quinta-feira, 10 de setembro de 2009

DO TRAJE AO ULTRAJE: A DECOMPOSIÇÃO DE UM ESTILO DE VIDA


GEORGE SARMENTO

O estilo nada mais é que o movimento da alma”, sentenciou Michelet . Buffon chegou mesmo a afirmar que “o estilo é o próprio homem”. É o retrato do espírito em toda sua crueza e contradições. A moda é um dos mais importantes códigos de comportamento social. É o elo que une o homem à contemporaneidade. É a expressão do apogeu, acomodação ou decadência de uma vida. Daí porque a análise da personalidade humana sob a perspectiva da indumentária e do mobiliário doméstico é um dos temas mais recorrentes da literatura universal.
É também o pano de fundo de Do Traje ao Ultraje, a mais recente obra de Enaura Quixabeira, lançada em edição bilíngüe (português-francês) pela EDUFAL, em comemoração ao Ano da França no Brasil. Trata-se de crítica literária ao romance Crônica da Casa Assassinada, de Lúcio Cardoso.
Editado em 1959, o romance aborda a decadência da aristocracia rural provocada crise do café em Minas Gerais, nas primeiras décadas do século XX. Um clássico da literatura, ainda desconhecido de boa parte dos leitores brasileiros.
A Autora mergulha no universo cardosiano para analisar a decadência de um estilo de vida que não conseguiu sobreviver às profundas mudanças no cenário econômico do Brasil. A trama do romance gira em torno da tradicional Família Meneses, que resiste às mudanças de valores sem se dar conta de sua impotência diante de uma nova era que destruirá para sempre o modelo patriarcal e endurecido pela rigidez de costumes que imperava nos latifúndios brasileiros.
Acontece que o inflexível sistema moral – aparentemente sólido e inquebrantável – alimentava-se de hipocrisia, remorsos, auto-exílio e suicídio. Um modelo preso a convenções irracionais, em que não há espaço para felicidade e o amor. O pior é que os membros da família, imersos em frustrações, nem percebem a putrefação de seu universo, que está prestes a desmoronar.
Nesse aspecto, a obra da professora Enaura Quixabeira desenvolve uma interessante análise sociológica sobre os fatores que provocaram a estagnação do regime semi-feudal que imperou no Brasil até 1930, época em que o poder concentrava-se nas mãos dos senhores de engenho e dos barões do café.
Os Meneses são o arquétipo de tantas outras famílias aristocráticas brasileiras que só concebem o país como produtor de matéria-prima, uma elite que se recusa a adaptar-se aos tempos de progresso e de desenvolvimento. Famílias que não conseguiram perceber as mudanças decorrentes do fim da mão-de-obra escrava, da chegada dos imigrantes, da mecanização agrícola, da migração para os centros urbanos e da crescente industrialização do país.
Os primeiros sinais do declínio podem ser percebidos pelo mobiliário. A chácara era velha, com muitos cômodos vazios e descuidados. Nota-se que a mobília, importada da Europa, estava descuidada e imprestável. Um grande espelho trincado de lado a lado, paredes descascadas, janelas que não se abriam, telhas tombadas são alguns sinais do isolamento e segregação social de seus habitantes.
A decadência também é retratada por uma sucessão de personagens que corporificam a desintegração familiar. Demétrio – a representação do patriarca – invariavelmente usava roupas antigas, conservadoras, completamente fora dos padrões das primeiras décadas do Século XX.
Os ricos fazendeiros recusavam-se afastar-se das tradições para aderir a modismos burgueses, de gosto questionável. A resistência é uma tentativa desesperada de preservar estruturas corroídas, profundamente ameaçadas pelas forças sociais transformadoras. Aderir à nova ordem significa pôr fim às estruturas sólidas que vicejaram por vários séculos no Brasil. E isso eles não admitirão jamais.
A personagem, Valdo, também se veste com esmero, apuro e espalhafato. Seus ternos e gravatas são bem cortados, vistosos, mas fora de moda. Incorpora – ainda que intuitivamente – o dandismo europeu com todas as suas extravagâncias visuais e a certeza da inexorável decadência, diante do avanço da democracia e do processo de estandardização do vestuário.
Outra personagem paradigmática é Ana, mulher torturada pela solidão e pelo medo de entregar-se ao amor, incapaz de transgredir as regras e viver um romance proibido. Mulher ensimesmada, atormentada pelo pecado, completamente voltada para o universo familiar. Transforma-se numa espécie de guardiã dos costumes, adotando postura hipócrita e dissimulada. A frustração reflete-se em suas vestes, um indefectível vestido preto, desbotado, austero. Seus sapatos, velhos e surrados, mostram o total alheamento às tendências da moda. É uma pessoa descontextualizada, estranha à sua época. Adota uma postura conservadora de defesa das tradições aristocráticas e se mostra refratária a toda tentativa de transformação do modus vivendi da família. Por isso vê a moda como uma ameaça ao frágil equilíbrio daquele modelo ultrapassado, que insistia em sobreviver num mundo em constantes transformações.
Nina representa a chegada da modernidade naquele ambiente esclerosado e decadente. Sua indumentária alegre, colorida e sensual, contrastava com o clima severo que dominava a mansão dos Meneses. A indumentária era um convite à subversão da ordem familiar. O gosto por vestidos decotados, leves, vaporosos era uma forma de desafiar a monocromia dos salões senhoriais – o último bastião de uma estrutura social prestes a desmoronar. No fundo a personagem tentava mostrar ser possível romper com o passado e enfrentar os desafios que o novo século impunha.
Mas as resistências às mudanças de paradigma estavam tão arraigadas entre os Meneses, que Nina terminou afogada pelo preconceito, pela intolerância e pelo imobilismo. Sua presença não foi capaz de mudar os velhs hábitos. Os chapéus coloridos, os decotes, os acessórios vistosos, as capas, tudo evocava o frescor de um novo mundo que se descortinava. Mas era inútil. Assim como a modernidade fora afastada para sempre dos aposentos senhoriais , Nina também sucumbiu a uma doença que destruiu os seus sonhos, degradou a alma e apodreceu lentamente o corpo. A sua morte também foi o último passo para a decadência e a ruína da família.
Por fim, a imagem da decadência é representada por um obeso barão. Flácido, completamente dominado pela gula desmedida, uma verdadeira representação da ociosidade em detrimento do trabalho e do progresso da nação. Um simbolismo ao agonizante baronato rural, completamente incapaz de conduzir o Brasil a caminho da modernidade.
Mais do que uma crítica literária, Do Traje ao Ultraje é uma obra de grande densidade científica, que nos faz refletir sobre importante período da História do Brasil. O texto é límpido, de fácil compreensão, dispensando a leitura da Crônica da Casa Assassinada. As teses defendidas pela autora encontram eco em grandes sociólogos franceses como Baudrillaard e Fromilhage. A obra é fruto de profunda pesquisa realizada na Universidade de Grenoble, onde a autora obteve o Doutoramento em Letras.
O vestuário é a armadura do homem. Oscar Wilde afirmava, com fina ironia, que “a moda é o que vestimos. Démodé é o que vestem os outros”. Mas uma coisa é certa: ela pode revelar os nossos segredos mais profundos, o jardim secreto de nossas almas. É o que diz o verso do cancioneiro popular Zeca Baleiro: "quando o homem inventou a roda, logo Deus inventou o freio. Um dia um feio inventou a moda, e toda a roda amou o feio". Tenho certeza que Du Vêtu au Dévetu ocupará espaço privilegiado na literatura brasileira, como referência obrigatória para todos que desejarem desvendar a essência da natureza humana a partir de símbolos e arquétipos de estilos de vida.

sábado, 5 de setembro de 2009

CHALITA-BERARD: A EXPOSIÇÃO DO ANO





A ALIANÇA FRANCESA DE MACEIÓ apresenta a exposição CHALITA-BERARD, que reunirá as principais obras de dois ícones da pintura: Pierre Chalita e Daniel Berard. São cerca de 40 quadros pintados entre os séculos XIX e XX, reunidos pela primeira vez em Alagoas. A exposição integra as Comemorações do ANO DA FRANÇA e estará aberta para o público entre 23 de setembro a 22 de novembro, na Fundação Chalita, bairro de Jaraguá. A entrada é gratuita. Compartilho com vocês a APRESENTAÇÃO que redigi para o evento.


Durante o Segundo Reinado, D. Pedro II engaja-se no projeto de fortalecimento da identidade nacional, estimulando historiadores, pintores e músicos a retratar o país em toda sua diversidade cultural. Entre iniciativas oficiais, está o Prêmio Viagem, instituído pelo Imperador para financiar o pensionato no exterior de artistas talentosos durante o período de três anos. A idéia era dar continuidade ao trabalho desenvolvido pela Missão Francesa de 1816 na construção do sentimento de brasilidade.
Daniel Bérard foi um dos bolsistas escolhidos para estudar na Europa, ao lado de pintores como Almeida Júnior e Vitor Meireles. Nascido em 1846, o jovem Bérard muda-se para a França em 1873, onde estuda em Avignon, Marseille e Paris. Com a pensão de 300 francos, destaca-se como aluno aplicadíssimo e vocacionado, que participa ativamente de diversas exposições em importantes cidades européias. De volta ao Brasil, envolve-se em vários projetos culturais e exerce o magistério na cátedra de desenho. Em 1896, expõe no Salão Nacional de Belas Artes, obtendo o reconhecimento do público e da crítica especializada. Sua pintura ficou marcada pelo simbolismo alegórico e pela habilidade de retratista.
Pierre Chalita nasceu em 1930 e pinta desde a adolescência. Aos 28 anos de idade muda-se para Paris, onde estuda na Escola Superior de Belas Artes e exerce o ofício de pintor. De volta ao Brasil, assume o cargo de professor de pintura e técnica de composição artística da UFPE e UFAL. Participa da exposição Surrealistas Brasileiros e expõe suas telas em mostras individuais e coletivas no exterior (Madri, Roma, Viena, Barcelona e Paris). Detentor de estilo próprio e inconfundível, Chalita não se filia a nenhum movimento artístico. As referências estéticas e psicológicas que o acompanham buscam captar a condição humana em um mundo cheio de contradições e perplexidades.
CHALITA-BÉRARD é o encontro entre dois grandes artistas que se destacam pela originalidade e simbolismo de suas obras. A exposição reúne os quadros mais representativos, pintados sob a influência de grandes mestres da pintura européia como Henri Lehmann, Gustave Jacques e Chapelain-Mydi. São gerações que se entrecruzam numa mostra histórica e inusitada, coroando as comemorações do Ano da França no Brasil.

