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domingo, 7 de fevereiro de 2010

MINHA VISITA A AUGUSTE COMTE

GEORGE SARMENTO
Quando entrei na Faculdade de Direito, no final dos anos 70, tive as primeiras noções da dicotomia direito natural x direito positivo. O primeiro marcado pela inspiração divina ou pela natureza humana. O outro, fruto do pensamento científico, racional, indutivo. Representava a vitória da ciência sobre a superstição, o empirismo e o apriorismo que dominaram todo o pensamento medieval.

Os professores esforçavam-se ao máximo para demonstrar o caráter científico do Direito. Pontes de Miranda, o maior jurista brasileiro de todos os tempos, defendia vivamente a positividade e afirmava que a incidência da norma jurídica sobre o suporte fático era a origem de toda a juridicidade, que se desenvolvia num universo virtual: o mundo do direito. Exilado nos Estados Unidos, Hans Kelsen também concebia um sistema de ciência pura do direito, uma tentativa de separá-lo das demais ciências sociais.

O que os mestres não explicavam é que o normativismo nada mais era que o positivismo aplicado ao Direito. Mesmo que não queiram admitir, o positivismo de Auguste Comte (1798-1857) está na origem das chamadas ciências jurídicas. Ele foi o primeiro filósofo a defender com todas as letras que o século XIX decretara o fim do obscurantismo científico. Era chegado o momento de a sociologia atingir a sua dimensão positiva, da mesma forma que a física e as matemáticas.

Auguste Comte... Quem foi esse homem paradigmático que influenciou os proclamadores da República Brasileira? Que foi fonte de inspiração para os grandes juristas nacionais do começo do século 20? Mesmo tendo lido os seus textos mais conhecidos, resolvi visitar seu apartamento parisiense a fim de conhecer melhor o seu universo intelectual.

Pego o metrô e desço na estação Odeon, em pleno Quartier Latin, a fim de visitar o imóvel onde o filósofo viveu os últimos 16 anos de sua vida. Fica num prédio construído no século 18 e o apartamento jamais foi ocupado por outros moradores desde a morte de Comte. Seus discípulos não permitiriam tal afronta ao monstro sagrado.

A primeira surpresa que tive, foi saber que o imóvel foi totalmente restaurado em 1960, a expensas de Paulo Carneiro (1901-1982), um químico brasileiro, que foi também diplomata na UNESCO. Ele teve a idéia de criar um museu e preservar todos os objetos pessoais do filósofo, inclusive a biblioteca, a mesa de trabalho e todo o mobiliário original.

Localizado na Rue Monsieur Le Prince, 10, o apartamento também abriga a Associação Maison d’Auguste Comte, criada em 1954. Além da visita ao museu, ela possui um vastíssimo acervo cultural e bibliográfico. São obras raras escritas por seus discípulos, teses de doutorado, biografias e toda a correspondência que ele mantinha com os intelectuais da época. Também fica claro que seu sistema filosófico exerceu forte influência sobre as gerações que se seguiram, a exemplo de Émile Durkheim, Stuart Mill, Littreé e, até mesmo sobre Kropotkine – o grande anarquista russo.

Ao tocar a campainha, a porta abriu automaticamente. Notei que o funcionário ficou surpreso. Era um jovem doutorando de filosofia, às vésperas de defender sua tese na Sorbonne. Nada a ver com o positivismo. Talvez estivesse no emprego apenas para pagar seus estudos. Disse-me que há mais de um mês o espaço não era visitado por ninguém, mesmo sendo o único museu de Paris consagrado a um filósofo francês. Nem mesmo Descartes recebeu tal honraria, comentou. O fato é que, durante 2008, apenas 685 pessoas passaram por ali, contando os grupos e eventos públicos. Mas, nos últimos anos, o número baixou significativamente.

Além disso, poucos livros foram publicados sobre a vida e obra de Comte. Seu pensamento não resistiu à pós-modernidade. Nesses tempos de neoconstitucionalismo, poucos tem coragem de se dizerem positivistas por medo de serem tachados de conservadores ou retrógrados. A cada dia a retórica jurídica ganha mais espaço na vida judiciária, e o discurso científico-positivista tem sido substituído pela hermenêutica concretizadora dos direitos fundamentais no Brasil.

