importantes que as realizações terrenas: "Se o bem mais desejado, à mão, nos vem, ao estreitá-lo no peito, já todo o seu encanto está desfeito e nem parece mais o mesmo bem". O soneto Velocípede, transcrito abaixo, é a metáfora das aspirações frustradas que se fixam na memória como possibilidade longínqua de felicidade. Elas existem para jamais serem satisfeitas, posto que habitam na dimensão do que poderia ter sido se....

Parece que estamos condenados a viver eternamente incontentados, insatisfeitos com a vida real. O sonho inatingível é a grande utopia individual, o Jardim das Delícias, o Éden espiritual. Admiro muito as pessoas resignadas, perfeitamente satisfeitas e felizes com a concretude da realidade cotidiana. Talvez esse seja o caminho da serenidade, ou da "tranqüilidade da alma", como preferia Sêneca.

Não sei se é maldição ou destino a incessante busca dos sonhos impossíveis. Acho que é por isso que tantas pessoas dedicaram suas vidas a procurar a Pedra Filosofal, a Fonte da Juventude, o Santo Graal, o Eldorado. Talvez seja essa a força que impulsiona a vida e impede a acomodação estagnante; talvez seja a expectativa de viver algo extraordinário, inusitado, fantástico. As pequenas conquistas do cotidiano alegram e alimentam a auto-estima. Elas são necessárias para fortalecer o espírito e me estimular a seguir em frente. O sentimento de frustação é derrotista, desanimador. Mas confesso, que os velocípedes cromados também povoam meus devaneios...


O VELOCÍPEDE

Mendonça Júnior
Ainda sinto que me falta
o lindo velocípede cromado
que foi a minha aspiração mais alta
e o meu primeiro sonho malogrado.

Frequentemente, ante os meus olhos salta
esse brinquedo que me foi negado
e o menino de outrora ainda se exalta
e esbraveja, sentindo-se frustrado.

Consola-me pensar que nehum bem,
depois de conquistado se mantém
ao nível em que pairou como esperança

E só se guarda vivo na lembrança
Aquilo que se quer e não se tem,
o que mais se deseja e não se alcança.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

