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segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

A BELA

Certamente, alguns de vocês haverão de lembrar quando neste espaço, relatei um particular caso que envolvia um erudito amigo; amante e praticante do mais puro materialismo dialético. Naquela oportunidade ele, com a mais absoluta segurança, afirmava ser o conceito de beleza abstrato e relativo. Da mesma forma, defendia ardentemente que o amor romântico era mera criação dos trovadores e cavaleiros da Idade Média, impossível de existir no atual mundo pragmático e tecnológico. Tal quimera, só seria possível nas fantasiosas mentes das românticas amantes de telenovelas e leitoras de Sabrina.

Todos lembram-se, do mesmo modo, quando, em determinada quadra, fui surpreendido com a inesperada mudança de opinião do amigo a respeito das pétreas teses que defendia.

Operou-se a surpreendente mudança quando ele, trêmulo e embevecido com a inesperada visão que tivera, não lembro bem, se numa moderna academia, se numa aula de natação ou até mesmo numa procissão , me confessou como uma criança diante de seu primeiro brinquedo que retirava todos os argumentos assacados contra a existência da beleza e reconhecia, sem qualquer pudor erudito, sua concretude, pois a vira personificada ali naquela figura transcendental. Tal visão, fizera seu outrora frio e matemático ponto de vista, ruir como um sorvete ao sol.

Tão aparvalhado estava o amigo naquele instante, que sequer tive a iniciativa de solicitar a descrição da criatura causadora de tal estrago. O meu espanto com semelhante mudança me fez olvidar a instintiva e natural curiosidade sobre aquele ser encantador, causador da impressionante hecatombe naquele convicto materialista.

Ali mesmo, lembro bem, mergulhei em ilações um tanto quanto frias e analíticas, na tentativa de descobrir o que levara o amigo àquela infeliz condição. Rapidamente passaram por minha cabeça análises que sempre estávamos acostumados a fazer antes daquele pobre ser entrar em surto.

Ocorre-me agora a lembrança: Ao tempo de sua sanidade mental, uma das principais teses abordadas por nós, era sobre o recorrente tema do domínio que a natureza exerce sobre suas criaturas e, principalmente, sobre a armadilha que ela nos joga, no seu desiderato de perpetuar a espécie e repassar nossa carga genética.

Do alto daqulea pretensa erudição, assim como de nossa suposta segurança antropológica, sempre nos julgamos imunes aos laços de tal armadilha.

Pacífico, era o entendimento de que a natureza, quando pretende dar seguimento à espécie, atira à suas vítimas um feitiço que faz com que cada um dos sexos veja no outro, atributos e qualidades que se encontram muito além de um ponto de vista sensato, lhes aguçando e exagerando todos os sentidos e revolvendo em seu interior, forças nunca antes imaginadas. Vejam o salmão! Nada exaustivamente até a cabeceira do rio em que um dia nasceu para, uma vez lá, cumprir seu último e mortal ritual de acasalamento. O macho da viúva negra que dá a vida por uma cópula. O Louva -Deus, decapitado pelo mesmo objetivo.

Da mesma forma, homem ou mulher, quando elegem um parceiro que o instinto determinou para o repasse de sua carga genética, de nada adianta apelos de familiares ou amigos, demonstrando ser aquele parceiro um perfeito canalha e que aquela escolha é um desastrado erro do ponto de vista das relações sociais e humanas. Não há quem os demova. No ser humano, o alvo da natureza é aquilo que julgamos nosso atributo superior, a razão. Assim, nessa tocaia natural, ela é a primeira baixa. Em consequência, torna-se o homem patético e ridículo, tamanhas as forças da transformação que nele se opera.

Em sua trama, a natureza envia ao cerébro de cada um dos enredados personagens, comandos que os levam a superestimar qualquer traço ou atributo físico existente no outro. Um pequeno traço no rosto torna-se um obelisco de beleza; um determinado jeito de olhar torna-se um encanto; uma palavra que, lançada em normal contexto, soaria tola e enfadonha, para o enamorado soa como um Cântico de Salomão. Enfim, como diria o poeta, tudo torna-se divino e maravilhoso, uma vez a vítima tenha sido tocada pelo inebriante efeito da Mágica Poção.

Discutíamos isto e nunca desconfiei que nosso seguro e impassível amigo viesse ser um dia, vítima de tal feitiço.

Mas…, apenas pretendo dizer que, diante de um perfeito e acabado exemplo confirmatório da existência de tais forças, não tive, naquele momento, presença de espírito para colher do agora romântico Zumbi , uma descrição detalhada da criatura que lhe havia turbado a razão daquela maneira.

Dias depois encontro-o em transe de menor voltagem, mas ainda enebriado pelo traiçoeiro golpe desferido pela natural Circe e então finalmente peço-lhe em tom de gozação:

- Amigo, descreva-me a tal Vênus que lhe transtornou.

E ele, com olhos faiscantes de encantamento, mente atravancada de sonhos, boca atulhada de elogiosas palavras, começou:

- Pra começo, é pernóstica!! Pernóstica sim, muito pernóstica!!!

Eu pasmo. - Pernóstica ? Como assim pernóstica ? Se o deixou maluco !

E ele, tentando se fazer entender:

- Explico amigo. Não é pernóstica no sentido usual. Digo que é pernóstica pelas belas e longilíneas pernas que possui. Precisa ver!!! (Disse com olhos injetados ) -Duas colunas do mais belo e puro mármore de Carrara.

Sentindo o bem que tais forças telúricas estavam provocando no humor do pobre amigo insisti, reconheço, com uma pequena dose de malvadeza, em obter maiores detalhes só pra ver até onde ia aquela alucinação.

Fustiguei-o, tal qual um curioso padre no confessionário. – E aí… e aí, o que tem mais?

Com medo de ser traído por suas confidências, o amigo deu uma discreta olhadinha em volta, enrubesceu as bochechas, estufou o peito e continuou.

- Aquele rosto… Ah… que rosto!! Os traços são de uma legítima beleza helênica. Seu perfil parece saido de uma ânfora grega. Tem boca de suculento morango e olhos de Capitu. Os cabelos, longos e sedosos, pendem de sua cabeça e, como uma negra cascata, ganham os contornos dos ombros, descem novamente lisos até misturar suas finas pontas aos dourados pelos lombares. Findam-se pendurados num doce bailado perto daqueles dois furinhos, resquícios da criação Divina; quando ao concluir sua obra prima, Deus deu-lhe um empurrãozinho com dois dedos na região lombar, dizendo: “ Te chamarei mulher… agora vai… vai levar a loucura ao inocente e incauto Adão .” Restando daquela ação, apenas as duas marquinhas que, até hoje, a todos encantam.

Ao notar que o amigo estava quase em estado hipnótico, tal qual o Professor Aquiles Arquelau, aquele incorrigível apaixonado por Bruna Lombardi, fiz de um pigarro a campainha para o trazer de volta à realidade. Então ele estremeceu e continuou:

-Desculpe-me, quase me perdi em devaneios heréticos e eróticos, mas…, prosseguindo: Mãos e pés são talhados com uma finura de causar admiração a um Michelângelo. Aliás, por falar nisto, este ficaria pasmo com a perfeição das proporções que reinam no corpo daquela criatura. O amigo sabe muito bem que o segredo da beleza está nas proporções das medidas. Não é ??