GEORGE SARMENTO
Diretor da Aliança Francesa


sexta-feira, 4 de setembro de 2009

A TESTEMUNHA NA HISTÓRIA E NO DIREITO


GEORGE SARMENTO

Acontecerá, no próximo dia 30 de setembro, no Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, o lançamento do livro A TESTEMUNHA NA HISTÓRIA E NO DIREITO, de Jayme de Altavila. A primeira edição surgiu em 1967 e é a única obra do gênero publicada no país. A iniciativa da EDUFAL de reeditá-la e incluí-la na importante Coleção Nordestina é uma demonstração de comprometimento com a memória dos grandes autores do passado, que honraram Alagoas com clássicos da História, Sociologia e Direito. Tive a honra de ser escolhido para fazer sua APRESENTAÇÃO, cujo texto quero compartilhar com vocês.


A reconstituição da verdade no processo judicial é um dos temas mais caros ao Direito. Sobre ele se debruçaram os filósofos e juristas mais renomados de todos os tempos. Sua importância é indiscutível, pois o procedimento justo e equitativo pressupõe o esclarecimento de fatos controversos, dos quais dependem a vida, a liberdade e o patrimônio dos envolvidos no litígio. Ainda hoje, com todos os avanços científicos e tecnológicos, a busca da verdade ainda é o maior desafio da jurisdição civil e penal de todos os países democráticos.
Nos sistemas jurídicos contemporâneos, os principais meios de prova são: documental, pericial e testemunhal. A prova testemunhal é a mais problemática e a menos confiável. O magistrado deve ser prudente na análise dos depoimentos produzidos no processo para evitar que a mentira prevaleça sobre a verdade, conspurcando a sua percepção cognitiva dos fatos investigados. Além disso, ele tem de lidar com imprecisões, análises distorcidas, equívocos e, até mesmo, interesses espúrios.
A História do Direito mostra que as civilizações tiveram grande preocupação com a testemunha. Por muitos séculos, este foi o principal meio de prova adotado nos processos judiciais. Manuscritos antigos e obras milenares como a Bíblia e o Código de Hamurabi são a prova de que todos os povos faziam uso desse recurso para buscar a verdade e defender as suas pretensões diante de soberanos, conselhos e tribunais.
A Testemunha na História e no Direito resgata o legado deixado pelo tempo e traça a linha evolutiva da prova nos principais sistemas jurídicos. O texto toma a Antiguidade como ponto de partida para analisar o papel da testemunha no Egito, Mesopotâmia, Israel, Índia, Grécia e Roma. Prossegue com o estudo do direito medieval, destacando a grande contribuição das ordenações portuguesas para o aprimoramento do direito processual. Também situa o tema no Direito Canônico, no Código Napoleônico e no Código de Bustamante. Por fim, disseca o regime de provas testemunhais adotado pela legislação brasileira, apontando os principais avanços e distorções.
Embora tenha sido publicada em 1967, a obra ainda é fonte obrigatória de consulta para todos que pretendam compreender a peregrinação da humanidade em sua luta pela justiça como instrumento de combate ao arbítrio e ao despotismo, ainda tão presentes nas relações intersubjetivas. Com linguagem simples e objetiva, o texto conduz o leitor pelos tortuosos caminhos trilhados pelo direito até a concepção de métodos seguros de avaliação da prova testemunhal no processo.
O autor, Jayme de Altavila, nasceu em 1895 e escreveu Origem dos Direitos dos Povos, um clássico do gênero que é adotado em diversos cursos de Direito no país. Foi um dos fundadores da Faculdade de Direito de Alagoas, hoje integrada à Universidade Federal de Alagoas. Doutor em Direito, ocupou importantes cargos no Ministério Público e na magistratura federal. Teve destacada participação política, exercendo os mandatos de deputado estadual, deputado federal e prefeito de Maceió.
A reedição de A Testemunha na História e no Direito supre importante lacuna na literatura jurídica, assegurando a estudantes, advogados e integrantes de carreiras jurídicas o acesso ao pensamento dos grandes juristas que lutaram corajosamente para que a atividade judiciária se transformasse num vetor de pacificação social e de promoção dos direitos fundamentais.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

ENTREVISTA IMAGINÁRIA COM OSCAR WILDE


GEORGE SARMENTO

Desembarco na Londres vitoriana sob o denso fog que envolve a cidade. As ruas estreitas estão vaporosas, lúgubres e cobertas de neblina. Homens elegantes de fraque e cartola passam indiferentes pelas calçadas com suas bengalas de cabo em madrepérola.
Aquela noite fria era um convite ao mistério e à sedução. Nada melhor do que entrevistar um dos maiores gênios da literatura inglesa: Oscar Wilde. Nosso encontro imaginário estava marcado para um pub perto do Convent Garden, frequentado por notórios dandys, intelectuais atormentados e vedetes do teatro de revista. O assunto não poderia ser outro: o futuro do casamento na sociedade moderna.
O autor de O Retrato de Dorian Gray está sentado numa confortável poltrona de couro, bebe uma dose de gin com água tônica e observa atentamente as comédia humana que se desenrola ao seu redor. É um crítico impiedoso da sociedade londrina do século XIX. Fiz questão de preparar-lhe uma entrevista no modelo ping-pong:
1. Pergunta - O homem pode ser feliz no casamento?
Resposta - As mulheres estragam qualquer caso de amor com o seu desejo de perpetuá-lo eternamente. Que desgraça para o homem, o casamento! Ele o escraviza tanto quanto os cigarros, e custa muito mais. A base lógica do casamento é o recíproco mal-entendido.
2. Pergunta: Os homens sonham em encontrar o verdadeiro amor de suas vidas?
Reposta: Os homens sempre desejam ser o primeiro amor de uma mulher; este é o efeito de sua insensata vaidade. As mulheres têm um instinto mais sutil. Elas desejam ser o último amor de um homem.
3. Pergunta: O que faz a mulher quando sente que o amor do marido começa a esfriar?
Resposta: Quando a mulher percebe que já não é o objeto das atenções do marido, ou se esquece de qualquer elegância, ou ostenta chapéus extremamente elegantes, pagos pelo marido da outra.
4. Pergunta: Para viver um grande amor é preciso ter muito dinheiro para gastar com o objeto do desejo?
Resposta: Só há uma classe social que aprecia o dinheiro mais do que os ricos: os pobres. O pobre não pode pensar em outra coisa. Aí está a tristeza de ser pobre.
5. Pergunta: O que o senhor acha da fidelidade conjugal?
Resposta: A fidelidade é para a vida sentimental o que a coerência é para a vida do espírito: uma pura confissão de incapacidade. Eis o paradoxo: os jovens gostariam de ser fiéis e não podem sê-lo; os velhos gostariam deser infiéis e não conseguem; não há mais nada a dizer.
6. Pergunta: Quer dizer que a infidelidade é algo positivo na vida contemporânea?
Resposta: Os amantes fiéis só conhecem o lado trivial do amor; as tragédias do amor são privilégios dos amantes infiéis.
7. Pergunta: Como você escolhe os seus amigos?
Resposta: Escolho meus amigos pela beleza, os meus conhecidos pela respeitabilidade e meus inimigos pela inteligência. Para mim a beleza é o milagre dos milagres. Somente os seres superficiais não julgam pela aparência. O verdadeiro mistério do mundo é o visível e não o invisível.
8. Pergunta: Você tem medo da velhice?
Resposta: Para recuperarmos a juventude só precisamos repetir as nossas loucuras do passado. E mais: a tragédia da velhice consiste não no fato de sermos velhos, mas sim no fato de ainda nos sentirmos jovens. Nunca digam que esgotaram a vida. Quando um homem diz uma coisa dessas sabemos que foi a vida a esgotá-lo.
9. Pergunta: O que deve fazer um homem virtuoso para livrar-se das tentações femininas?
Resposta: Não há outro jeito de livrar-se de uma tentação a não ser sucumbindo a ela. Se você resistir, a sua alma adoecerá desejando aquelas coisas que lhe foram negadas. Podemos resistir a tudo exceto às tentações.
10. Pergunta: É melhor estar apaixonado ou casado?
Resposta: Deveríamos estar continuamente apaixonados. É por isso que nunca deveríamos nos casar.
11. Pergunta: O senhor costuma perguntar a idade das mulheres?
Resposta: Desconfiem da mulher que confessa sua verdadeira idade. Uma mulher que diz isso, poderá dizer qualquer coisa.
12. Pergunta: O senhor compreende a alma feminina?
Resposta: As mulheres foram feitas para serem amadas, e não para serem compreendidas.
13. Como conviver com a culpa?
Resposta: A vida é curta demais para que possamos carregar nas costas os sofrimentos dos outros. Cada um vive a sua vida e paga o seu preço. O que dói é que devemos pagar muitas vezes até mesmo por um só erro. De fato, pagamos as nossas culpas inúmeras vezes. No seu relacionamento com o homem o destino nunca fecha as contas.
14. O ciúme é um sentimento devastador para as mulheres?
Resposta: As mulheres feias sempre são ciumentas dos maridos; as bonitas, nunca! Não têm tempo para isso. Estão preocupadas demais com o ciúme dos maridos das outras. A dúvida e a desconfiança transformam afeição em paixão, dando origem àquelas lindas tragédias que tornam a vida linda de ser vivida. Houve uma época em que as mulheres percebiam essa verdade e os homens não, e foi então que as mulheres dominaram o mundo.
15. Pergunta: O senhor tem medo de tornar-se obsoleto?
Resposta: O maior perigo de todos é sermos excessivamente modernos. Corremos o risco de ficarmos repetinamente fora de moda.