A FELICIDADE NO COTIDIANO

GEORGE SARMENTO
Em recente entrevista à Paris Match, Sebastian Marroquin, filho do sanguinário narcotraficante Pablo Escobar, Chefe Supremo do Cartel de Medelín, na Colômbia, falou do documentário intitulado Os Pecados de Meu Pai, que será exibido em breve nos cinemas. Depois de viver muitos anos na Argentina, resolveu assumir sua verdadeira identidade, contar a história da família e pedir desculpas ao povo colombiano pelas atrocidades cometidas pelo pai.
Durante a perseguição implacável imposta a Escobar, Sebastian foi obrigado a viver trancafiado nas centenas de esconderijos escolhidos pelo Cartel de Medelín. O regime de "prisão domiciliar" durou cerca de 10 anos, consumindo toda sua infância. A agonia só acabou quando o narcotraficante foi encontrado pela polícia e morto após violenta troca de tiros em 1993.
Num dos trechos mais pungentes da entrevista, Sebastian relembra os dias de fome que passou quando se encontrava abrigado em casa de agricultores, nas imediações da cidade Medelín. Os policiais montaram uma barreira na frente do esconderijo e ali permaneceram durante uma semana, sem saber que os foragidos estavam tão perto. Pablo Escobar mantinha dois sacos contendo a quantia de 2 milhões de dólares em espécie. Mas com toda essa dinheirama, a família não podia comprar sequer um pedaço de pão.
Esta situação paradoxal, obriga-nos a refletir sobre a dicotomia riqueza-liberdade. De que adianta sermos ricos, poderosos e temidos se não podemos gozar os prazeres simples da vida como ir à padaria do bairro ou visitar o melhor amigo? E ter milhões na conta bancária, mas viver sob permanente tensão já que a fortuna foi obtida ilicitamente? Vale a pena tanto apego às coisas materiais se somos obrigados a abdicar dos prazeres mais singelos como chupar um picolé, comer pipoca na praça ou sentar nas areias da praia para contemplar um belo pôr do sol? Sei que estou entrando em terreno perigoso, pois essas questões são universais e foram discutidas pelos grandes filósofos desde a Antiguidade.
Em meu ofício de promotor de justiça, vejo a vida de tantos jovens se despedaçar ao entrar no mundo do crime! Mortes prematuras, inocência perdida, infância fanada, famílias despedaçadas... Em troca de quê? De um celular de luxo, roupas de grife, algum dinheiro e a vida abreviada por uma execução sumária. Outros que tinham tudo, mas que desperdiçam suas carreiras ao chafurdar na corrupção. Essas decisões equivocadas e destrutivas sempre me intrigaram. Nunca consegui compreender por que tantas pessoas jogam na lama uma reputação que consumiram anos a construir.
Nada tenho contra a riqueza construída com o suor do trabalho ou legitimada por herança, laços de matrimônio e outras formas legais. Se a pessoa acha que a acumulação de bens materiais a fará feliz, é natural que percorra esse caminho. Se procurar usar parte do dinheiro para investir em ações de solidariedade, tanto melhor. Mas o que importa aqui é analisar o estado de espírito de quem enriqueceu ilicitamente e agora vive sob a permanente tensão de ser obrigado a prestar contas à Justiça, ou pior, à Polícia Federal.
Acredito que a maior dádiva do ser humano é a paz de espírito, esse estado emocional em que tudo conspira para a serenidade, calma e harmonia interior. Não pretendo discutir os caminhos que levam à felicidade. Falta-me arte e engenho para tanto. Tampouco quero me transformar em autor de auto-ajuda. Meu objetivo é fazer uma rápida incursão na filosofia para tentar responder as perguntas aqui formuladas.
Socorro-me de Sêneca, um dos mais importantes estóicos da Antiguidade, que foi preceptor de Nero (aquele mesmo que ateou fogo em Roma). A base teórica dos seus ensinamentos consistia na idéia de que o homem deveria viver de acordo com sua natureza, adaptando-se a todas as situações com que se deparasse, mesmo as mais adversas.
Sêneca escreveu um discurso intitulado Da Tranquilidade da Alma, em que apresenta preciosos conselhos para quem deseja paz de espírito. Prega o desapego às coisas materiais em troca da riqueza interior. Para ele o melhor critério para lidar com o dinheiro consiste em não cair na pobreza nem dela afastar-se completamente. A riqueza é vista como uma permanente fonte de infortúnios e desgraças, a menos que os bens sejam usados para ajudar ao próximo: “onde houver um ser humano, aí haverá a possibilidade de se fazer o bem”.
Para ele a harmonia da alma é o bem supremo. Pregava a necessidade de uma vida retirada, consagrada às coisas do espírito, longe dos prazeres que escravizam a mente e tolhe a liberdade. Defendia que é preciso cultivar o comedimento, a refrear a luxúria, a moderar a ânsia de glória, a suavizar a ira, a olhar com simpatia a pobreza, a cultivar a frugalidade. Enfim, a felicidade consistia em uma vida virtuosa em que nossos atos refletissem fielmente os valores éticos em que acreditamos.
O iluminismo prometeu que a felicidade estaria na vitória da razão sobre a supertição. Apenas o progresso científico e material seria capaz de assegurar a tranquilidade da alma ao maior número de pessoas. O droit au bonheur (direito à felicidade) está estampado na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. A felicidade geral era a maior aspiração do Utilitarismo inglês, na pluma de Jeremy Bentham. Infelizmente as promessas não foram cumpridas e terminamos voltando à estaca zero, com as mesmas perguntas e perplexidades.
Tenho a convicção que toda a fonte da infelicidade consiste no descompasso entre as ações cotidianas e as nossas crenças mais íntimas. Isso acontece sempre quando a vida que levamos não reflete os que acreditamos. Ser infeliz é ter consciência da contradição entre o pensar e o agir, o que gera um estado de desarmonia interior profundamente nocivo à saúde. O sentimento de incongruência avança quando insistimos nos equívocos à espera que aconteça algum milagre.
É evidente que a felicidade tem o seu lado objetivo, externo. Ninguém é feliz quando está privado das condições mínimas de existência digna, quando os seus direitos fundamentais são sistematicamente violados pelo Estado ou pela sociedade. A satisfação das necessidades básicas e o exercício da cidadania são pressupostos obrigatórios para o bem-estar do corpo e da mente. Mas também não podemos afirmar que a abundância de bens materiais seja um passaporte para a felicidade. Estudos desenvolvidos por cientistas sérios provam que a maioria dos ricos entrevistados se sentem infelizes, embora não sofram privações de suas necessidades básicas.
A sociedade de consumo está calcada na superficialidade, no efêmero, na ausência de vínculos duráveis. Esse modelo estimula a inveja, a hipocrisia, o supérfluo, o imediatismo e tantos outros sentimentos negativos que envenenam a alma. A indústria famacêutica tenta explorar o vazio existencial criando a pílula da felicidade, apontada como a descoberta do século. Muitos escolhem o caminho do crime como o atalho para a construção de riquezas monumentais. Mas a verdadeira felicidade só é possível como experiência subjetiva a partir da consciência de que os nossos atos refletem precisamente o que acreditamos, as nossas mais profundas e verdadeiras convicções.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

SOBRE A ARTE DE FLANAR

GEORGE SARMENTO
Quando me perguntam se pratico esportes regularmente, respondo: caminhadas. Ainda criança, costumava passar as manhãs no Clube Fênix Alagoana onde jogava voleibol, futebol e outros esportes coletivos. Na rua em que morava, no bairro do Farol, havia campinhos improvisados que eram palcos dos populares “rachas” reunindo meninos da redondeza, ricos e pobres, sem discriminações. O abismo social ainda não nos tinha sido apresentado pela sociedade capitalista.