Sempre concordamos sobre a existência das medidas denominadas medidas de ouro, ou melhor dizendo, proporção áurea, encontrada na natureza e reproduzida pelos gênios em várias de suas criações artísticas como no Parthenon na acrópole grega, no Nascimento de Vênus, de Botticelli e em muitas outras geniais criações humanas. - Pois é amigo, lhe asseguro; a bela possui, sem sombra de dúvidas, tais medidas. Seu corpo é uma perfeição de proporções. Nada ali foi posto demais, nada ali revela-se de menos. Prosseguiu ele em seu transe, até notar que, de fininho, eu saíra deixando-o a falar sozinho.

Diante daquela quase lunática ode à beleza, pensei comigo: “Realmente o lastimável estado em que se encontra o amigo é uma prova acabada daquilo que tanto havíamos observado nos outros. Seu transe demonstra as indomáveis forças da natureza agindo nos genes da pobre criatura. Ele não é mais ele, é um reles fantoche que a natureza está usando para se reproduzir. Não importam as consequências mundanas que lhe advirão, o importante ali é o secreto desejo do gene egoísta que pretende se replicar. Tomara Deus, passe logo tal feitiço”.

Apavorado com tamanha transformação e regressão do amigo, só tive tempo de lembrar e observar como, a natureza e o tempo, com suas forças e necessidades, fazem o arco da vida quase tocar suas extremidades.

O que eu vira ali, era o vigor e o entusiasmo que existiram um dia no jovem, ressurgindo naquele Casmurro senhor com a mesma força e viço descomunal de antes, numa demonstração de que somos meros instrumentos de uma ordem ou lei natural, interessada apenas no seu próprio script, o qual tem seu objetivo voltado apenas para a perpetuação do gene e da espécie. Enquanto que, como seres individuais, somos tristemente ignorados, descartáveis e pseudos senhores do nosso destino.

Isaac Sandes 14/12/2009.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

DOS HOMENS, PÉS E SAPATOS

Isaac Sandes


O recorrente e surdo combate existente entre jovens e velhos, pertecentes às mais diversas instituições e segmentos, quer sejam de trabalho, de lazer ou política, me obrigou à seguinte reflexão:
A humanidade e os indivíduos, os pés e os sapatos, guardam entre si, muita semelhaça no contexto da jornada humana.
Como os sapatos os indivíduos podem ser novos ou velhos. Como os pés, a sociedade pode ser calejada ou imatura.
Todos guardam entre si, uma relação de simbiose e completude, onde suas importâncias e necessidades mútuas deverão ser respeitadas, jamais buscando prescindir uns dos outros para o sucesso da caminhada comum.
Quando os jovens são inundados pelas forças dos hormônios, costumam dar azo a um velho discurso de gerações passadas, o qual prega estar o velho ultrapassado para o ingente esforço social. Por seu lado, ao sentirem a sorrateira chegada da velhice, os homens maduros vão entoando uma catililnária que, da mesma forma, prega o despreparo do jovem para posições de destaque no contexto social.
Todos se acusam e se esforçam em demonstrar as deficiências uns dos outros, e esquecem de dirigir um simples olhar para o sábio exemplo que nos é dado pelo uso de nossos sapatos e pelas aptidões de nossos pés.
Com os sapatos aprendemos que, para o sucesso de uma caminhada longa e tortuosa, sem o surgimento de calos e bolhas, segura e sem percalços, teremos, obrigatoriamente, que fazer uso de sapatos velhos, os quais, devido à sua flexibilidade e maciez, adaptam-se facilmente àquele tipo de jornada.
Se, ao contrário, pretendemos fazer uma caminhada arrojada, exibida, cheia de performance e açodada, teremos obrigatóriamente que lançar mão de sapatos novos, brilhantes de solado impecável e com um grande tempo de uso pela frente, pois estes, por sua resistência e beleza, se prestam melhor para tal missão.
Da mesma forma, são os pés e os homens.
Para duras e tortuosas caminhadas, por terrenos pedregosos e áridos, melhor se adequam a ela os pés calejados e empedernidos, assim como, pés jovens e imaculados, melhor se prestam para caminhadas curtas e velozes e sem percalços.
A mesma estratégia se aplica aos homens. Para tarefas que exigem maturidade e razão, deveremos contar com homens maduros, experimentados, dotados da mais ampla sabedoria. Do mesmo modo, se os obstáculos a serem vencidos necessitam de arrojo e audácia, devemos, para isto, contar com homens jovens e cheios de vitalidade para sua transposição.
Dessa forma, todos, sem exceção, reclamam e merecem ver reconhecido, o seu espaço na caminhada da humanidade. Com o devido cuidado e respeito devemos apenas, na partilha da jornada a trilhar, entregar a cada um, a tarefa que possa realizar com excelência.
Se, em determinada quadra do caminho, tivermos que trilhar uma estrada cheia de armadilhas, pedregosa e que necessite de grande experiência no seu percurso, não devemos destinar este trecho a pés macios e não calejados, calçados em sapatos novos e rígidos. Pois, fatalmente, eles não irão concluí-la satisfatoriamente, tamanhos serão os estragos advindos da impropriedade do conjunto - sapatos novos/pés macios.
Ao contrário, se a estrada a ser trilhada requer força, arrojo e ação enérgica para se rápido trilhar, não devemos entregá-la a pés ressequidos e calejados, calçados em sapatos velhos e folgados. Pois, da mesma forma, estes não irão cumprir sua missão a contento, pois já não possuem a higidez, o viço e o fogo da juventude. A necessidade do grande dispêndio de energia, de brilho e rapidez na ação, fatalmente vencerão aqueles velhos pés, calçados em frouxos e velhos sapatos.
Portanto, o que pretendo dizer é que jovens e velhos jamais podem e nem devem prescindir um do outro, agindo cada um no seu território particular e com as aptidões e eficiências que lhes são próprias.
Pois como as estradas, a vida é cheia de trechos tortuosos e ardilosos aqui, ou repleta de urgentes e impetuosos desafios acolá. No entanto, todos, para a conquista objetiva do bem comum, devem unir seus mais caros valores e despender os seus maiores esforços.
Isaac Sandes
25/11/2009.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

COMENDO UM GALO

Isaac Sandes

A estorinha é conhecida de todos: “O bêbedo ia sendo conduzido sob violenta surra por policiais, quando, passando por uma caridosa velhinha, esta apelou: - Pelo amor de Deus, matem logo esse pobre coitado, mas não o maltratem tanto - Apesar da violenta surra que ia levando, o bêbedo ainda ouviu a sugestão da velhinha e teve tempo de se defender: Não, senhora, por favor. Do jeito que vai, vai muito bem. “

Tal estorinha vem muito a propósito de recentes fatos que vi publicado nos jornais diários.

Em cinematográfica operação que, por sua envergadura, deve ter deixado fronteiras desguarnecidas, matas indefesas e população a mercê da marginalidade, reuniu-se a fina flor da Polícia Rodoviária Federal, do IBAMA e da Policia Civil alagoana, para coibir uma atividade que, com certeza, vinha abalando as estruturas da segurança e bem estar do mundo animal.

Não estou falando de um estouro de Gnus do Serenghetti, ou do assassinato do último casal de ararinha azul, ou ainda, da proteção do último tigre dente de sabre. Falo da gigantesca operação levada a efeito pelo conjunto de forças acima mencionado, a qual numa espetacular intervenção que contou com armas que faziam os morros cariocas tremerem nos sapatos, efetuou a prisão de cerca de 120 pessoas, entre espectadores e proprietários, e a apreensão de cerca de 320 galos de briga, tudo isso em poeirentas rinhas de ponta de rua.