Nota biográfica: Oscar Wilde nasceu na na cidade de Dublin em 1864. Muito jovem foi morar em Londres, onde despontou como um dos maiores escritores de língua inglesa. Fez grande sucesso como teatrólogo, contista, cronista e romancista. Proferiu conferências nos Estados Unidos sobre o dandismo, movimento estético do qual era o principal representante. Adepto da vida mundana e extravagante, escandalizou os salões londrinos pela postura libertina e irreverente. Sua fama começa a decair a partir do escandaloso romance com Lorde Alfred Douglas, que acabou lhe rendendo condenação a dois anos de trabalhos forçados. Morre em Paris completamente arruinado no ano de 1900. Está enterrado no famoso cemitério Père Lachaise, sendo visitado diariamente por legiões de fãs de todo o mundo.
Bibliografia: As respostas de Oscar Wilde foram extraídas do livro Aforismos. Clássicos Econômicos Newton, Rio de Janeiro, 1995.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

MURRO EM PONTA DE FACA

GEORGE SARMENTO
Há um ditado popular que detesto: “não se deve dar murro em ponta de faca”.
Muitas pessoas se jactam em defender essa visão derrotista como verdade absoluta. No fundo, querem mesmo é justificar sua postura resignada e passiva diante dos desafios da vida.
A humanidade está dividida em duas categorias: os céticos e os sonhadores.
Os céticos acreditam na imutabilidade das coisas, na inutilidade das ideologias, na irrelevância dos sonhos. Detestam correr riscos. Estão mais preocupados em preservar as suas zonas de conforto do que em se arriscar a perder os espaços já conquistados. São mariposas sociais, que gravitam em torno de quem tem o poder. Mas não se enganem: quando a luz apagar, batem asas e, rapidinho, procuram outro ponto luminoso.
Os sonhadores são guiados por uma luz interior fortíssima que os faz acreditar nas utopias, nas transformações sociais, na possibilidade de ser feliz. Não se deixam vencer pelo pessimismo, pelo desencanto ou pela apatia. Estão à frente de seu tempo e, muitas vezes, são incompreendidos, marginalizados ou ridicularizados pelos "idiotas da objetividade", para usar a expressão de Nelson Rodrigues.
Mas o que seria de nós se Ícaro fosse um cético? Se Thomas Edison se conformasse com a escuridão? Imaginem se os irmãos Lumière tivessem desistido de captar as imagens em tempo real! E se Pasteur pensasse que os germes eram invencíveis? Mas havia entre eles uma coisa em comum: coragem de ensanguentar as mãos nas facas da ignorância e do obscurantismo.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

HISTÓRIAS QUE COLHI NAS RUAS - EPISÓDIO II


O HOMEM QUE CORTOU A CABEÇA DO PAPA

GEORGESARMENTO

Quem vai a Roma quer ver o Papa. Maria Laura queria mais. Muito mais. Não se satisfaria em contemplar o Sumo Pontífice como uma simples anônima, perdida entre os peregrinos que lotavam a Praça São Pedro sob o sol a pino daquela manhã de verão. Pretendia vê-lo de perto, se possível tocar-lhe a túnica.
Estava envolvida nesses pensamentos, quando se depara com uma freirinha de hábitos simples e olhar suave. Conversa vai, conversa vem, descobre que a religiosa trabalhava no Vaticano e gozava certo prestígio junto ao cerimonial. Confessou-lhe ardentemente o desejo de estar perto de Bento XVI, de receber a sua santa benção.
A freirinha comoveu-se. Raramente vira tamanha determinação, tamanho ardor católico. Piscou os olhos e pediu-lhe que esperasse um pouco. Iria interceder por ela. A passos lentos, entrou em uma das dependências do Vaticano, voltando momentos depois com dois convites para a cerimônia de ordenação de bispos de várias nacionalidades, que aconteceria em poucas horas.
Guardou os ingressos como quem protege um bilhete premiado da megasena. Já se imaginava no Brasil contando a proeza para suas amigas. Voltou ao hotel, recarregou a bateria da máquina fotográfica, apagou da memória todas as fotos turísticas, escolheu a roupa que iria usar na ocasião e deitou-se um pouco para relaxar. Nada podia falhar.
Foi uma das primeiras a chegar e conseguiu um lugar privilegiado: a passarela coberta por um luxuoso tapete vermelho. Não havia dúvidas: o Papa passaria por ali antes da pregação. Na hora prevista, Bento XVI aparece seguido por um séquito de cardeais. Ela entrega a câmera ao marido e lhe pede que não economize fotos. Quanto mais, melhor – enfatizou.
Sob os aplausos dos fiéis, o Papa cruzou a passarela, portando uma vistosa batina branca, láctea, engomadíssima. Estacou diante de Maria Laura, olhou para ela e fez o sinal da cruz. Contrita, ela olhou para câmera enquanto marido tirava várias fotos. Bento XVI dirigiu-se o palanque, onde o aguardava uma imponente poltrona e as páginas do sermão que seria lido em poucos instantes.
Sem conter a curiosidade, Maria Laura pede para conferir as fotos. Olha a câmera e fica lívida. Esboça uma expressão de espanto e de decepção. De fato ela saíra nas fotos. Mas onde deveria estar a imagem de Sua Santidade, o que se via era um fundo branco e as mãos alvíssimas do Pontífice. Nada mais.
– E o Papa, aonde você enfiou o Papa? Perguntava colérica, ainda sem acreditar no que aconteceu.
– Está aí, atrás de você... Balbuciou o marido, sem saber bem o que tinha acontecido.
­– Veja com os seus próprios olhos. Apenas um pano branco. Eu quero ver o Papa, me mostra o Papa!
– É mesmo...
– Você decepou a cabeça do Papa!
–Estragou tudo! Estragou tudo, repetia aos prantos.
­A verdade é que o marido manipulara mal o zoom da câmera e simplesmente não conseguira capturar a foto do Sumo Pontífice, abençoando sua esposa. Diante do irreversível, não perdeu o élan. Apresentou a idéia salvadora:
– Ele vai voltar pela passarela. Não se preocupe que dessa vez não erro o alvo.
Terminada a cerimônia, um oficial da Guarda Suíça anunciou que, por razões de segurança, o Papa sairia por uma porta contígua ao altar. A solenidade terminou sem que o marido pudesse redimir-se do erro cometido. Mas a criatividade do brasileiro não tem limites:
– Fique tranqüila, querida. Quando chegarmos ao Brasil, capturarei a cabeça do Papa na internet e colo na foto. Faço uma montagem. Ninguém vai notar.
Embora destroçado pela falha técnica, manteve a fleuma até o fim da viagem e não tocou mais no assunto.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

FREVINHO IRREVERENTE

Ajoelhou,
Tem que rezar!
Agora é tarde
Não adianta reclamar!

Oh! que coisa boa...
Tudo é carnaval!
Você é a chapeuzinho
E eu sou o lobo mau!

domingo, 2 de agosto de 2009

HISTÓRIAS QUE COLHI NAS RUAS - EPISÓDIO I


O GOLPE DO BAÚ
GEORGE SARMENTO

Olavo era um solteirão convicto. Daqueles que farejam uma enrascada a quilômetros de distância. Ao longo da vida fugira de todas as armadilhas para resgatá-lo do cômodo celibato. As moças casadoiras até que insistiram. Mas ele se mostrava inflexível às tentações carnais e ao sonho de constituir família. Chegou aos 65 anos da maneira com que havia sonhado: uma excelente aposentadoria, saúde de ferro e sem as cotidianas preocupações domésticas.
Encontrávamos com certa frequencia no Hiper Bompreço. Quase sempre ele estava na cafeteria, discutindo alegremente com os seus companheiros de “senadinho”, vocábulo aqui usado para descrever os grupos de aposentados que se reúnem diariamente em lugares estratégicos – bancas de revistas ou shoppings centers – para relembrar o passado, falar da vida alheia ou comentar as notícias do dia.
Adorava cortejar vendedoras das lojas e lanchonetes, sem jamais se deixar seduzir pelos encantos femininos ou assumir compromisso mais duradouro. Diante da mais leve ameaça de romper com sua solteirice, já pulava fora sem dar maiores explicações. Em nossas conversas, e foram muitas, ele descrevia deliciosamente os estratagemas utilizados para se safar dos compromissos matrimoniais, velados ou escancarados.
Certo dia encontro o Olavo um pouco acabrunhado, como quem está prestes a tomar uma importante decisão. Ele palitava os dentes e tinha um olhar perdido. Seu café estava frio e intocado. Perguntei o que tinha ocorrido. Ele não se fez de rogado. Pigarreou, aproximou-se do meu rosto e sussurrou:
– Rapaz, estou apaixonado! Agora sim, encontrei o amor da minha vida. Valeu a pena esperar tanto tempo. Ela é linda: 25 anos, evangélica, extremamente recatada. Fidelíssima! Moça do interior... Não cansa de dizer que me ama, que viverá sempre ao meu lado. É benzinho para cá, amorzinho para lá... Você precisa ver!
Parabenizei-o calorosamente e desejei muitas felicidades para o casal. Ele prometeu que me enviaria o convite de casamento.
Meses depois encontro o Olavo, muito alegre e sorridente ao lado dos correligionários de senado. Abro os braços e pergunto:
– Cadê o convite? Esqueceu dos amigos ou não quer gastar dinheiro com a festança?
Ele me pegou pelo braço, levou-se a um canto e respondeu:
– Que casamento, George? Eu ia caindo numa esparrela. Saí a tempo. Seu eu não fosse arisco como um sibite estaria hoje nas mãos daquela vigarista.
– Mas você não tinha me dito que finalmente descobrira o verdadeiro amor? Que sua noiva era um poço de virtudes?
– Você não sabe o que aconteceu... Depois de várias semanas de felicidade, decidi ir à Taquarana conhecer a família da moça. Chegamos à casa de uma irmã, que me olhou com desdém, deixando bem claro o desprezo que sentia por mim. Conversamos um pouco na sala e a anfitriã fazia questão de me ignorar. Sob o pretexto de coar um café, a dona da casa chamou-a para conversar na cozinha. Meio desconfiado, levantei-me do sofá e, pé ante pé, encostei o ouvido na parede para escutar o que elas tramavam.
Olhou fixamente para mim, com os olhos injetados de sangue, a boca levemente trêmula de emoção:
- A megera perguntou à minha bela noivinha (senti um toque de ironia em sua voz) por que ela, tão bonita e jovem, havia arrumado um velho como eu, que mal se segurava em pé. Sabe o que ela respondeu? “você fez tudo certinho e hoje é uma pobretona. O que adiantou casar por amor? Eu sou mais esperta. Darei o golpe do baú. O coroa tem uma aposentadoria de 18 mil reais! Sabe o que é isso? Terei dois filhos com ele, depois lhe dou um belo chute na bunda e, ainda por cima, embolsarei uma gorda pensão alimentícia para o resto da vida!"
– E o que você fez após essa trágica descoberta?
– Nada. Dei meia volta, abri a porta sem fazer barulho e ganhei o mundo. Entrei no carro e parti sem olhar para trás. Nunca mais encontrei aquela dissimulada.
Ainda emocionado abraçou-me calororamente e disse:
– Depois dessa, quem falar em casamento na minha frente vira inimigo.
E voltou à sessão do "senadinho" mais solteiro do que nunca.

Foto: http://3.bp.blogspot.com/_ncSSGv4MaLQ/SP

segunda-feira, 27 de julho de 2009

FLORIANÓPOLIS E A CRISE DE IDENTIDADE


GEORGE SARMENTO

Há pessoas que se sentem tão incomodadas com seus nomes de batismo que ficam loucas para se livrar deles o mais rápido possível. O problema é que a legislação brasileira só autoriza a modificação do prenome quando há erro de grafia ou exposição ao ridículo. Os cartórios de registro estão cheios de averbações bizarras como Manoel Sola de Sá Pato, Dosolina Piroca, Joaquim Pinto Molhadinho, Otávio Bunda Seca, José Xixi e Vivelinda Cabrita. Sem falar em prenomes como Venério, Bucetildes, Waldisnney, Libertino e por aí vai. A lista é tão grande quanto à criatividade do nosso povo.