Já adulto, os amigos foram se dispersando e os encontros escassearam-se até desaparecerem completamente. Alguns mergulharam nos intermináveis compromissos do casamento, outros engordaram, muitos sucumbiram ao sedentarismo, sem falar daqueles que simplesmente sumiram sem deixar vestígios de suas histórias de vida.

Foi então que comecei a praticar esportes individuais, sobretudo caminhadas diárias à beira mar. Nunca fui muito resistente a corridas, embora hoje tenha mais fôlego do que antes – o que para mim é mais um mistério insondável da existência humana. Eu tinha 24 anos, era promotor de justiça e havia construído um simpático chalé na praia de Guaxuma. Estava em pleno gozo das prerrogativas que a liberdade e a independência financeira podiam propiciar a uma pessoa de minha idade. E adorava caminhar... Pés descalços na areia macia, vento acariciando os cabelos e a contemplação da paisagem marinha.

Nunca caminhei para emagrecer, tonificar os músculos, fortalecer as funções cardíacas ou aumentar os meus dias de vida no Planeta Terra. As caminhadas serviram muito mais para exercitar o cérebro do que o corpo. As melhores idéias que tive se revelaram no curso de uma boa caminhada. A solução de muitos problemas existenciais, profissionais e financeiros aconteceu nas mesmas circunstâncias. São momentos mágicos em que entramos em perfeita sintonia com a natureza.

Retifico o que disse acima. Andar não é um esporte, mas um estilo de vida. Tem gente que anda para não ter um enfarte, para se entorpecer de endorfina ou para conter a agressividade. O que faço é diferente. Aproxima-se muito do que denominamos flanar, isto é, caminhar sozinho, sem rumo, observando calmamente a paisagem urbana ou rural (no meu caso, marinha), com a mente livre e o corpo relaxado.

O flâneur foi eternizado pelo poeta francês Charles Baudelaire no ensaio intitulado O Pintor da Vida Moderna, publicado no Século XIX. Personagem tipicamente parisiense, o flâneur é descrito como um caminhante anônimo que observa apaixonadamente o espetáculo da vida, que recolhe impressões do cotidiano e as eterniza no papel quando ainda se encontram bem vivas em sua memória. Graças a ele, foram criados os bulevares, os jardins, os passeios públicos, lugares onde a paisagem “feita de gente viva” se mistura ao esplendor das árvores e flores. Mesmo no Brasil contemporâneo, áreas urbanas são especialmente projetadas para os praticantes de caminhadas. São espaços frequentados por pessoas de todas as idades, com os mais diversos interesses.

A França produziu flâneurs como Diderot, Voltaire e Balzac, escritor que recolhia das ruas a maioria dos personagens de seus romances e conseguiu traçar um dos mais fiéis retratos da sociedade de sua época. Recentemente li Os Devaneios de um Caminhante Solitário, o último livro escrito por Jean-Jacques Rousseau. Seu objetivo era descrever o estado habitual da alma durante as caminhadas solitárias pelos arredores de Paris. O método é simples: manter a mente livre por inteiro para que as idéias e devaneios sigam suas inclinações, sem resistência e sem dificuldade.

O filósofo chegou a declarar que “essas horas de solidão e de meditação são as únicas do dia em que eu sou eu mesmo por inteiro e pertenço a mim sem distração, sem obstáculo, e em que posso dizer de verdade que sou o que a natureza quis”. A obra de Rousseau inaugura uma nova estética do caminhar como autoconhecimento, sendo precursora de peregrinações como o Caminho de Compostela e a escalada de Machu Picchu.

Em seu livro Meditar Caminhando, Thich Nhat Hahn, um monge vietinamita exilado na França, também fala dos benefícios psíquicos e físicos das caminhadas lentas, contemplativas, plenas de pensamentos positivos e exercícios respiratórios. Já testemunhei seguidores do líder budista aplicar suas técnicas em passeios pelo Jardim Botânico do Rio de Janeiro, com resultados maravilhosos para a saúde.

Vivemos num mundo dominado pelo pragmatismo. As pessoas estão ávidas para consumir poções mágicas de vitalidade. Prolongar a juventude, manter-se atraente, gozar de saúde são aspirações legítimas e podem ser perseguidas com avidez por aqueles que aspiram melhorias em sua qualidade de vida. Pergunto: para que as esteiras mecânicas se o mundo está ao alcance de todos? As caminhadas não são meros instrumentos de fortalecimento do corpo físico. O movimento pelo movimento de nada vale se não estimular a inteligência. A lição que nos deixa a arte de flanar é que as caminhadas são prazeres democráticos e benéficos tanto para o corpo como para a alma. E,ainda por cima, não custam nada!