Mas, alguém há de perguntar: “Onde é que entram o bêbedo e a velhinha nesta estória ? ”.

Explico: Os bêbedos seriam os galos apreendidos e a velhinha seriam os heróicos agentes envolvidos na galinácea operação.

Como assim ??? - Compreenderão quando contextualizar o desenlace da galiforme ação.

Concluída e comemorada com estrondoso sucesso, a operação, ao final, teve inusitado desfecho. Tal qual a velhinha da estória, os operantes agentes, ficaram tão sensibilizados com os maus tratos a que estavam sendo submetidos os pobres galos que, lhes impuseram o destino pretendido para o bêbedo; mataram todos 320 galos e os converteram em alimento de presidiários. Como os pobres galos não podiam falar tal qual os galinhos de estórias em quadrinhos, não tiveram a oportunidade de sugerir aos zelosos agentes públicos que, da forma como estavam sendo tratados na rinha, estavam indo muito bem, obrigado !!!

Teme-se agora possíveis desdobramentos violentos para esta estorinha. Após a compadecida morte dos trezentos e vinte galos gladiadores, e da sua conversão em alimento de presidiários, descobriu-se que todos eram alimentados com hormônios virilizantes para que desenvolvessem agressividade e espírito de luta incomuns. Assim, estão as autoridades vigilantes para que nas próximas rebeliões nos presídios não surjam presos brigando com esporões e bicos de tenazes.

Isaac Sandes

25/11/2009

sábado, 21 de novembro de 2009

Pistas musicais

Isaac Sandes
Aos de 40, aponto como bastante interessante o ressurgimento do Cantor inglês radicado no Brasil, Ritchie, que através do lançamento do DVD, " Outra vez " ao vivo, gravado em estúdio, (parece estranho, mas é assim mesmo) reacende seus antigos sucessos como Menina Veneno, A mulher Invisível e lança a inédita Outra Vez, canção título deste último trabalho, a qual, tenho certeza vai dar o que falar.

Aos que já chegaram aos 50, um bom mergulho no velho e bom rock, é o DVD "Carl Perkins and Friends: Rockabilly Session ", especial gravado para a televisão inglesa nos anos 80.
Numa verdadeira catarse, estão juntos e acompanhando Perkins, os monstros da guitarra, Eric Clapton, George Harrison e o Beatle baterista, Ringo Starr.
Para quem não conhece, Carl Perkins ( 09/04/32 - 19/01/98) foi um norte americano pioneiro no estilo Rockabilly, mistura de rhythm and blues e country, responsável por imortais sucessos como "Blue Suede Shoes ", imortalizado por Elvis Presley e "Honey Dont", gravada pelos Beatles.
Talvez se encontre neste marcante evento, uma pista do porquê de serem os ingleses, os grandes mestres mundiais do Rock. Ali resta demonstrado que eles bebem na mais autêntica e genuína fonte musical norte americana, ao contrário da elite daquele País, que esnoba suas origens musicais e se satisfaz com a pasteurizada e melosa música da Broadway.


sexta-feira, 20 de novembro de 2009

TIRADAS DO MEU PAI, II

Isaac Sandes

O ano é 1986, o momento é o final da campanha de Colllor para Governador.

A pequena cidade de Pão de Açucar vibrava com o evento e o favoritismo do candidato. Sua empolgante oratória arrastava centenas e milhares de admiradores para seus comícios.

O papo ia a todo vapor no senadinho formado na porta do “ João da Farmácia.

Então, chega Lula Caroso, amigo e conhecedor dos rompantes de meu pai e provoca:

- “ E aí Joãozinho ! Vamos bater umas palmas no comício do Collor ? “

E recebe a fulminante resposta:

- “ Lula, a última vez que bati palmas na minha vida foi em 1940, na cidade de Propriá, botando dois cachorros pra brigar. “

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

A FEIRA

Isaac Sandes

Somente quem nasceu e viveu numa pequena cidade de interior poderá entender a imensa riqueza do conceito traduzido na palavra feira. Não me refiro a feira no sentido moderno, que consiste em lançamentos de produtos e bens de consumo dotados da mais moderna tecnologia, mas sim, aquela feira à antiga, destinada a prover de alimentos e bens básicos, as populações interioranas. Quem leu Vidas Secas, jamais esquecerá, as experiências vividas por Fabiano e sua família, no dia da feira. Quem tomou conhecimento da obra do alagoano José Artur Justo, Verdes Pastos Imburanas, notará que toda a rica narrativa se dá num dia de feira.

Se formos tomar a palavra no seu mais marcante significado, podemos dizer: Feira, numa pequena cidade do interior nordestino, é essência, é mistério, alegria e transfiguração.

Ali, naquele microcosmo, foram ambientados os mais belos escritos regionalistas de nossa literatura. Tudo em razão da riqueza de cores, cheiros, personagens e fatos que são sua alma.

Em tempos idos, a feira se revestia de tamanha importância, que tinha o poder de transformar até o dia que a antecedia. Sua aproximação, seu ar de véspera já deixavam antever toda agitação do dia seguinte. Cozinheiras armam suas toldas, acendem a lenha de seus fogões e se preparam para alimentar aquela cosmopolita turba. Então, os mais diversos odores invadem a noite, vindos das borbulhantes panelas de barro, reacendendo apetites e gulas. No improvisado curral do matadouro, a instintiva antevisão do triste fim que se aproximava, levava o gado a um triste réquiem de mugidos e lamentos. Garis montavam as surradas bancas e os feirantes com sua ruidosa chegada antecipavam o burburinho do faustoso dia.

Pelo que tinha de festivo e lúdico, a feira da pequena comunidade convertia-se em verdadeira terapia, afastando, com seu ar vivo, qualquer sombra de monotonia ou tristeza.

Em regra, é a segunda-feira um dos dias mais impopulares, mais indolentes e indesejados da semana. Entretanto, em minha infância, por ser esse dia, dia de feira, tomava ares e movimento de uma tela impressionista, pois, entre os demais, era o único a ter cheiro. Quem não lembra dos cheiros da feira de sua infância ? Cheiro de frutas maduras, de frutas passadas, dos tira gostos vendidos a céu aberto, cheiro de gente suada, de animais e seus excrementos e o mais marcante deles, aquele que emanava dos eixos queimados dos carros de bois, assim como o agridoce cheiro dos próprios bois. Não há odores mais vivos ou marcantes do que os de uma feira.

Na antiga feira o burburinho começava já na alta madrugada. O doce cantar dos carros de bois abria a rica sinfonia de sons que iria embalar aquele dia. Em seguida, o lânguido sussurro de vozes matutas com seus mais diversos sotaques e cantares que, vindos da sala ao lado, entravam pelas frestas da camarinha nos chamavam para um alegre despertar. Eram aqueles que, ao amanhecer, invadiam nossa casa para guardar seus teréns, fazer desjejum; ouvir e contar as novidades da semana. Fechando o ciclo de contas desse belo rosário de sons; apitos de lanchas, ronco de carros de frete, buzinas de pãozeiros e os crescentes e alegres gritos dos feirantes se firmando num definitivo ar de festa. Tais sons e tais cheiros emprestavam àquela pequena cidade uma dimensão que ela não tinha no dia a dia.