Estou convencido de que a empatia entre nome e usuário é um dos elementos mais importantes para a auto-estima. Como promotor de justiça atuei em muitas ações de retificação envolvendo homens e mulheres insatisfeitos com seus prenomes. Lembro-me da alegria de Lúcio, um travesti de Marechal Deodoro que se submeteu à cirurgia de mudança de sexo numa clínica marroquina e passou a chamar-se Lucileide. E da tristeza de Stephanie, que simplesmente detestava ser chamada assim, embora fosse xará de uma das mais belas e sedutoras princesas de Mônaco. O indeferimento do juiz condenou-a a suportar enternamente o companheiro indesejável.

Estava pensando nessas coisas quando desembarquei em Florianópolis para participar de uma banca examinadora no doutorado da UFSC. Já havia notado um certo desconforto dos moradores em considerar o Marechal Floriano Peixoto um ícone da cidade. No principal museu não há qualquer homenagem ao ilustre alagoano, tampouco exaltação dos seus feitos na Guerra do Paraguai ou à frente da Presidência da República. As placas nas ruas, as estampas das camisetas, os textos publicitários, os jornais, em tudo se percebe claramente a preferência pelo vocábulo Floripa.

Qual a razão de tanta resistência? Realmente, o sufixo polis unido ao nome próprio denota apropriação, posse, controle. Cidade de Floriano, talvez soe presunçoso. Mas não é essa a razão. Senão os moradores de Petrópolis, Tiradentes e João Pessoa teriam a mesma reação. Após perfunctórias investigações, uma perguntinha aqui outra ali, descobri que o velho marechal não é uma figura muito popular por essas bandas. Não pelo fato de ser alagoano, mas pelas atrocidades que lhe são atribuídas. Os mais exaltados o chamam de sanguinário e tirano. Alguns chegam mesmo a propor a mudança de nome da cidade.

Santa Catarina foi palco da Revolução Federalista, movimento político encabeçado por setores conservadores da aristocracia rural, interessados em manter privilégios herdados da monarquia. A revolta começou em 1893 e tinha natureza separatista. Redundou na criação do Estado de Santa Catarina - país livre e independente do restante do Brasil. Os golpistas eram extremamente violentos e disseminavam o terror entre a população. Coube a Floriano Peixoto a difícil tarefa de consolidar a república recém-criada, mesmo que, para isso, tivesse de enfrentar os dissabores de uma guerra fraticida.

Designou o coronel Moreira Cesar para sufocar a revolta e restabelecer a ordem constitucional. Depois de algumas batalhas, as tropas legalistas romperam o cerco e se instalaram na ilha de Nossa Senhora do Desterro. Foi aí que começou o ajuste de contas, com a execução sumária dos líderes revoltosos, entre eles grandes proprietários de terra, políticos, militares e banqueiros. O Corta Cabeças, como ficou conhecido o coronel, foi o responsável pelo fuzilamento de mais de 300 pessoas sem clemência ou julgamento por um tribunal. A atuação do sanguinário militar em terras catarinenses desgastou a imagem de Floriano Peixoto, que passou a ser estigmatizado como um cruel ditador.

Afinal, quem é esse emblemático personagem da História do Brasil? Eu tinha meus 5 ou 6 anos de idade quando meus pais compraram um pequeno lote na praia de Ipioca. Os filhos puseram roupa nova para conhecer a nova "propriedade", com direito a retrato e tudo. Foi um grande acontecimento familiar. Lembro-me perfeitamente quando o meu pai apontou para o alto do morro e disse: "Ali nasceu Floriano Peixoto, o segundo presidente do Brasil". Sempre que posso visito o local, um mirante de onde se tem uma vista paradisíaca do mar e de seus extensos coqueirais, ainda não devastados pela especulação imobiliária. Do marechal, resta apenas uma modesta placa indicativa do acontecimento natalício. Nada mais.

Floriano Peixoto nasceu em uma família muito pobre e foi criado por seu padrinho, um modesto fazendeiro alagoano. Logo cedo mudou-se para o Rio de Janeiro, onde foi brilhante aluno da Escola Militar. Teve notável participação na Guerra do Paraguai, tomando parte de missões arriscadas que exigiam muita disciplina e coragem pessoal. Com a renúncia de Deodoro da Fonseca, assumiu a presidência da república e foi obrigado a enfrentar vários levantes nas Forças Armadas contra o governo. Agiu com energia e saiu vitorioso. Morreu aos 52 anos de idade, de complicações digestivas adquiridas nos campos de batalha.

A verdade é que o Marechal de Ferro foi um dos grandes responsáveis pela unidade nacional num momento em que o Brasil estava ameaçado de se esfacelar em várias repúblicas, seguindo o legado espanhol na América do Sul. Os seus métodos de ação foram controvertidos e, muitas vezes, violentos. Mas ninguém pode negar que a força de seu patriotismo foi decisiva para proteger o país das elites retrógradas, muito mais interessadas na manutenção dos seus privilégios do que em construir uma pátria para todos os brasileiros.

Retorno à Terra dos Marechais sem nenhuma crise de identidade e cada vez mais orgulhoso de ter nascido alagoano.

sábado, 25 de julho de 2009

FATOS E EVENTOS

GEORGE SARMENTO
Aprendi com Pontes de Miranda que a vida é uma sucessão de fatos e eventos que se desenvolvem na dimensão tempo-espaço. Essa definição tem tudo a ver com um aquariano que insiste em ser utópico e está sempre envolvido com novos projetos, muitos dos quais jamais serão realizados. Alguns dizem que sou desligado, esquecido, dispersivo, sonhador. Será? O que pode parecer insensato para uns, é super normal para outros. O que detesto mesmo é a rotina inflexível, a monotonia da repetição, a previsibilidade de atitudes. Além do mais há uma certa coerência no caos.
Você pode estar no epicentro dos acontecimentos ou simplesmente ser testemunha deles. Pode escolher entre ser protagonista ou coadjuvante de sua própria vida. A decisão é sua. Quando Rousseau fugiu do internato, livrou-se do autoritarismo e de toda opressão que imperava naquele ambiente inóspito. Ao tomar a decisão, não tinha dinheiro, abrigo ou qualquer perspectiva de estabilidade. Era apenas um adolescente ousado. Mesmo assim sentiu o coração pleno de felicidade. Descobrira o mais precioso de todos os direitos: a liberdade. Mais tarde descreveu em suas Confissões o prazer que sentira naquele momento, com uma bela frase: "Pour la première fois dans ma vie j'étais libre e maître de moi même" (pela primeira vez em minha vida eu era livre e senhor de mim mesmo). Demais, não? E pensar que tantas pessoas vivem sob o jugo financeiro ou emocional de outras, sem jamais sentir o sabor da liberdade...
Acho bem legal quando várias coisas acontecem ao mesmo tempo. A gente sente a vida pulsar, sai do marasmo, da mesmice, da estagnação. A vida é movimento, ação, múltiplos interesses. Muitos acreditam que, quando um rio caudaloso se divide em vários afluentes, perde a força e pode, até mesmo, transformar-se num prosáico regato. Quando se trata da condução da locomotiva da vida, quanto mais caminhos trilharmos mais fortes ficaremos, tanto física como espiritualmente.
Os esotéricos juram de pés juntos que estamos na Era de Aquário. Se é verdade, todos devem absorver por osmose algumas características desse signo. Imaginem um mundo povoado apenas por aquarianos, estranhos seres que vivem no futuro e tentam tocar as nuvens com a ponta dos dedos! Garanto que algumas coisas até seriam boas: não teríamos inveja, não guardaríamos rancores, não alimentaríamos ódio no coração, saberíamos perdoar. Construiríamos uma nova civilização, um mundo harmônico, pleno de amor com compreensão. Vou parar por aqui para não parecer promessa de político em campanha eleitoral.
Andei ausente do blog. Confesso que fui atropelado pelos fatos que se sucederam nos últimos dias numa velocidade alucinante. E a dimensão tempo foi tão curta... Tanta coisa aconteceu – a finalização de um livro a ser lançado na bienal, a candidatura ao Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, a viagem a Florianópolis para participar de banca examinadora na UFSC, o curso para magistrados e servidores da Justiça Federal, a organização do Ano da França no Brasil... Sem contar os dilemas existenciais, que roubam o tempo e consomem muita energia.
Ufa! Foi demais para um aquariano comum, que tem aversão a jornadas de trabalho muito longas. Ainda bem que tenho o Isaac Sandes, amigo que também é um implacável retratista de personagens incomuns, bizarros, folclóricos que povoam o nosso cotidiano. Tenho certeza que os leitores deram boas gargalhadas dos seus deliciosos textos de fina ironia e muito bom humor. Afinal, quem não conhece um valorizador? Ou um canalha? Ou uma foquinha? Na minha ausência Isaac não deixou a peteca cair e manteve o blog animado e interessante.
Agradeço os 1200 acessos e prometo que os próximos dias serão bem divertidos, com muita conversa jogada fora e (es)histórias para contar.
George

sábado, 6 de junho de 2009

DIA DO MEIO AMBIENTE: NÃO PLANTE UMA ÁRVORE, DENUNCIE A OMISSÃO DAS AUTORIDADES

GEORGE SARMENTO

Sexta-feira, 5 de junho de 2009. Alagoas prepara-se para comemorar o Dia do Meio Ambiente. Os principais jornais estampam imagens do governador e do prefeito de Maceió fazendo exatamente a mesma coisa: plantando mudas de árvores sob a mira de fotógrafos e câmeras de televisão. A falta de criatividade traz consigo o entediante sentimento de déjà vu.

Em tempos de indiferença e alienação política, plantar uma árvore é um feito tão revolucionário quanto a derrubada da Bastilha ou a tomada da Sierra Maestra. Se você quiser ser politicamente correto, já sabe o que fazer: passe no IBAMA, pegue uma mudinha, chame um bando de fotógrafos, cave um buraquinho no chão com ar solene e contrito. Coloque-a na vala e, com as mãos nuas, tape tudo. Pronto! Seguramente você vai ocupar um generoso espaço nos meios de comunicação local. Com sorte poderá até mesmo ser comparado a Chico Mendes, Burle Marx ou Lutzemberg, verdadeiros ícones do ecologismo brasileiro.