Nascido em Montpellier, Comte desenvolveu sua formação acadêmica na renomada Escola Politécnica de Paris, onde adquiriu sólida formação científica. A partir de 1817 começa a construir os postulados de sua filosofia positiva. Cria o vocábulo sociologia e publica em 1821 a obra Trabalhos científicos necessários para reorganizar a sociedade”. Casa-se com Caroline Massin, com quem tem uma relação tumultuada e infeliz. Em 1826 é vítima de uma crise de loucura e é internado na Clínica do Dr. Esquirol. Tenta o suicídio, mas consegue se reequilibrar.

Nos anos seguintes retoma os seus cursos de filosofia, atraindo grande número de discípulos. Em 1842, publica seu Curso de Filosofia Positiva, obra que tem repercussão mundial, colocando-o no epicentro dos grandes pensadores do Século 19.

Sua vida sofre grande mudança quando conhece a jovem Clotilde de Vaux em 1845. Já separado de sua primeira esposa, Comte se vê perdidamente apaixonado pela jovem discípula. A perplexidade desse sentimento na maturidade deve-se ao fato de o filósofo não acreditar que a afetividade seja apreendida pela ciência. Procura na religiosidade as respostas para suas inquietações. Embora o romance só tenha durado um ano – sua musa morre de tuberculose –, Conte se mantém fiel a esse amor até o fim de sua vida.

Cria a Religião da Humanidade, engaja-se em movimentos sociais de defesa do proletariado. Institui a Sociedade Positivista para a educação dos povos. O positivismo ganha uma dimensão política na medida em que se propõe a restruturar a sociedade, resgatando-a do caos em que se encontrava mergulhada. A ciência e o progresso seriam os grandes motores de transformação. Sua militância política incomoda Napoleão III, que o destitui de sua cátedra da Escola Politécnica em 1854.

A visita ao apartamento de Comte revela algumas características de sua personalidade. Ele só escrevia diante do espelho, pois tinha a necessidade de ter contato permanente com sua própria imagem. Ele também criou uma biblioteca básica do proletariado, composta porexatamente150 livros, considerados básicos para a instrução pública. A cadeira utilizada por Clotilde encontra-se no mesmo lugar de costume, sem qualquer tipo de restauração – já que seus seguidores acreditam na dimensão divina de seu amor pela jovem francesa.

A obra de Comte teve enorme repercussão no Brasil. No Rio de Janeiro foi construída uma Igreja Positivista, onde uns poucos fiéis ainda cumprem a liturgia deixada por seu mentor. O filósofo morreu em seu leito, cercado de discípulos, deixando um grande legado para a humanidade. Os seus restos mortais repousam no Cemitério Père Lachaise. Ao deixar o apartamento, não pude deixar de notar a bandeira brasileira, que ostenta uma das mensagens do mestre de Montpellier: ordem e progresso.

3 comentários:

Madalena Sofia Galvão Viana disse...

Professor que belo texto, nos leva para dentro, também, do apartamento do filósofo. Muito interessante.
Também conheci Augusto Comte na faculdade de Direito, porém, só o vi de passagem. Não sabia que foi ele quem criou o vocáculo sociologia, tampouco uma Religião Positiva. Muito boa a aula e o texto, parabéns.

GEORGE SARMENTO disse...

Madalena,

Fico muito feliz que tenha gostado da descrição. Na verdade, dizer-se positista é quase sempre algo retrógrado. Mas o velho comte foi uma figura interessante e mereceria um estudo mais aprofundado. Aproveito para agradecer as palavras de estímulo e dizer que fico feliz tendo-a como leitora ativa do blog.
Forte abraço
George

DANTON VOLTAIRE disse...

Prof. GEORGER SARMENTO. Li seu artigo e o achei muito interessante
apesar de realçar alguns preconceitos sôbre o POSITIVISMO. AUGUSTO COMTE é um dos maiores gênios da HUMANIDADE. Extremamente altruísta e generoso. Nos ensino que apenas a ciência ilumina o mundo. Suas idéias continuam atualissimas e a RELIGIÃO DA HUMANIDADE certamente haverá de prevalecer no futuro. Engº Danton Voltaire Pereira de Souza - Advogado - Membro da Academia Brasileira de Filosofia.