Assim, o patinho feio da folhinha, a segunda- feira, tornava-se um dia de verdadeira alegria. Imediatamente, me sentia inundar de uma infantil satisfação, como se aquele evento fosse um milagroso remédio para incertezas, tristezas e o tédio que rondavam os dias comuns.

Apenas um fato poderia entristecer o sertanejo. Não dispor daquilo que costumava chamar - “ O dinheiro da feira “ - Para a criança que eu era, o único fato que causava desconforto era ver aquela procissão de cabeças baixas, almas humilhadas e chapéus na mão, que se formava na porta do poderoso chefe politico local, numa silenciosa súplica. Humilhação suportada com resignação por todos aqueles desvalidos apenas pelo prêmio de evitar a triste visão dos olhinhos famintos das inocentes criaturas que deixara em casa num esperançoso aguardo.

. Vez em quando, um sombrio temor se insinuava pelas frestas de minha mente: Ver um dia, meu pai naquela fila de zumbis morais.

Felizmente, aquela terrível sombra rapidamente era desfeita por uma realidade mais sorridente. Adulto, suspeitei a razão do mórbido pensar: Na visão nanoeconômica de criança, acreditava eu, ser a feira, o lugar onde se operava toda a mágica econômica, mágica esta que ia do surgimento ao desaparecimento do dinheiro. Para mim, aquilo era um tudo ou nada financeiro, uma imaginária e gigantesca NASDAQ, pois então estava longe de entender os reais mecanismos da economia.

A mágica daquele evento sintetizava, no decorrer de aproximadamente doze horas, o universo de toda uma comunidade.

Na feira, bêbedos eventuais afogavam suas mágoas, dívidas eram pagas ou velhacos consolidados, velhas intrigas eram resolvidas à tapa ou faca, protistutas enchiam as burras, esmolés coletavam reservas, matutos renovavam os estoques de chita, fustão e azulão; namorados se acertavam, a cadeia ganhava movimento extra, os cinemas lançavam as “novidades”, camelôs berravam seus milagres. Enquanto, de minha parte, era o momento adequado para trocar e vender os gibis que iriam garantir o cinema e o acerto de contas com a velha doceira.

Enfim, na pequena cidade, a feira renovava todos para mais um ciclo de sobrevivência. Visto de hoje, tal ciclo pode parecer curto e insignificante, mas, a seu tempo, tinha o tamanho certo e uma vital importância para aqueles simplórios viventes. Vidas que se resumiam a planos e projetos do tamanho de uma semana.

Para o sofrido povo sertanejo, sonhos e projetos nunca poderiam se dar ao luxo de se estenderem para além daqueles sete dias. Como o vôo de uma galinha, seus projetos, necessariamente, eram curtos e rasteiros. Jamais ousariam se estender além do ciclo de uma feira.

Isaac Sandes 17/11/2009



quarta-feira, 4 de novembro de 2009

NO MEIO ESTÃO OS EXTRAMADOS

ISAAC SANDES
Numa leitura rápida e pouco percuciente, a afirmativa acima parece ir de encontro à secular máxima Aristotélica que diz estar no meio a virtude, ou melhor, o equilíbrio e a medida certa para a conduta humana. Sob tal ponto de vista, jamais uma conduta extremada poderia enquadrar-se como um comportamento virtuoso, como uma medida de equilíbrio.
Como então desatar o nó górdio da aparentemente leviana e paradoxal idéia deste título. Com certeza, não será sofismando nem muito menos tecendo uma argumentação capciosa.
A resposta para tão contraditória tese, não encontra-se num debate Socrático, numa peleja intelectual e, muito menos, num compêndio de Filosofia. Ao contrário, ela é encontrada no nosso dia a dia, no dia a dia de um advogado, de um policial, nas páginas dos jornais diários, das revistas de fofocas etc.
Para mim, a comprovação da temerária afirmativa, deu-se pela observação desapaixonada do que ocorre nos três estratos sociais comumente definidos, ou seja, classe alta, classe média e pobreza.
A revelação prática do que ocorre no alto de nosso pirâmide social, vinda em socorro da debochada maxima, me foi apresentada pelos noticiosos diários, escritos ou falados, e, principalmente, pelas revistas populares de circulação nacional e de maciça penetração, comumente encontradas em barbearias e salões de beleza.
Tais meios de comunicação, têm como principal fonte de combustível os eventos ocorridos na alta sociedade, com especial destaque para os casamentos, separações e a consumação de divórcios.
Já, as agruras e dramas da classe média, observados nos malabarismos feitos com a finalidade de manter o patrimônio conquistado à duras penas, são para mim os responsáveis pela comprovação do núcleo da tese título.
Finalmente, a simplicidade, a desenvoltura e tranquilidade com que a pobreza lida com os mesmos fatos no extremo baixo do nosso estrato social, fecha o ciclo para o deslinde e compreensão definitiva da temerária afirmativa de que os extremados estão no meio.
Se estiver intrigado com tanto mistério explico:
Como insinuei acima, observa-se que no extrato mais alto de nossa sociedade, não existe traumas nem conflitos quando um casamento chega ao fim em virtude de infidelidade, uma vez que, milionários os envolvidos, facilmente se entendem com a transferência de alguns milhões de dólares para a conta corrente do outro, uma cobertura aqui, ou uma mansão ali. Assim, finalmente todos satisfeitos e felizes não patrocinam nenhum episódio de radicalismo, ou, o popular barraco. Certamente você conhece alguns casos.
Daí, transporto a cena para o extremo mais baixo da escala social. A pobreza. Como bem pode observar o mais descuidado dos seres, os casamentos ou relacionamentos neste segmento social, quando desfeitos em razão de traições conjugais, não apresentam qualquer tremor na escala Richter. Por serem todos miseráveis e, sabidamente, não possuirem nada para disputar, dissolvem seus casamentos pacificamente, tomando cada um seu destino sem nenhum trauma, quer seja econômico, quer seja pessoal ou psicológico.
Exemplo acabado de tal afirmativa tive a oportunidade de vivenciar em uma audiência de conversão de separação em divórcio.
Naquela audiência, não entendia o porque da alcunha do divorciando ser “ Carinha ”.
Só fui compreender a razão do apelido quando o magistrado indagando do mesmo, qual teria sido a verdadeira causa da separação, e ele, sem o menor pudor, confessou:
- Dr. foi gaia, muita gaia, que essa mulher me botou!
E o magistrado um pouco constrangido:
- Mas o senhor foi traído mesmo ?
Então, o “ Carinha” batendo no peito inflado tal qual um gorila de filme de Tarzan, orgulhosamente bradou:
- Dr. Desafiou existir naquela rua, alguém mais corno do que eu.
Então, inclinando-se para cochichar baixinho no meu ouvido, o seu advogado me esclareceu:
- É por isso Dr., que ele é chamado de “Carinha “ . É Carinha de corno!!
Tal exemplo nos remete ao cerne da questão, a afirmativa de que no meio é que encontram-se os extremados.
É isso mesmo amigos, no meio da pirâmide social, na classe média, é que se encontram os extremados. Isso quando o assunto é separação ou divórcio motivados pela mais primitiva forma de traição, a traição conjugal.
Nesse segmento social, as reações e atitudes são as mais radicais, as mais extremadas, por parte dos personagens. Assassinatos, suicídios, tiros, surras, desmaios, disputa por um velho fogão; um verdadeiro pastelão.
É a mais pura verdade, a classe média, o meio da pirâmide social, reaje muito mal, quando o assunto é divórcio motivado por traição. Parte para atitudes extremadas e passa a alimentar os tablóides sensasionalistas, daí para as páginas policiais e, até mesmo, para o obituário dos jornais. Donde se conclui que o sentido da dita manchada honra, encontra-se, verdadeiramente, na questão patrimonial. É ela que agita os mais viscerais sentimentos da humanidade. É a questão patrimonial a mola mestra daquilo que costuma ser, enganosamente, tomado por sentimento de honra.
Disse tudo isto para demonstrar sem medo de errar. No meio estão os extremados.
Isaac Sandes 29/09/2009.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