O movimento ambientalista passa por uma crise sem precedentes. As vozes mais respeitadas são ignoradas ou abafadas pela mídia. Os militantes mais aguerridos são estigmatizados como ecochatos, jurássicos ou bichos-grilo. Tudo fazem para desacreditar aqueles que lutam brava e intransigentemente para que as leis ambientais sejam respeitadas no país. Por outro lado, ONGs controladas por espertalhões e carreiristas recebem generosos recursos públicos para fazer de conta que estão ajudando a construir um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Isso sem falar nos partidos políticos que faturam alto com a retórica ecológica.

No início da década de 90, fui nomeado para o Núcleo de Defesa do Meio Ambiente do Ministério Público. Trabalhar com direito ambiental era algo exótico e completamente estranho aos embates jurídicos. Ao lado dos promotores de justiça Uayrandir Tenório e Sandra Malta, protagonizei a primeira grande ação ambiental de Alagoas. Recebi a denúncia do então presidente do Sindicato dos Químicos de Alagoas, Tácito Yuri, de que operários da ALCLOR tinham ingerido água retirada dos poços da empresa e, horas depois, foram internados com fortes dores e sintomas de intoxicação. Imediatamente iniciamos as investigações e descobrimos que um dos tanques que armazenava resíduos líquidos de organoclorados rompera-se, causando grande poluição no lençol freático do tabuleiro de Marechal Deodoro, podendo atingir a nascente do rio dos remédios e, conseqüentemente, a Lagoa Mundaú. Bastou uma breve análise laboratorial para que soubéssemos que o produto era cancerígeno e poderia ser letal em um simples copo d’água ou em um delicioso prato de sururu.

A população entrou em pânico e, por um bom tempo, deixou de consumir os frutos da lagoa. Agimos com rigor. Todas as denúncias foram apuradas. Enfrentamos seguranças armados quando decidimos entrar à força no local do crime ambiental. Em outra ocasião, quase fui às vias de fato com o presidente da empresa quando tentou desrespeitar a promotora Sandra Prata que tomava o seu depoimento no inquérito civil. Resistimos bravamente às fortíssimas ingerências políticas para nos retirar das investigações. Fomos até o fim e apresentamos os culpados à justiça. A empresa foi obrigada a fechar as suas portas e recebeu uma pesada condenação: cerca de 3 milhões de dólares para despoluir o lençol freático com o usando tecnologia de última geração.

O Caso ALCLOR foi um marco para a luta ambiental em Alagoas. A partir dele a sociedade civil sentiu-se encorajada a denunciar as grandes empresas que, até então, tinham salvo conduto para poluir. Nosso pequeno grupo também atuou em casos de desmatamento, loteamentos clandestinos, queimadas, poluição dos rios e privatização de áreas públicas. Rompemos com a concepção elitista de que a pobreza produz poluição e demonstramos que ela é produto do descaso dos governos com a execução de políticas públicas em áreas vitais como saneamento, habitação e ocupação do solo urbano.

Passados quase 20 anos vejo que pouca coisa mudou. Os problemas crônicos ficaram mais crônicos, sem qualquer perspectiva de solução. Vejam por exemplo o riacho Salgadinho. Um esgoto a céu aberto que corta a cidade de Maceió, passa na porta do Ministério Público e deságua em uma de suas principais praias, deixando atrás de si uma fedentina insuportável. A língua negra tem afugentado turistas e causado grandes prejuízos ao turismo local. Milhares de reais do Governo Federal foram desviados sem que ninguém fosse punido. Não custa nada lembrar o apoteótico banho da prefeita Kátia Born na foz do riacho, numa eloquente demonstração de desrespeito pela opinião pública.

E há outros casos paradigmáticos, como as fraudes na execução da macrodrenagem do Tabuleiro do Martins, o lixão de Maceió, a urbanização da orla lagunar. Agora mesmo os moradores da região norte estão em polvorosa com as licenças concedidas pela Prefeitura de Maceió para a construção de espigões de trinta andares à beira-mar, numa área desprovida de saneamento e urbanização. Além de pagar o IPTU mais caro da cidade, os habitantes são vítimas do total abandono por uma razão muito simples: ousaram contestar a decisão do prefeito de instalar um aterro sanitário a 300 metros da praia! Uma heresia imperdoável.

Os criminosos ambientais agem impunemente em Alagoas. Existe um verdadeiro manto de proteção estatal aos grandes empresários. Há 4 anos, o promotor Maurício Pitta denunciou criminalmente um poderoso usineiro por crime de desmatamento de considerável área da mata atlântica. O réu não foi sequer citado por não ser jamais encontrado em seu domicílio, embora seja visto diariamente circulando, lépido e fagueiro, nos restaurantes mais badalados da cidade sem ser importunado pelos diligentes oficiais de justiça.

O dia do meio ambiente foi marcado por dois episódios bem ilustrativos do péssimo nível do debate ecológico que se trava em nosso país. No plano político, empresários e ruralistas se uniram para pedir a cabeça do ministro Carlos Minc, acusado de atravancar o desenvolvimento brasileiro ao exigir o cumprimento da lei. Os detratores entendem que ele deveria fechar os olhos para a grilagem de terras públicas - talvez ocupar o seu tempo plantando mudinhas por aí. O outro foi a bizarra campanha da SOS Mata Atlântica para economizar a água doce do planeta: fazer xixi durante banho de chuveiro. Abolir a descarga seria a fórmula mágica para acabar com o problema da escassez. Falta inventar mais alguma coisa?

Comemorar o dia do meio ambiente significa romper com as soluções simplistas de nossos governantes e começar a enfrentar os grandes problemas que afetam a qualidade de vida da população. Ao invés de plantar uma mudinha ou sair com um saquinho plástico limpando a praia, devemos exercer corajosamente a cidadania sem nos deixar enganar pela propaganda oficial que procura reduzir a questão ecológica a atitudes simbólicas com o claro objetivo de encobrir o monstro da poluição que emerge do setor industrial. Que tal aproveitar a ocasião para denunciar a omissão do poder público?