COTIDIANO EM MOVIMENTO

GEORGE SARMENTO
Cotidiano, de Chico Buarque de Holanda, é um clássico da música popular brasileira que fez muito sucesso nos anos 70 pela mensagem subliminar de inconformismo com a sufocante rotina de alguns casais. A narrativa não poderia ser mais clara: “todo dia ela faz tudo sempre igual”. E por aí segue com a descrição dos atos repetitivos, previsíveis e entediantes de sua mulher. O paradoxal é que o tédio do personagem não é provocado pela indiferença da fêmea, mas por um conjunto de manifestações de afeto que ela lhe dirige, possivelmente para manter acesa a chama do amor.
Quase sempre a palavra cotidiano tem uma conotação negativa, estagnante. Geralmente é usada para descrever a acomodação das pessoas a hábitos adquiridos pela repetição mecânica ou inconsciente. Funciona como o escudo protetor daqueles que não querem deixar a zona de conforto para enfrentar os riscos de uma jornada incerta e inusitada. Representa o lado estático da existência humana, a sensação de segurança que experimentamos ao percorrer caminhos conhecidos que nos levam ao destino esperado, sem surpresas ou sobressaltos.
Há pessoas que não quebram sua rotina por nada nesse mundo. Traçam uma rota para as suas existências e se recusam a tomar atalhos, arriscar novas trilhas, mergulhar no desconhecido. Qualquer desvio é motivo para inseguranças, temores, pânico. Acreditam ser possível proteger-se das incertezas cada vez mais presentes na sociedade contemporânea, tão complexa e fluida. São vagões que jamais saem dos trilhos.
Muitas vezes é preciso que um acontecimento trágico nos desperte para a beleza da vida. Para as experiências maravilhosas que podemos experimentar se tivermos coragem de mudar de atitude, de vermos as coisas sob outra perspectiva. Somos obrigados a conviver com perdas. Essa é a lei da existência. Minha mãe partiu prematuramente aos 50 anos de idade, vítima de um derrame cerebral fulminante, deixando para trás os filhos, a música e a literatura que tanto amava. Meu pai foi arrancado da vida por um acidente automobilístico brutal, no auge de sua carreira profissional – ainda cheio de sonhos e energia. Agora mesmo meu tio Mendonça Neto luta bravamente contra um câncer com a mesma coragem com que combateu a corrupção e os desmandos de uma elite parasita que há séculos dilapida impiedosamente o Estado de Alagoas.
Nenhum desses acontecimentos poderia ser previsto por mim ou por quem quer que seja. O importante é que essas fatalidades não me tornaram um pessimista, invejoso ou descrente. Antes um otimista, como o Cândido, de Voltaire. Sou uma pessoa comum. Tenho virtudes e defeitos. Mas a cada dia reforça em mim a convicção de que é preciso evoluir moral e espiritualmente. Luto muito contra a dificuldade de dizer não, o injustificado sentimento de culpa e o altruismo exagerado que insiste em reconhecer o direito dos outros em detrimento dos meus. Enfim, nada que não possa ser superado através de reflexões racionais e objetivas.
Há pessoas que simplesmente são incapazes de resistir às frustrações de expectativas. Não percebem que a vida tem várias portas e muitas delas podem nos trazer felicidade. Simplesmente não sabem lidar com a transitoriedade das coisas. Apegam-se a ilusões como o poder, a bajulação, os bens materiais, a notoriedade, mas não se preparam para as adversidades que todas as mudanças proporcionam. Não sabem enfrentar o ostracismo, a solidão, o esquecimento e a ingratidão. Fujo desse estigma e me recuso a assumir a condição de vítima de quem quer que seja.
Em pleno século XIX, Baudelaire já afirmava que a modernidade é o transitório, o efêmero e o contigente. Nada é permanente, sólido, imutável. A vida não pode se cristalizar em hábitos que produzem a falsa sensação de segurança. As nossas certezas viraram pó. O que hoje é novidade, amanhã será obsoleto. Os castelos inespugnáveis podem se transformar num amontoado de grãos de areia.
Eis o que eu queria dizer: O COTIDIANO TEM DE ESTAR EM PERMANENTE MOVIMENTO! Nada impede que a rotina modorrenta possa se transformar na exploração do novo, do desconhecido e do belo. Como adotar um novo paradigma para as nossas vidas? Uma amiga muito querida costuma dizer que “a criatividade é infinita”. Ela tem razão. Não há respostas prontas. Cada um tem o seu ritmo e intuição, a voz interior que insiste em nos lançar no labirinto desse mistério que se chama vida.
Feliz 2010!