EMOÇÕES

ISAAC SANDES
Promotor de Justiça
Quem teve a felicidade de comparecer ao auditório da Procuradoria Geral de Justiça no último 16 de outubro, foi contemplado com um evento repleto de qualidades humanas que, atualmente, vemos tão escassas. Simplicidade, humildade, inteligência, sinceridade, amizade e amor.
O episódio que reuniu tantos valores, foi a posse no cargo de Procurador de Justiça, do Dr. José Artur Melo. O popular Batalha, ou, para os seus amigos mais íntimos, simplesmente “O Zé”.
Aqueles que estão acostumados e enfastiados com as ensebadas formalidades de tais eventos, foram surpreendidos com um momento vibrante e permeado das qualidades acima referidas. Cada um que olhasse para a fisionomia do outro ali presente, via a mais sincera feição de interesse e legítimo prazer na sua coadjuvante participação. Isto porque cada um que lá compareceu, o fez imbuido da mais sincera vontade e desfrutava com o empossado, a beleza e a elevação daquele momento. Com exceção de alguns poucos que ali foram levados pelo dever, a quase unanimidade lá se encontrava com a intenção de fazer uma celebração à amizade e ao mérito.
A gravidade que costuma permear tais eventos, foi imediatamente quebrada pela empatia que reinava entre a platéia e o homenageado. O discurso deste último foi uma verdadeira declaração de amor; amor à verdade, amor à simplicidade, amor à humildade e, principalmente, uma ode à familia e aos amigos.
Confesso que nunca vi tanta emoção no rosto de tantos convidados, emoção esta que, num crescendo com as palavras do empossando, foi tomando conta de todos quantos se identificavam com sua sincera peroração.
Como bem frisei acima, a fala do “Zé” foi uma aula de simplicidade, um voto de humildade, um raio de inteligência, um banho de sinceridade e uma revelação à amizade e ao amor. Amor de pai, amor de filho e amor de amigo.
Numa inovação sadia e sincera, não deixou de dar uma lição àqueles que um dia tripudiaram sobre o respeito e a boa convivência entre colegas e cidadãos.
O discurso, longe de conter manchas de mofo e o intolerável cheiro de naftalina, foi vibrante e escancarou, de par em par, as portas de sua alma aos presentes.
Quem tinha alguma dúvida sobre a, às vezes, face carrancuda do “Zé”, saiu dali certo de que tal carranca é apenas um acidente anatômico com consequências apenas no terreno das aparências.
Quem, como eu, está acostumado com seus arranques e arroubos passageiros, sabe que o “Zé” é um tanque de guerra feito de papel machê, recheado do mais puro e doce mel.
Isaac Sandes – 18/10/2009

sábado, 10 de outubro de 2009

DA TENDÊNCIA AO TENDENCIOSO

MAURÍCIO PITTA
Promotor de Justiça
Professor de Direito/UFAL

Todo aquele que detém o poder, um dia, fatalmente, abusará deste... Sendo assim, digo eu, a distância da tendência ao tendencioso é muito, muito pequena mesmo!
A sinonímia é marcante e fortemente presente! De duas uma: ou se tornam loucos ou se passam por enlouquecidos quando provam o doce veneno do exercício do poder!
Ao que parece tudo ocorre no exato momento em que se deixa de reconhecer a natureza intrínseca da razão e em conseqüência passa-se sistematicamente a violar e violentar preceitos e conceitos de legalidade, dignidade, moralidade, ética e consenso.
A grande pergunta é: qual deve ser a resposta a esse conjunto de atos liminarmente violentos? A priori não devemos nos dar ao luxo de protestar apenas e tão somente pelo desfiar solto de palavras inertes... O mal que o poder representa em mãos calejadas pela ignorância e arrogância se faz cada vez mais presente, cada vez mais atuante e às vezes até mesmo faz pose de garboso, galante, falsamente educado e hipocritamente democrático... É... Parece ter assumido ares de pompa e circunstância.
As pessoas de bem e do bem precisam reagir e essa não deve ser uma mera premissa, mas a sua concreção em si mesma! Deve-se ter em mente que a fortaleza das trevas consiste basicamente na mansuetude da luz... Silente os bons, os maus avançam e cada vez mais conquistam espaço.
Por que? Porque não basta tão somente se indignar, falar em pequenos grupos, gerar conclusões em ambientes limitados pela sua própria condição física, temporal e espacial.
Chega de indignação em pequenas doses! Chega de silenciar, chega de pedir paz aos senhores da guerra... Estes só entendem uma linguagem e esta linguagem não é a da submissão, da covardia, do silêncio indignado, porém ruidosa e gritantemente silencioso!
Quando nos comportamos como a avestruz da estória (já que o avestruz verdadeiro não esconde sua cabeça sob a terra), estamos dando o nosso apoio e a nossa aceitação aos atos que aparentemente condenamos. E que condenação é esta? A condenação dos mudos e dos inertes? Na verdade estamos é dando nosso apoio.
Sim, estamos apoiando, passivos e calados, tímidos e coadjuvantes. É... O silêncio consente e nosso consentimento se traduz no apoio de cordeiros.
É verdade! Quando fazemos ou deixamos de fazer algo estamos realizando uma ação, positiva ou negativa, mas uma ação. Não já se afirmou que pecar pelo silêncio, quando se deveria protestar, transforma homens em covardes?
Aliás, são de dois tipos as pessoas que apóiam tais grupos de poder: no primeiro grupo temos aqueles que usufruem das suas benesses e por isso se julgam o próprio poder; já no segundo grupo temos aqueles que, não obstante estarem fora do alcance de seus benefícios, consideram vantajoso manter o silêncio, mesmo quando diante das violências e arbitrariedades cometidas contra outros. A perspectiva vantajosa será sempre a de não serem perseguidos, atingidos ou lembrados para uma possível reprimenda!
Os primeiros, os apaniguados e áulicos, defendem suas posições sustentando-se na ilusão de que não importa o quanto se aliem ao mal, este perdurará para sempre, incluídas aí as suas vantagens, o fascínio e encanto que sentem com as suas miçangas. É como se vivessem em uma realidade distinta, ignorantes da transitoriedade da própria vida.
Mas não se importam! São vaidosos, arrogantes e pretenciosos. Enfim, são tolos!
Quando advém a queda não percebem o rastro de ressentimentos que deixaram atrás de si... Passam a criticar ao novo senhor de plantão (quando a este não aderem de imediato) esquecendo que foram personagens deste mesmo enredo em outras eras, só que na posição imediatamente antagônica em que agora se encontram.
Os outros... Os outros, ou os temerosos de todos os gêneros, vivem e respiram uma atmosfera de sensações dúbias e contraditórias, marcadas pela escravidão do próprio medo, pela inação, pela sensação de impotência. Esquecem que podem respirar dignidade! Preferem se esconder no anonimato de suas opiniões. São igualmente tolos!
Em ambos falta estofo, garra, dignidade... Esquecem valores como solidariedade e amizade e não conhecem como Machado que,
“Abençoados os que possuem amigos, os que os têm sem pedir.
Porque amigo não se pede, não se compra, nem se vende.
Amigo a gente sente!
Benditos os que sofrem por amigos, os que falam com o olhar.
Porque amigo não se cala, não questiona, nem se rende.
Amigo a gente entende!
Ter amigos é a melhor cumplicidade!”
Mas existem também os “doutro” lado. Existem aqueles que não aceitam o jugo da prepotência e da ignorância, aqueles que teimam em resistir. Não sustentam suas existências no alimento da mediocridade e decidem que mais importante do que o temor de uma derrota é não ser escravo de seus próprios medos.
Muitas vezes são chamados de loucos ou coitados! Seus críticos, em suas soberbas ignorâncias, não percebem o quão podem ser altivos e orgulhosos estes loucos e coitados que sabem que todos os direitos foram e são conquistados através da constante luta no dia a dia de suas existências.
Pois é! Ledo engano pensarem os senhores da escuridão que do simples temor nascerá uma nova era de prosperidade! Maquiavel já ensinava que “nunca foi sensata a decisão de causar desespero nos homens, pois quem não espera o bem não teme o mal” e assim tem sido ao longo da história da humanidade.
Os comandos destas legiões do mal também olvidam, coitados, que “são passageiros tanto o louvor quanto o louvado” e passam a se comportar como deuses egípcios: se imaginam intocáveis, invencíveis e inatingíveis. Afinal de contas, insano leviatã, não somos instrumentos de tua paz... Somos instrumento de tua arrogância, de tua prepotência, da tua ignorância!
A paz... Bem, esta a temos dentro de nós mesmos, no aconchego de nossas almas e no abraço fraterno de nossas famílias e dos nossos amigos. Creio que Lincoln estava certo quando afirmou certa feita que “Deus deve amar os homens medíocres. Fez vários deles”.
Não importa, pois é uma verdade insofismável a noção de que não existem fracos ou fortes... Somos todos filhos da mesma essência.
Assim é a vida! Os que pensam que ganharam e os que sabem que não perderam! Um fluir constante resvalando sempre na eterna luta entre o bem e o mal, entre o certo e o errado, guerra e paz, arrogância e inteligência... Já dizia Cícero que “os homens são como os vinhos: a idade azeda os maus e apura os bons”.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