sábado, 2 de maio de 2009

COMO TER SUCESSO NA VIDA SEM ABRIR O LIVRO

GEORGE SARMENTO
Chego ao VIII Congresso Nacional de Direito Público para o lançamento de Ética Ambiental, escrito por duas simpáticas professoras que tiveram a gentileza de me convidar para escrever a orelha do livro. Dirijo-me a um animado grupo de juristas brasileiros, ciceroneado pelo procurador da república Marcelo Toledo. A conversa gravitava em torno da variada gastronomia servida nos restaurantes de Maceió. Os visitantes pareciam mais interessados nos apetitosos pratos do Wanchaco, Carne do Sol do Picuí e Bodega do Sertão do que pelos complexos temas jurídicos debatidos no colóquio. E tinham razão.
De repente alguém diz:
– George, a orelha do livro está muito bem escrita. Parabéns!
Uma das cabeças coroadas da doutrina pátria interrompe o bate-papo e objeta com empáfia:
– Por que você não escreveu o prefácio? Tinha que escrever o prefácio!
Encarei o interlocutor com olhar condescendente de quem sabe das coisas e respondi de forma incisiva:
– A orelha é a parte mais lida do livro! A orelha é a parte mais lida de qualquer livro. De qualquer livro!, enfatizei.
Outro jurista, igualmente coroado e ovacionado pela estudantada, concorda com a minha tese. Explica que passou anos escrevendo um livro profundo, de incontestável valor científico. Ninguém leu. Na terceira edição ainda era um autor inédito. Aí teve a luminosa idéia: inserir uma orelha na capa. Resultado: as vendas dobraram, dobraram não, triplicaram. A obra tornou-se um best-seller. Leitura obrigatória em todas as faculdades de direito do país. Perguntei-lhe se valeu a pena. Deu um longo trago em seu charuto cubano, ajeitou o suspensório de seda pura e disse em alto e bom som:
– Para falar a verdade, continuo tão inédito como antes, talvez até mais. A diferença é que meus supostos leitores fingem que conhecem a obra e saem por aí citando as informações da orelha. E isso tem efeito multiplicador. Todo mundo compra e ninguém lê. Um sucesso!
Lembrei-me de um episódio curioso. Um amigo estava disposto a fazer carreira no serviço público. Passou no concurso e continuou estudando feito um louco. Fez mestrado, doutorado, línguas estrangeiras. Achou que seria promovido, que seriam reconhecidos os seus esforços para o engrandecimento da repartição pública. Nada. Os chefes ficaram ofendidíssimos com os seus conhecimentos. "Quem ele pensa que é? Quem ele pensa que é?", perguntavam enfurecidos, com babas de cães raivosos. O cargo terminou sendo ocupado por um espertalhão de poucas luzes e muita malandragem. Meu amigo decidiu mudar de vida. Rasgou Machado de Assis, Victor Hugo e Albert Camus. Pediu exoneração e passou a ler avidamente as orelhas de todos os livros que encontrava pela frente. Leu centenas delas. Hoje é presidente de uma conhecida multinacional. Um homem rico.
Outro amigo foi convidado para fazer uma conferência num congresso de filosofia. Comprou dois livros de Nietzche, edições de bolso. Leu as orelhas e fez uma belíssima exposição, arrancando palmas até mesmo dos catedráticos. Depois foi visto no botequim da esquina aos beijos com uma belíssima aluna de ciências sociais, que não cansava de admirar sua vastíssima cultura. A cada trago de cachaça com mel, a beldade gritava embevecida: "Assim falou Zaratrusta! Assim falou Zaratrusta!". No dia seguinte os livros foram encontrados na lixeira do auditório, imaculados como uma vestal romana.
Eis a verdade irrefutável: os empresários de sucesso, os oradores que arrastam multidões, os clérigos mais venerados, não são eruditos, mas sofisticados leitores de orelhas. O resto é conversa fiada.
Outro dia eu exaltava os sermões do padre Antônio Vieira nos corredores do Forum de Maceió.
– Que estilo, que brilhantismo, que domínio da língua portuguesa, dizia com entusiasmo.
– Um saco, contestou a loira de fechar o trânsito. – Ninguém entende nada do que esse homem escreve. Balançou os cabelos oxigenados e alisados na chapinha japonesa: – Você precisa assistir a uma pregação do padre Fábio de Melo. Este sim, tem conteúdo. Lindo, maravilhoso!, acrescentou com olhos lúbricos de gata no cio.
Na época eu desconhecia esse fenômeno da mídia católica. Atônito, perguntei:
– Mas é padre mesmo, de batina, igreja e tudo? Ele canta ladainhas, hinos, essas coisas que todo padre faz?
– É padre de televisão, professor! O senhor vive em que século? Batina, já era! Ele anda na moda, malhado, roupa de grife, relógio rolex, um charme. E tem mais: é um excelente cantor. No seu repertório há músicas sertanejas e até Fábio Júnior, não é o máximo? As meninas ficam loucas quando ele fala, apaixonadíssimas pelo fruto proibido. Deu uma paradinha, e continuou: - Ah, tem uma coisa, o padre detesta ser assediado pelas meninas.
Fiquei pensando na atriz hollyoodiana que fazia topless em Ipanema e foi cercada pelos banhistas que gritavam "gostosa, gostosa!". Um escândalo. Ela ficou bravíssima, sentiu-se desrespeitada, vilipendiada em sua intimidade. Não admitia que adolescentes, velhinhos tarados, vendedores de biscoito polvilho e de chá mate apreciassem os seus fartos seios. Ninguém entendeu nada. Ora, se o padre se veste de garoto do Leblon, faz caras e bocas, exala sedução por todos os poros, por que detesta as declarações de amor das fãs apaixonadas pelo homem de carne e osso? Para mim esse é um mistério inescrutável.
A essa altura o leitor pode pensar: - "é despeito". E é mesmo, confesso isso sem pudor ou medo da fogueira do inferno. Mas o que eu queria dizer é que os conhecimentos teológicos são secundários, meros adereços, ornamentos retóricos que não atraem o interesse da platéia. Pior, são poderosos soníferos para os fiéis, mais fortes que uma dose cavalar de Lexotan. A maioria gosta mesmo é do belo, do espalhafatoso, do sedutor. A parte mais esperada da pregação são sempre os conselhos auto-ajuda, do tipo: "tenha pressa em ser feliz", "seja o que é não o que as pessoas querem que você seja".
Vivemos a era da superficialidade intelectual. Se quiser ter sucesso na vida, não perca tempo: comece a ler hoje mesmo as orelhas dos livros. Eu já comecei a fazer isso. Os resultados são surpreendentes. Os marxistas não lêem Marx, os kelsenianos não lêem Kelsen, os freudianos não lêem Freud, mas causam frisson por onde passam. O leitor de orelhas está apto para dar entrevistas, proferir discursos, escrever teses e, até mesmo, tornar-se guru espiritual de milionárias ociosas.
É imprescindível ter uma vasta biblioteca, com livros impecavelmente arrumados. Uma boa biblioteca exerce grande fascínio sobre os incautos. Lembre-se que os livros jamais devem ser lidos. Senão estraga tudo. Eu tinha meus oito, nove anos, quando presenciei uma cena que ilustra essa assertiva. Meu pai tentava convencer um cliente a assinar o contrato de honorários. Perdeu muito tempo em detalhes técnicos, desnecessários. O cliente hesitava. Queria garantias de que ganharia a causa, de que seria absolvido pelo tribunal do júri. Foi aí que meu pai entendeu o espírito da coisa. Pediu-lhe que olhasse de alto a baixo a sua estante recheada de obras jurídicas, todas vermelhas de capa dura. O homem ficou impressionado, balançava a cabeça feito catenga. Meu pai bateu na testa várias vezes com a mão direita e disse: " - Está tudo aqui, na cachola! O senhor acha que com esse cabedal vou perder a sua causa?". Convenceu o cliente e meteu os honorários no bolso. Se ganhou a causa? Ah, essa é outra história...
Enquanto os eruditos são considerados chatos, pernósticos e entediantes, os leitores de orelha são simpáticos, descontraídos, aceitos em todas as rodas sociais. Eles são incapazes de perguntas embaraçosas sobre temas herméticos. Animam horas a fio um papo cabeça falando muito sem dizer nada. Comentam autores que nunca leram como se fossem vizinhos de casas geminadas ou coleguinhas de jardim de infância. Os seus vastos conhecimentos do nada roubam a cena e arrancam suspiros de admiração.
Mas, atenção! Ler orelhas exige método e disciplina. É preciso saber de cor e salteado o título da obra, o nome do autor, o tema abordado e algumas frases de efeito. A ausência de um desses elementos é fatal. Você pode ser desmascarado, taxado de impostor, jogado à execração pública. Mas se você seguir as regras direitinho estará pronto para aproveitar as delícias que a vida lhe reserva. Boa sorte!
Eis alguns dos comentários sobre o artigo:
CARTA DE UMA CONFESSA LEITORA DE ORELHAS
LUIZA AMÁLIA
Caro professor. Realmente essa sua impagável crônica me rendeu dores de cabeça de tanto rir! Estás cada vez mais cômico. Bem, quanto aos leitores de orelhas de livros, esta é uma crescente espécie de gente, na qual me incluo, diga-se de passagem. É tanta coisa para se fazer hoje em dia, tanto blog interessante pra se acompanhar, e-mails pra responder, que aqueles velhos-livros-novos continuam na cabeceira intocados. Não pela malandragem, mas mesmo pela abundância de opções de entretenimento.
Para aqueles que querem lograr êxito com a fraude literária, indico um bom livro (adorei o que li na orelha, numa rápida passada na livraria para comprar uma revista sobre novelas) "Comment parler des livres que l’on n’a pas lus" (Como falar de livros que não se leu). De fato não o li, mas como boa leitora de orelhas que sou (e das críticas literárias de jornais de circulação), sei que o autor é Pierre Bayard (que, pelo nome, é um francês que escreve livros!). Bem... quem não o quiser ler, que passe ao menos uma vista pela orelha!
O LEITOR DE ORELHAS NA FILOSOFIA E NA LITERATURA
COARACY FONSECA
Caro George,
Ri bastante, o teu escrito é profundo e agradável. A questão é antiga. Sêneca, em seu belo “Sobre a Tranqüilidade da Alma”, perece-me que foi tomado por similar inspiração, ao afirmar: “Mesmo os gastos para os estudos, que são os mais bem empregados, são tanto mais racionais quanto mais moderados. Para que inumeráveis livros e bibliotecas de que o dono nunca lê por inteiro, com custo, apenas os índices?” O mestre estóico era um leitor voraz, mas um homem prático.
Se a função do intelectual for apenas de ler e “produzir” idéias ele não deve angustiar-se. Um dia a mensagem impressa surtirá algum efeito, não se pode precisar o tempo e o espaço. Mas, se ele deseja transformar o mundo, há de tornar-se um homem de ação. Partir para o embate. Infelizmente, com os leitores de orelha de livro: os mercadores de ilusões.
Sou um leitor despretensioso, não busco idéias originais ou soluções que nunca foram pensadas, se é que existem. Mas, na adolescência, li uma obra do mestre Alceu Amoroso Lima, O Tristão de Ataíde, que me tocou profundamente, com o simples pensamento: "De que vale pôrum pouco de ordem no espírito; de que vale sofrer a influência do ambiente que muda - se não fazemos repercutir, fora de nós, no terreno da ação, aquilo que fomos preparar no fundo de nós mesmos ou que respiramos no ar que nos cerca? De que vale o homem mergulhar dentro de si mesmo ou absorver, como uma esponja, as águas que o cercam - se não é para trazer o seu esforço humano... à obra da reconstrução, ao trabalho de auxiliar os outros (In Espírito e Mundo, 1936). Um abraço.
CARTA DE UMA LEITORA DE LIVROS (ORELHA, PREFÁCIO, TEXTO COMPLETO)
LUCIA
Caro George,
Certa vez ouvi um amigo na faculdade dizendo que fazia alguns trabalhos usando apenas o conteúdo das orelhas dos livros indicados, nesse momento me perguntei: Será que os professores são tão bobos assim?confesso que não ri com seu texto, pelo contrário, constatei uma realidade crescente: a de falsos gênios, falsos conhecedores das "coisas", falsos detentores do saber, e genuinos construtores do caos no mundo. Sim, porque se não detem o conhecimento serão facilmente manipulados por que o tem, claro que posso está errada.
Além disso, sem um profundo conhecimento das coisas como poderão sanar as proprias necessidades? Entenda-se necessidade no que se refere desde o entedimento do que se ler até a busca por alternativa para preservar a vida na terra. Acho que peguei pesado "né"?
Provavelmente meu amigo cresça na vida lendo orelhas, constatei isso no seu texto, detendo apenas um nada do que alguém se empenhou para escrever - o titulo - enquanto eu, leitora chata, do tipo que grifa todo o livro, fique aqui, desempregada, desconhecida, desiludida, desesperada por não poder contribuir para a melhoria do "mundo" com aquilo que empenhei tanto para apreender e apreender.
Você me abriu os olhos... Mas acho que é tarde demais, não me contentaria com uma orelha, sabendo que existe um monte de caracteres esperando por mim nas paginas de um livro qualquer.
Amo Pe. Fábio de Mello, Gosto de Antonio Vieira...Creio também que a diferença nos discursos de ambos seja o resultado das leituras de orelhas feitas pela maioria dos leitores desde o Barroco até hoje.
rsrs
ABRAÇOS
5 de Maio de 2009 20:12