IDIOTAS DA OBJETIVIDADE


Tenho 52 anos e já sou um nostálgico. A velocidade imposta pela globalização, pela informática, pelos Blogs e Twitters produz, a cada segundo, uma imensa leva de nostálgicos. Quando abrimos o olho após um espirro, já fomos ultrapassados pela veloz informática. Melhor, ao terminar este texto, já sou um ultrapassado, talvez metade das palavras aqui mencionadas já tenham mudado de sentido.
Hoje, nas maternidades, em vez do peito, a mãe dá para o recém-nascido, o último modelo de telefone celular. E, no berçário, não se ouve mais aquela ultrapassada algazarra de choro, o que ouvimos é uma sinfonia dos mais inusitados toques de celulares, são os pequenos recebendo os mimos dos aparvalhados avós através de mensagens de SMS, MMS e tais. No leito a mãe se preocupa apenas em checar se os muitos mililitros de silicone das mamas continuam no lugar certo. E o lácteo alimento? Os pequenos estão lá do berçário fazendo pedidos à mais moderna Delicatessen.
Mas, onde mais dói e mais se evidencia a nostalgia de que lhes falo, é no outrora lúdico ato de ir ao cinema. Naquele tempo!! Vejam vocês, qualquer um de nossa faixa de idade pode hoje, perfeitamente, lançar a bíblica e longíqua frase: “Naquele tempo!!!”. Como acabados Matusaléns. Mas, como anacronicamente ia dizendo. Naquele tempo..., a ida ao cinema era um evento lúdico, quase bucólico. Vestíamos a melhor roupa, tagarelávamos desde o dia anterior sobre os mistérios do filme e, como aves de arribação, marchávamos em bando para o templo do divertimento. Uma verdadeira máquina do tempo feita de tijolos, cadeiras luzes e tela. Lá, ao som de “Siboney” executada por Ray Conniff, em suspense, aguardávamos o começo do filme ser anunciado pelo “Tunga”. Para quem não conhece, -“Tunga”- era o aparelho que reproduzia um misterioso som, parecido com graves badaladas, anunciando o início do filme nos antigos cinemas -.
A exibição era um capítulo à parte, a platéia interagia mais com o filme do que atualmente interage com o Big Brother. Não era necessário um 0800. Dali mesmo um gritava: “Cuidado, não confie nesse bandido!”, ou “Vai Tarzan, vai, Tarzan, vai, vai...!!!. Ou gritavam xôs para o Condor” E, ao final, quando o mocinho sempre levava a melhor, todos, num agradecido aplauso, iam às lágrimas.
Um capítulo à parte eram as intercorrências inesperadas. Lembro de algumas: Tonho Sem Osso, era um relaxado gordo que, nas pequenas cidades, fazia exibições itinerantes. Chegava numa cidadezinha, armava uma tela na principal praça ou no oitão da igreja, e, em meio ao grande reboliço que provocava, exibia suas “novidades” cinematográficas.
Certa vez, exibindo uma “Paixão de Cristo” para compungida platéia, se atrapalhou na troca dos rolos de filme e, no grave momento da crucificação, inesperadamente, apareceram Cowboys em desabalada carreira e em encarniçado tiroteio. Tonho Sem Osso, só teve tempo de enrolar a tela, botar as latas do filme debaixo do braço e sumir.
Caso não menos particular se deu na cidade de Batalha. Ali, dono do cinema matava a tiros quem o chamasse de “Don Ratão “. Certa vez, foi insistentemente adulado para exibir determinado filme da preferência dos “habitués“. Por seu lado, Dom Ratão argumentava: “Esse filme não presta prá passar, esse filme tá doente”. - Querendo dizer que o filme era velho e tinha muitas emendas -. No entanto a malandragem insistia: “Passa assim mesmo, passa assim mesmo”. Finalmente convencido, resolve exibir o “doente” filme. De repente, como esperado, a fita parte, as luzes se acendem e a vaia invade a cabine de Don Ratão. Então, ele liga o sistema de som do cinema, empunha o microfone, emposta a voz e diz: - “ Minha gente, eu não disse a vocês que essa fita tava doente !!! ”. Nova vaia, e começam os gritos: “Don Ratão... Don Ratão”. Abrasado pelo carvão da máquina e pela covarde provocação, Don Ratão empunha novamente o microfone e brada: “ Don Ratão, é o c. da mãe... Don Ratão é o c., da mãe. Filhos da puta...”. Assim, debaixo de estrondosos apupos, encerrou-se a apresentação daquele dito “ filme doente”.
Hoje, todo freqüentador de cinema é um autêntico e acabado intelectual. A assistência faz um silêncio de vácuo, até os sacos de pipocas, os papeis de confeito, constritos, aderem ao silêncio. Todos assistem ao filme numa impassível pose, parecem bonecos de Vitalino emparelhados. Pergunte a qualquer um que acaba de sair do cinema: “Gostou do filme? “. E a empinada resposta: “ Um tanto quanto noir”. E emenda enigmático: “Um verdadeiro mergulho na alma humana.” Mesmo que o título tenha sido, “Um breve olhar sobre o universo das manicures”.
É amigos, não mais existe aquela alegria infantil que contagiava velhos e meninos na saída dos antigos cinemas. Não temos mais os grandes contadores de filme que, no dia seguinte, faziam uma grande roda na principal praça da cidade e, com espetacular riqueza de detalhes, contavam todo o filme aos irrecuperáveis quebrados.
O maior exemplo de um desses raros espécimes era o Mestre Roque, baixinho, gordinho e falante , sempre vestido num conjuntinho Cáqui, Mestre Roque contava um filme com tal riqueza de detalhes que o próprio roteirista se renderia a seus acréscimos e exageros. Até hoje, não sei mesmo o que era melhor, se assistir ao filme ou ouvir a versão de Mestre Roque.
Por tudo isso, é que não me conformo com esse mundo edificado pelos chamados “Idiotas da objetividade”, tão bem tipificados pelo genial Nelson Rodrigues, os quais jamais se permitem uma fantasiosa prosa, jamais param para ouvir um artista da narrativa deitar fora o Charles Dickens que há dentro dele. Minto, tais amantes da objetividade se permitem sim uma fala solta, cheia de fantasias, impregnada de infantil conteúdo. Porém tarde demais, pois tal retorno a infância só lhes é permitido diante de um entediado psicanalista, o qual, ao contrário do Mestre Roque, cobra muito caro para os ouvir.