O VALORIZADOR


ISAAC SANDES
- Você conhece algum ??
- Não… !! Não estou falando de nenhum novo índice econômico. Não estou me referindo a nenhum inovador método de aferição de eficiência na empresa, repartição ou carreira.
O valorizador é algo dotado de perfil extremamente particular no dia-a-dia das empresas, repartições públicas e carreiras de Estado.
Talvez você já tenha se deparado com um valorizador e não lhe tenha dado a devida atenção.
Talvez você já tenha sido até uma incauta vítima do valorizador sem, no entanto, se dar conta de tal. Tamanha é a astúcia e a sutileza do valorizador.
O valorizador é um ser que poderia perfeitamente ser recrutado pelos serviços de inteligência das nações em guerra, pelo que tem de seguro em não repassar informações, nem deixar transparecer fraquezas.
Apesar de ser um inseguro enrustido, quase um broxa social, o valorizador é perito na arte da dissimulação e da divulgação de uma imagem irretocável.
Tamanho é o poder de dissimulação do valorizador que, nem nos maiores calores e lassidões da alcova o valorizador entrega seus própositos ou seus métodos de atuação.
Até no leito de morte, cercado pelos familiares mais próximos, o valorizador não entrega sua prática de vida.
Mesmo como encardido religioso; frequentador de todas as quermesses da sua paróquia; carregador de andor em todas as procissões; comungador diário ou membro fundador de uma ordem religiosa. Mesmo assim, o valorizador irá morrer e jamais revelará seus métodos e segredos. Nem mesmo ao vigário que irá lhe administrar a extrema unção.
Se você ainda não conseguiu formar em sua mente o perfil de um valorizador, fornecerei alguns indícios do que possa ser um valorizador.
Ao contrário do que se imagina, o valorizador não é um ente raro, daqueles que a humanidade só nos dá a cada milênio.
Ele pode ser encontrado no nosso dia-a-dia. Seja na figura de um simples aspone do serviço público, seja na figura de um grande empresário, no papel de um alto funcionário, na pele de um magistrado ou de um Promotor. Não é raro se deparar com um valorizador.
Você sempre encontrará o valorizador carregando um grande volume de livros, que jamais vai ler. Conduzindo uma enorme e lustrosa pasta que julga cheia de documentos importantes, mas que, na verdade, se, por acidente, ela se abrir diante de seus olhos, você se verá frustrado pela enorme quantidade de tranqueiras inúteis esparramadas diante deles. Saidos da acidentada pasta do valorizador teremos: Vários tipos de escova para cabelo, espelhinhos, toalhinhas, revistas pornôs, escova de dentes, frasquinhos de perfume, alguns cachetes de medicamentos e, como principal recheio, amarrotadas cópias de um ensebado processo - de deslinde quase impossível – no qual, o valorizador deposita infinita esperança de redenção financeira.
Uma breve incursão histórico-sociológica sobre a origem do valorizador irá nos remeter aos mais imemoriais tempos.
Desconfia-se que os doze trabalhos de Hércules foi uma grande performance de valorizador.
Suspeita-se que o bíblico Sansão também foi um grande valorizador, pois o alarde criado em torno da quantidade de filisteus mortos por ele, não se coaduna com o flagrante que lhes deram seus inimigos. Desfalecido e indefeso na cama de uma notória prostituta, após intenso bacanal.
Mas o caso de valorizador que se tornou mais célebre, quase um arquétipo da humanidade, é aquele do pastor guardador de ovelhas da conhecida fábula - que, para valorizar sua função, sempre dava avisos falsos de ataques de lobos, até que um dia foi comido por eles, pois ninguém mais acreditava em seus infundados alarmes.
Daí o estigma que acompanha, até hoje, todo vigia, pois seguramente, entre as classes e categorias, é o vigia o maior valorizador. Experimente e faça um teste. Pergunte a qualquer vigia que passou a noite entre um cafezinho, um cigarro e um longo cochilo, como foi a rotina de seu trabalho e, ele, sem pestanjar, lhe dirá:
- Olha Doutor foi uma noite de cão, tive que afugentar um ladrãozinho daqui, uns suspeitos que rondavam a casa dali, tive até que dar uns tiros pro alto. Se eu não fosse tão macho… Sei não!!!
- Jamais admitirá que o único barulho ouvido durante a noite foi o do seu ronco.
- É fatal.
O valorizador, você sempre o encontrará esbaforido e soprando, como se, sobre sua cabeça, estivesse desabando o Processo de Nuremberg. Se for daqueles que usam gravata, você sempre o encontrará afrouxando o nó e fazendo cara de que já não mais aguenta tanto trabalho.
Não adianta você convidar o valorizador para um almoço de amigos, uma cervejinha após o expediente, ou que tais, pois ele fatalmente irá lhe dizer que gostaria muito, mais que, ao contrário dos demais, está com um grande volume de serviços para concluir e que lamenta muito não usufruir de uma vidinha mansa como a sua.
O valorizador chega sempre ao trabalho atrasado, mas procura uma maneira de entrar sem que ninguém o veja e, fatalmente, quando todos já estiverem saindo após a conclusão de suas tarefas, o valorizador ficará fazendo serão até “altas horas” e tentará convencer alguém a lhe fazer companhia.
Ninguém consegue pegar um valorizador desprevenido, pois ele, religiosamente, instrui seus empregados e familiares para, automaticamente, responderem aos que ligam para sua casa à sua procura, com a monocórdia frase: “O Doutor tá no trabalho… é… saiu logo cedo”.
Lá, no trabalho, o valorizador, ao contrário, instrui seus auxiliares para responderem: “O Dr. está por aqui, deve ter dado uma pequena saidinha”, ou, se não tiverem saida: “ O Dr. acabou de sair às pressas para uma reunião com o seu chefe. Que pena …! Se o senhor tivesse chegado mais cedo…!!!!
O valorizador nunca passa recibo. Ele sempre sabe tudo. Não adianta você contar uma novidade interessante que fatalmente ele lhe dirá: “Ahhh… Eu já sabia !!!”.
É um verdadeiro estelionatário intelectual. O valorizador.
Qualquer idéia brilhante que lhe for apresentada por um subordinado, será, na próxima reunião do grupo ou diretoria, exposta e incorporada pelo valorizador como a sua mais nova e genuína descoberta.
Tamanho é o hábito incorporado, que o valorizador chega a não ter tempo nem para a própria família. Qualquer tentativa de incursão de esposa e filhos em busca de lazer, tem logo a pronta e definitiva resposta: “O papai está cansado. O dia hoje foi daqueles… fica para a próxima vez ! “.
A sovinice do valorizador só passa a ser suspeita, quando você, bisbilhotando quais são os integrantes mais frequentes de pacotes turísticos de grupos exóticos e diversos do seu, descobre que lá, está sempre o nome do valorizador.
Tão ardiloso é o valorizador que suas viagens de lazer e turismo sempre são feitas em grupos nos quais você jamais suspeitaria encontrá-lo. Tais como: “Grupo de viagem da unha encravada: Agradecidos pelas graças alcançadas no Santuário de Fátima”. “ Peregrinação aos túmulos do ancestrais Cruzados: Partida da Côte d'Azur. Tour nas Ilhas Gregas . - Jerusalém via Estambul .
“Grupo de viagem da confraria dos descendentes dos apunhaladores de César. Visita ao antigo Senado Romano, com esticada à Ilha de Capri.
- Em todos eles, se encontrará o valorizador.
Por tais ardis é que ninguém consegue dizer com segurança, onde se encontra, em tal momento da sua vida, o valorizador. Ele é capaz de, no final do expediente de hoje, deixar você profundamente comovido e ciente de que está tocando um grande e inadiável projeto e, amanhã, vestido de camisa e bermuda coloridas, chapéu australiano enfiado na cabeça, óculos escuros, reboco de protetor solar na cara, está sorrateiramente embarcando em um alegre Cruzeiro rumo ao Atol de Mururoa, como integrante do grupo que irá realizar profundas pesquisas sobre os Efeitos causados pela Radiação Atômica nos Cavalos Marinhos Alazãos daquele ecosistema.
Novamente lhe pergunto:
Você conhece algum ???

Isaac Sandes
23/04/2009

domingo, 19 de abril de 2009

URUBULINOS

ISAAC SANDES
Hoje a prosa não será leve. Tratarei de algo que chega muito próximo ao que era conhecido pelos antigos como causos de assombração .
É certo que não são daquelas tenebrosas estórias, ouvidas de olhos arregalados e agarrados à barra da saia de nossas avós, as quais nos faziam dormir com o cobertor preso aos pés e à cabeça, obrigando-nos a aspirar, no correr da noite, aquilo que os eruditos chamam de ventosidades anais silenciosas; as populares bufas.
Mas… ! Vamos ao assunto, pelo que tem de sério !!!
Os amigos mais próximos não conseguem entender minha imensa ojeriza e rejeição a ritos, práticas ou quaisquer referências funerárias.
Riem, como se eles também não fossem refratários a tais assuntos, e não compreendem a razão de minhas ferozes críticas e ácidos comentários a respeito da comercial e quase pirotécnica exposição de urnas funerárias nas lojas e boutiques do ramo.
Não imaginam quão sérios são meus impropérios em relação àqueles que fazem da morte e desgraça alheias o seu meio de vida e, indo além, rondam hospitais e casas de saúde como abutres rondam o moribundo animal caído na Savana, à espera de, no momento oportuno, enfiarem seus putrefatos bicos no ânus da infeliz vítima. Porque, num covarde oportunismo, sabem que ali estão as partes moles e fáceis de comer, sem sofrerem, do quase cadáver, a última e instintiva reação de defesa.
Assim são e, assim agem os Urubulinos agentes funerários da atualidade. Se entrincheiram nos arredores dos hospitais e, numa macabra tocaia, apontam seus lânguidos olhares e inauspiciosos desejos em direção daqueles que ali ingressam para tratamento. Hipócrita seria, da parte deles, afirmar que dali, de seus postos de vigília, possam fazer qualquer voto de pronto restabelecimento para seus possíveis futuros clientes.
Ornamentam suas casas de morte, como um shopping ornamenta suas vitrines para uma promoção de dia dos namorados. Dão-lhes títulos chamativos como Funerária Céu Azul e, numa atitude que diria, até anti-bíblica, cometem a proeza de, numa negação do milagre em que Jesus livrou um mortal do alcance de seus algozes funerários, chegam a pomposamente ostentar em sua fachada o letreiro: Funerária São Lázaro.
Esperam tais mercadores da morte que agora, como na antiguidade egípcia, os cidadãos acreditam tanto na vida pós morte a ponto de gastarem uma pequena fortuna na encomenda de um ritual de embalsamamento, na compra de um vistoso sarcófago, ou na construção de vistoso túmulo ?
Nutrem eles vã esperança, em ver um dia, famílias entrarem alegremente nos seus estabelecimentos que têm cheiro de morte e, tomada de impulso consumista, escolher o modelo de caixão mais adequado ao perfil físico de cada um de seus membros ?
Invadem nossos lares através da mídia para, num papel de verdadeiros desmancha-prazeres, sorumbaticamente anunciarem seu reclame: “Compre já seu jazigo com vista para o nascente, garanta agora o desfrute de uma digna e duradoura paz celestial… blá, blá, blá.”
Cá do alto de minha cátedra de medroso-mor, voltada para a discussão do trevoso e arrepiante tema defuntista, creio que tais abordagens absurdas já não cabem, pois a humanidade, na medida que vai se libertando da outrora e certa crença na vida pós morte, vai, cada vez mais, se afastando de tais rituais e se desfazendo de tais apelos.
Tanto assim que, como foi dito, longe vão-se os tempos em que os antigos egípcios se orgulhavam de comprar antecipadamente todos os equipamentos que lhes seriam úteis na acreditada próxima vida e conviviam com seu defunto, em preparativos, até por setenta dias.
Os romanos faziam os túmulos de seus entes queridos nas dependências da própria casa e, alí, o varão da família ficava encarregado de manter sempre ativo o o fogo e o culto ao antepassado, na esperança de que aquele facilitasse os caminhos dos demais que estavam por ir.
Mas cá, do meu mui afastado e cautelar posto de observação de tais assuntos, tenho notado que nos períodos em que a humanidade se afastou de tais cultos e credinces, os cemitérios foram sendo construídos, cada vez mais, em lugares distantes e inacessíveis aos vivos. Quem não conhece uma cidadezinha de interior em que o dito se localiza o mais distante possível e, de preferência, no alto de um morro escarpado. Como se, numa mensagem atávica, aqueles cidadãos estivessem querendo dizer: Os que aqui ficam jamais devem voltar para o nosso meio. Enquanto os que estão no nosso meio só devem vir pra cá, muito contra suas vontades e após a resistência de um cavaleiro cruzado.
Quem não conhece a moderna pressa que, mesmo discretamente, as famílias de hoje têm em se ver livres dos seus mortos?
Então, como costumo afirmar para aqueles amigos que ousam comigo discutir o sepulcral tema, não há notícia de cadáver insepulto a perecer sobre a terra, por haver, o próprio quando em vida, ou sua família, deixado de adquirir com antecedência um vistoso plano funerário daqueles inventados e oferecidos pelos Addams de plantão.
Divertem-se meus amigos, quando defendo a criação de um serviço público que seria encarregado das exéquias de todo e qualquer cidadão, o qual por medida de higiene e espaço deveria ser em forma de crematório, onde todos seriam finalmente revertidos ao original pó.
Então, gostaria de ver até onde iria a criatividade e inventividade dos ditos carcarás funerários, na busca por um substitutivo econômico que continuasse a explorar e abusar de seus semelhantes até em sua derradeira hora.
Posso vislumbrar que agiriam mais ou menos assim:
No meio da futurista sala de mídia, de repente, começa a se materializar a imagem holográfica da soturna figura. Vestes e cartola pretas, tez vampiresca de morto vivo, faz uma dracular mesura com sua capa forrada de cetim vermelho, dá uma funérea gargalhada e em voz tonitroante anuncia:
“ Dê novo brilho às cinzas de seu ente querido, dispomos para pronta entrega, das mais belas e fantásticas cores de purpurina funerária…”

Isaac Sandes – 14/04/2009.

VALE A PENA ESTUDAR?

GEORGE SARMENTO
Semana passada, um grupo de colegas do Ministério Público conversava animadamente sobre a polêmica promoção por merecimento para o cargo de procurador de justiça, ainda sem data para chegar ao fim. Em dado momento, um dos interlocutores, com mais de 30 anos de casa e já avançado na idade, pede a palavra e afirma com a arrogância dos parvos:
- Esse pessoal que tem mestrado, doutorado e especialização pensa que é melhor que os outros. Eu mesmo só votaria em quem dá duro no trabalho, que veste a camisa da instituição. Jamais nessa gente que só pensa em dar aulas nas faculdades.
Embora eu seja um habitué dos bate-papos nos cafezinhos, não estava presente para responder na lata a essa pérola da intolerância provinciana.
Não é a primeira vez que tais assertivas chegam aos meus ouvidos pela boca de testemunhas indignadas com tamanha arrogância. Confesso que não tenho raiva dessas manifestações de raquitismo intelectual. Sei que é produto de mentes esclerosadas e corroídas pelas traças do atraso. Discutir com tais indivíduos é dar-lhes um valor que não possuem. É transformar simples grãos de areia em pedras preciosas. Além do mais, como dizia Oscar Wilde, devemos escolher nossos inimigos pela inteligência. E esse, definitivamente, não é o caso.
O curioso é que o preconceito é dirigido a uma das categorias mais injustiçadas do país: os professores. Justamente àqueles que ganham menos, sofrem com as péssimas condições de trabalho e são vítimas do desaparelhamento da educação no Brasil. Sejamos francos. As dezenas de colegas que exercem o magistério o fazem por vocação e não com o objetivo de auferir lucros, já que o salário de docente é insignificante em relação aos subsídios de promotor ou procurador de justiça. A Constituição Federal assegura o direito de ensinar em instituições de ensino superior, sem que isso configure acumulação ilícita de cargos. Além disso, a atuação na sala de aula é uma das estratégias mais eficientes para estimular vocações e atrair jovens talentosos para a carreira no Ministério Público.
Em 24 anos na instituição, jamais testemunhei um caso sequer de negligência ou desídia em razão de atividades no magistério. Ao contrário, os colegas professores são também profissionais exemplares. Ninguém é obrigado a ensinar em faculdades, fazer pós-graduação ou escrever artigos científicos. Conheço excelentes promotores de justiça que decidiram não trilhar esse caminho e são reconhecidos pela sociedade civil pelo excelente trabalho que desempenham. Mas é justo que os pós-graduados sejam execrados por terem estudado? Serão eles promotores de segunda categoria? Claro que não. Trata-se de discriminação tosca que deve ser rechaçada com veemência.
Recentemente fui convidado pelo Diretor da Escola Superior do Ministério Público, Dr. Sérgio Jucá, para proferir uma palestra sobre questões polêmicas do mandado de segurança. Contava-se nos dedos das mãos o número de promotores de justiça presentes. Pensei cá com os meus botões: é o conferencista que não presta? O tema é desinteressante? A divulgação foi insuficiente? Aí lembrei que acontecia a mesma coisa em outros eventos. Quase sempre foi preciso convocar servidores e estudantes de Direito para garantir o quorum necessário à realização dos seminários.
Por que isso acontece? Simples. A participação em cursos organizados pela ESMPAL jamais foi parâmetro de avaliação de desempenho nas promoções por merecimento. Na magistratura estadual e federal, a aprovação em cursos oficiais, inclusive os promovidos pela Escola Nacional de Magistratura é condição sine qua non para a promoção pretendida. Nunca vi um só juiz melindrado por tais exigências. Sem qualificação profissional o magistrado fica estagnado na carreira. E isso ninguém quer. Se a participação nos cursos da ESMPAL ficasse registrada nas nossas fichas funcionais para fins de promoção a situação seria diferente.
A luta de Maurício Pitta tem sensibilizado a classe pela dimensão coletiva que encarna. As manifestações de solidariedade expressam a insatisfação com os critérios adotados atualmente nas promoções por merecimento. Todos estão acompanhando atentamente o desenrolar dos acontecimentos. Tenho certeza que os integrantes do CSMP, eleitos democraticamente pela classe em eleição disputadíssima, saberão apreciar as candidaturas com impessoalidade e equilíbrio, justificando suas escolhas através de votos fundamentados. O Ministério Público só tem a ganhar com isso. Agora é só esperar para ver.
Forte abraço
George Sarmento

quinta-feira, 16 de abril de 2009

EMBRIAGAR-SE DE VIDA


GEORGE SARMENTO
Em crônica publicada neste blog, Coaracy Fonseca nos brindou com uma deliciosa reflexão sobre a arte de reunir amigos em torno de uma biritinha. Hábito simples, tão apreciado pelos brasileiros. Não há dúvida: sob os efeitos do álcool, somos mais espontâneos, relaxados e autênticos. Os mais afoitos confessam os amores malogrados, as paixões secretas e os desejos enrustidos. Perdem o medo do ridículo e não estão nem aí para a galhofa dos outros. Alguns ficam valentes, outros tristes, até mesmo apáticos. Há os tarados e falastrões. Sem falar daqueles que não bebem nada, acompanham tudo e saem contando as besteiras que fizemos no dia anterior só para nos matar de vergonha.

Mas o importante mesmo é embriagar-se de vida. Não importa o vício. O fundamental é estarmos profunda e irremediavelmente apaixonados pelo que fazemos, pelas pessoas que nos cercam, pelos caminhos que trilhamos. Como é triste conversar com os pessimistas! A sua amargura enodoa a alma, mina as forças vitais e pode nos afundar na mais abissal depressão. Já os otimistas são verdadeiramente inspiradores: enchem nossa vida de alegria, música, poesia e amor. As chamas de sua personalidade nos fazem perseguir os sonhos e lutar pelo impossível, certos de que sairemos vitoriosos de todas as batalhas. Não é à toa que o vocábulo entusiasmo significa "Deus dentro de nós".

Vocês já notaram que a maioria das pessoas despreza o presente? Algumas vivem no passado, remoendo culpas. Outras no futuro, sempre à espera de algo que possa torná-las felizes. Eis o paradoxo: ou estão mergulhadas nas trevas do remorso, ou nas atemorizantes teias da angustia. E tome Lexotan para suportar tanta pressão. Se pensarmos bem, o presente é tudo que temos. É a realidade crua, concreta e inexorável. E temos de enfrentá-la apaixonadamente, sugando com avidez a seiva da vida sem nos importar com os riscos dessa maravilhosa aventura no Planeta Terra.

O passado é o bom conselheiro que nos ensina a arte de aprender com os próprios erros. O futuro é o imponderável, um enigma que pode nos reservar muitas surpresas. Para que nos preocuparmos com eles? Coragem! Shakespeare dizia que não é digno de beber o mel aquele que se afasta da colméia temendo as picadelas das abelhas. No século XIX, o poeta francês Charles Baudelaire - o pai do simbolismo - expressou essa verdade ao escrever o famoso poema Embriague-se. O autor de Les Fleurs du Mal sabia que a vida é uma dádiva que só pode ser usufruída pelos ébrios contumazes. Eternos embriagados, não só de álcool, mas, sobretudo, pela insaciável paixão por tudo que faz pulsar de emoção e nos arrebata do torpor da entediante rotina. Se você for avesso a um pilequinho, não tem problema. Tome um porre de alegria, otimismo e entusiasmo. Sua vida ganhará um novo colorido. Não custa nada tentar.

Em tempo: Remexendo em meus alfarrábios encontrei uma antiga e despretenciosa tradução que fiz do poema Embriague-se como tarefa escolar na Aliança Francesa. Espero que gostem.

Forte Abraço!

George Sarmento

EMBRIAGUE-SE

Charles Baudelaire
Tradução: George Sarmento

É preciso estar sempre embriagado.
Isto é tudo.
É a única questão.
Para não sentir
O pesado fardo do tempo
Que te verga os ombros
E pende o teu corpo sobre a terra.
É preciso embriagar-se sem trégua.
Mas de quê?
De vinho, de poesia ou de virtude, à sua escolha.
Mas embriague-se.
E se, de vez em quando,
Nos degraus de um palácio,
Na relva verde da estrada,
Na solidão morna de seu quarto,
Você se acordar
E a embriaguês tiver diminuído ou desaparecido,
Pergunte ao vento,
À onda,
Ao passarinho,
Ao relógio,
A tudo o que foge,
A tudo que geme,
A tudo que rola,
A tudo que canta,
A tudo que fala,
Pergunte que horas são.
E o vento,
A onda,
A estrela,
O pássaro,
O relógio
Te responderão:
É hora de se embriagar!
Para não ser escravo martirizado do tempo,
Embriague-se.
Embriague-se sem parar!
De vinho, de poesia ou de virtude, à sua escolha.