Isaac Sandes – 26/09/2009


[1] Expressão cunhada por Nelson Rodrigues.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

O CONFISCO DA ZABUMBA

ISAAC SANDES


O dia corria modorrento naquela longíqua Comarca. Entediado, aguardava o início da próxima audiência. De repente, num movimento brusco, a porta do gabinete se abre e o enorme susto. Diante de mim, se apresenta a soturna figura. Trajava paletó preto, bigodes e cabelos mais pretos que o paletó, o penteado a la Carlos Gardel, denunciava o uso de não menos que um frasco de creme, brilhantina ou sei lá o que. Tinha a tez um tanto quanto macilenta. Não fosse a ofuscante luz da primavera, juraria que estava diante de um morto vivo. Só faltava ao dito, os tufos de algodão nas narinas.
Disfarçando meu lastimável estado, levanto-me, pernas ainda bambas e cordialmente o recebo:
-Pois não Senhor.
-Bom dia doutor. Aurélio Troncoso, causídico; posso entrar?
Tamanho foi meu susto que só notei o humilde casal postado logo atrás da sinistra figura após o cumprimento.
- Fiquem à vontade, fiquem à vontade. Em que posso ser útil ?
Cerimoniosamente, querendo coadunar a gravidade de sua figura com a liturgia da profissão, o dito causídico narrou:
- O que me traz aqui é o seguinte: Esse cidadão é um sanfoneiro conhecido pelo apelido de Totonho Xamego, e essa senhora chama-se Josefa dos Santos Silva, proprietária dum barzinho lá na ” Rua do Rego Sujo,” – Estranhe não doutor, é por causa do esgoto a céu aberto – mas, como ia dizendo, todo mundo só a conhece por “ Zefa do Bar”.
Pelo início da narrativa, vi que não estava diante de um episódio de assombração , relaxei e pedi:­
-Pois não, prossiga !
–Pois bem. Disse, temperando um inexistente pigarro.
–No último sábado, a Zefa contratou os serviços musicais do conjunto de forró, aqui do Totonho. - Zefa, que até então continuava calada, interrompeu:
–Foi mermo doutor, o movimento tava fraco lá no bar e eu, procurando minhas melhora, inventei de fazer um “armoço musical”. - Concordei e pedi para o causídico prosseguir.
Já se tornando simpática, a antes sinistra figura continuou:
– Como ia dizendo doutor!! Então, o conjunto do Totonho passou a animar o bar da Zefa. O senhor sabe como é músico né, de vez em quando uma birita, e o volume do som foi subindo. Até que, se sentindo incomodado, algum vizinho ligou pra Polícia.
Não sei se era gente importante, ou se foi o bicho que fez do acontecido, só sei é que imediatamente chegou um monte de viaturas. Sirenes ligadas, luzes piscando e lotadas de homens armados até os dentes. Aí doutor, numa operação que parecia a SWAT, os rádios dos homens de instante em instante diziam: “Ok, positivo e operante… – E o outro – Copiei, estou em QOP. Operação no Bar da Zefa em andamento…Individuos imobilizados; aguardo novo comando…Desligo.” Segundo me contou o próprio Totonho, chegaram até a berrar: “ Ei, você aí, arreia a sanfona. Você, jogue a zabumba no chão”. A verdade doutor. -- Prosseguiu. – É que levaram tudo, Sanfona, Zabumba, Triângulo; tudinho, do coitado do Totonho. Só tou lhe incomodando por que é o ganha pão desse miserável .
Agora, totalmente relaxado e sensibilizado pelos fatos, pensei num bom juridiquês: – “ Tais fatos se encaixam perfeitamente no princípio da insignificância, sem falar na desproporção de forças e recursos empregados. Até a tipicidade dos fatos deixa dúvidas. ”
Sem que revelasse tais questões aos aflitos cidadãos, disse-lhes que não pouparia esforços no sentido de providenciar a devolução de seus instrumentos de trabalho, visto que estávamos numa quinta feira e o dia seguinte seria fatal para a assinaturas de novos contratos de animação de “armoços musicais”.
Imediatamente fui à Secretaria da Vara, localizei o Termo Circunstanciado de Ocorrência, tirei cópia, levei-a até a Defensora Pública e lá, quase digitei o competente requerimento liberatório.
Volto para minha sala para adiantar meu parecer. Então, um grande obstáculo: O computador se mostra imprestável. Ao ver a ação ameaçada pelo velho computador, o “Adams” causídico, vem em meu Socorro e oferece seu Notebook. Aceito e começo a redigir. Termino e procuro conectar à impressora. Nova surpresa: Quebrada. Diante da segunda dificuldade material, procuro me socorrer de um reles Pen Drive. Ninguém possuia um, muito menos a Promotoria. Corro com o Note Book debaixo do braço e, finalmente, imprimo o bendito parecer na sala da Escrivã que aceitou com indisfarçável “ Carinha de tédio.”
Todos deram um profundo e aliviado suspiro.
Faltava apenas sensibilizar o nobre Magistrado. Mas isso eu julguei ser obra fácil. Cerimoniosamente me dirigi ao gabinete do MM. Uma vez lá, até exagerei o estado de desespero do sanfoneiro. Mas, vamos lá. Tudo pelo bem da causa. Após minha pungente oração para sensibilizar o Magistrado, em suspense, aguardei a redentora resposta: “ Tá bem, vou despachar agora!!”.
Mas, para surpresa de todos envolvidos naquela via crucis, o nobre Magistrado, usando de toda a pose que seu cargo permitia, fez um meneio de cabeça e solenemente disparou: – “ Farei uma análise perfunctória do caso. Despacharei às onze horas de amanhã “.
Congelado de espanto e frustração, voltei à minha sala e, diante do sanfoneiro, do causídico e Zefa do Bar, só pude lhes dizer: – “ Amigos…! Zabumba só amanhã”. Isaac Sandes – 27/09/2009.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

DO TRAJE AO ULTRAJE: A DECOMPOSIÇÃO DE UM ESTILO DE VIDA


GEORGE SARMENTO

O estilo nada mais é que o movimento da alma”, sentenciou Michelet . Buffon chegou mesmo a afirmar que “o estilo é o próprio homem”. É o retrato do espírito em toda sua crueza e contradições. A moda é um dos mais importantes códigos de comportamento social. É o elo que une o homem à contemporaneidade. É a expressão do apogeu, acomodação ou decadência de uma vida. Daí porque a análise da personalidade humana sob a perspectiva da indumentária e do mobiliário doméstico é um dos temas mais recorrentes da literatura universal.
É também o pano de fundo de Do Traje ao Ultraje, a mais recente obra de Enaura Quixabeira, lançada em edição bilíngüe (português-francês) pela EDUFAL, em comemoração ao Ano da França no Brasil. Trata-se de crítica literária ao romance Crônica da Casa Assassinada, de Lúcio Cardoso.
Editado em 1959, o romance aborda a decadência da aristocracia rural provocada crise do café em Minas Gerais, nas primeiras décadas do século XX. Um clássico da literatura, ainda desconhecido de boa parte dos leitores brasileiros.
A Autora mergulha no universo cardosiano para analisar a decadência de um estilo de vida que não conseguiu sobreviver às profundas mudanças no cenário econômico do Brasil. A trama do romance gira em torno da tradicional Família Meneses, que resiste às mudanças de valores sem se dar conta de sua impotência diante de uma nova era que destruirá para sempre o modelo patriarcal e endurecido pela rigidez de costumes que imperava nos latifúndios brasileiros.
Acontece que o inflexível sistema moral – aparentemente sólido e inquebrantável – alimentava-se de hipocrisia, remorsos, auto-exílio e suicídio. Um modelo preso a convenções irracionais, em que não há espaço para felicidade e o amor. O pior é que os membros da família, imersos em frustrações, nem percebem a putrefação de seu universo, que está prestes a desmoronar.
Nesse aspecto, a obra da professora Enaura Quixabeira desenvolve uma interessante análise sociológica sobre os fatores que provocaram a estagnação do regime semi-feudal que imperou no Brasil até 1930, época em que o poder concentrava-se nas mãos dos senhores de engenho e dos barões do café.
Os Meneses são o arquétipo de tantas outras famílias aristocráticas brasileiras que só concebem o país como produtor de matéria-prima, uma elite que se recusa a adaptar-se aos tempos de progresso e de desenvolvimento. Famílias que não conseguiram perceber as mudanças decorrentes do fim da mão-de-obra escrava, da chegada dos imigrantes, da mecanização agrícola, da migração para os centros urbanos e da crescente industrialização do país.
Os primeiros sinais do declínio podem ser percebidos pelo mobiliário. A chácara era velha, com muitos cômodos vazios e descuidados. Nota-se que a mobília, importada da Europa, estava descuidada e imprestável. Um grande espelho trincado de lado a lado, paredes descascadas, janelas que não se abriam, telhas tombadas são alguns sinais do isolamento e segregação social de seus habitantes.
A decadência também é retratada por uma sucessão de personagens que corporificam a desintegração familiar. Demétrio – a representação do patriarca – invariavelmente usava roupas antigas, conservadoras, completamente fora dos padrões das primeiras décadas do Século XX.
Os ricos fazendeiros recusavam-se afastar-se das tradições para aderir a modismos burgueses, de gosto questionável. A resistência é uma tentativa desesperada de preservar estruturas corroídas, profundamente ameaçadas pelas forças sociais transformadoras. Aderir à nova ordem significa pôr fim às estruturas sólidas que vicejaram por vários séculos no Brasil. E isso eles não admitirão jamais.
A personagem, Valdo, também se veste com esmero, apuro e espalhafato. Seus ternos e gravatas são bem cortados, vistosos, mas fora de moda. Incorpora – ainda que intuitivamente – o dandismo europeu com todas as suas extravagâncias visuais e a certeza da inexorável decadência, diante do avanço da democracia e do processo de estandardização do vestuário.
Outra personagem paradigmática é Ana, mulher torturada pela solidão e pelo medo de entregar-se ao amor, incapaz de transgredir as regras e viver um romance proibido. Mulher ensimesmada, atormentada pelo pecado, completamente voltada para o universo familiar. Transforma-se numa espécie de guardiã dos costumes, adotando postura hipócrita e dissimulada. A frustração reflete-se em suas vestes, um indefectível vestido preto, desbotado, austero. Seus sapatos, velhos e surrados, mostram o total alheamento às tendências da moda. É uma pessoa descontextualizada, estranha à sua época. Adota uma postura conservadora de defesa das tradições aristocráticas e se mostra refratária a toda tentativa de transformação do modus vivendi da família. Por isso vê a moda como uma ameaça ao frágil equilíbrio daquele modelo ultrapassado, que insistia em sobreviver num mundo em constantes transformações.
Nina representa a chegada da modernidade naquele ambiente esclerosado e decadente. Sua indumentária alegre, colorida e sensual, contrastava com o clima severo que dominava a mansão dos Meneses. A indumentária era um convite à subversão da ordem familiar. O gosto por vestidos decotados, leves, vaporosos era uma forma de desafiar a monocromia dos salões senhoriais – o último bastião de uma estrutura social prestes a desmoronar. No fundo a personagem tentava mostrar ser possível romper com o passado e enfrentar os desafios que o novo século impunha.
Mas as resistências às mudanças de paradigma estavam tão arraigadas entre os Meneses, que Nina terminou afogada pelo preconceito, pela intolerância e pelo imobilismo. Sua presença não foi capaz de mudar os velhs hábitos. Os chapéus coloridos, os decotes, os acessórios vistosos, as capas, tudo evocava o frescor de um novo mundo que se descortinava. Mas era inútil. Assim como a modernidade fora afastada para sempre dos aposentos senhoriais , Nina também sucumbiu a uma doença que destruiu os seus sonhos, degradou a alma e apodreceu lentamente o corpo. A sua morte também foi o último passo para a decadência e a ruína da família.
Por fim, a imagem da decadência é representada por um obeso barão. Flácido, completamente dominado pela gula desmedida, uma verdadeira representação da ociosidade em detrimento do trabalho e do progresso da nação. Um simbolismo ao agonizante baronato rural, completamente incapaz de conduzir o Brasil a caminho da modernidade.
Mais do que uma crítica literária, Do Traje ao Ultraje é uma obra de grande densidade científica, que nos faz refletir sobre importante período da História do Brasil. O texto é límpido, de fácil compreensão, dispensando a leitura da Crônica da Casa Assassinada. As teses defendidas pela autora encontram eco em grandes sociólogos franceses como Baudrillaard e Fromilhage. A obra é fruto de profunda pesquisa realizada na Universidade de Grenoble, onde a autora obteve o Doutoramento em Letras.
O vestuário é a armadura do homem. Oscar Wilde afirmava, com fina ironia, que “a moda é o que vestimos. Démodé é o que vestem os outros”. Mas uma coisa é certa: ela pode revelar os nossos segredos mais profundos, o jardim secreto de nossas almas. É o que diz o verso do cancioneiro popular Zeca Baleiro: "quando o homem inventou a roda, logo Deus inventou o freio. Um dia um feio inventou a moda, e toda a roda amou o feio". Tenho certeza que Du Vêtu au Dévetu ocupará espaço privilegiado na literatura brasileira, como referência obrigatória para todos que desejarem desvendar a essência da natureza humana a partir de símbolos e arquétipos de estilos de vida.