sábado, 11 de outubro de 2025

D. PEDRO II EM ALAGOAS: ENTRE A CAATINGA E OS CANAVIAIS


Porto de Piranhas, Baixo São Francisco, anos 1860. Imagem: Brasiliana - Biblioteca Nacional.  


George Sarmento


Na década de 1850, o governo de D. Pedro II estava consolidado. Começava uma era de grande prosperidade econômica e estabilidade política. Já no primeiro ano, a Lei Eusébio Queiroz decretou o fim do tráfego negreiro, atraindo a emigração europeia – principalmente italiana – para trabalhar nas fazendas de café em substituição à mão-de-obra escrava. Também entrou em funcionamento a primeira linha de navegação a vapor, que ligaria o Brasil à Europa. Nos anos seguintes, surgiram as primeiras estradas de ferro e redes de fios telegráficos, houve a expansão da navegação fluvial, a fundação de escolas primárias e de estabelecimentos de ensino secundário.

 

No plano institucional, o Imperador gozava de grande popularidade. A política de pacificação nacional fora bem-sucedida. As aparições públicas eram recebidas com entusiasmo. Conseguira apaziguar os ânimos entre conservadores e liberais, contendo posições extremadas das facções rivais. Trabalhava na reestruturação dos partidos políticos e no fortalecimento da monarquia parlamentar. 

 

D. Pedro II empenhou-se em melhorar a infraestrutura, realizando obras como calçamento de ruas com paralelepípedos, fornecimento domiciliar de água, linhas de bondes puxados a burro, arborização de avenidas e praças. O clima de otimismo estimulava a expansão do comércio e da indústria nacional. Era reconhecido como patrono das ciências e das artes, responsável por uma engenhosa política de distribuição de bolsas de estudos na Europa para estudantes talentosos e promissores. 


O Rio de Janeiro adotara ares cosmopolitas: a moda francesa dava o tom da elegância, teatros e restaurantes luxuosos atraiam as elites, bailes e banquetes suntuosos movimentavam a Corte. A rua do Ouvidor tornara-se símbolo de sofisticação e bom gosto, aproximando-se da modernidade europeia com lojas, alfaiates e costureiras de renome. Seus cafés, livrarias e redações de jornal eram ponto de encontro de intelectuais, artistas e políticos.

 

Aos 34 anos, D. Pedro II estava decidido a expandir seu projeto civilizatório. Na Sessão Imperial de 11 de setembro de 1859, anunciou o desejo de empreender longa viagem: “Para melhor conhecer as Províncias do meu Império, cujos melhoramentos morais e materiais são alvo de meus constantes desejos e dos esforços de meu governo, decidi visitar as que ficam ao norte da do Rio de Janeiro”.  A ideia era visitar as províncias do Espírito Santo, Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco e Paraíba.

 

A viagem, que duraria cerca de quatro meses, revestia-se de grande simbolismo. O monarca demarcaria a presença do governo em lugares remotos, alargando a visibilidade da realeza. Buscava fortalecer o sentimento de pertença ao Império e promover a unidade nacional, prevenindo a eclosão de movimentos separatistas, como ocorrera na Colônia e Regência. Queria também conhecer o Brasil profundo, com suas belas paisagens, diversidade cultural, natureza exuberante e povo acolhedor.

 

Na província de Alagoas, a comitiva imperial dividiu a visita em duas etapas. 


A primeira consistia no percurso entre a foz do rio São Francisco até a cachoeira de Paulo Afonso, passando por povoados ribeirinhos e cidades sertanejas. D. Pedro II viajaria desacompanhado da Imperatriz, pois decidira poupá-la dos transtornos da viagem a ser empreendida pelas íngremes e empoeiradas estradas do sertão, fustigadas pelo sol inclemente.   


Na segunda etapa, D. Pedro II e D. Tereza Cristina inspecionariam a cidade de Maceió e arredores, e seguiriam para a comarca de Porto Calvo, passando por povoações, sítios históricos e  engenhos de açúcar, até chegar em Colônia Leopoldina, posto militar instalado em 1852 com o objetivo de enfrentar remanescentes dos revoltosos das guerras dos cabanos e papa-méis, escondidos nas densas matas da região.


O comunicado de que o Imperador visitaria Alagoas foi feito em 05 de setembro de 1859, e movimentou as mais altas esferas de poder. O governo era exercido interinamente pelo 2o vice-presidente da província, Jacinto Paes de Mendonça, um abastado senhor de engenho que aguardava ser substituído a qualquer momento.


Coube a ele tomar as primeiras providências para recepcionar a comitiva imperial e criar as condições necessárias para que a programação fosse cumprida à risca. Deparou-se com uma atmosfera política conturbada, marcada pela violência e rixas entre os adversários. Trabalhou arduamente para estabelecer trégua temporária e aglutinar as elites em torno do Imperador.


Sabendo que dispunha de pouco tempo para organizar a recepção, nomeou comissões de pessoas influentes que ficariam responsáveis pela organização de eventos sociais, arrecadação de recursos financeiros, limpeza pública, hospedagem, meios de transporte, vias de acesso aos lugares a serem visitados, além de banquetes, bailes e outras atividades sociais.


Em pouco tempo toda a província mobilizava-se para receber em festa o Imperador, na esperança de que o soberano levasse consigo uma boa impressão do acolhimento alagoano.


Em 01 de outubro de 1859, o casal imperial embarcou no Apa, pertencente à Companhia Brasileira de Paquetes a Vapor, e iniciou a viagem que duraria cerca de 4 meses. A embarcação foi escoltada pela esquadra formada pela Fragata Amazonas, Corveta Paraense e Canhoeira Belmonte. Durante a incursão em Alagoas também embarcou na Pirajá, melhor adaptada à navegação fluvial.

 

  

D. Pedro II com cerca de 35 anos. Tela pintada por François-Marie Daniel Bérard. Data não informada. Restaurada por Olavo Baptista em 1910. Acervo do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas. Foto do Autor.

VIAGEM AO RIO SÃO FRANCISCO E  À CACHOEIRA DE PAULO AFONSO

D. Pedro II acalentava o sonho de percorrer a região do Baixo São Francisco, navegar em suas águas, fazer longas cavalgadas, visitar freguesias e vilas ribeirinhas até chegar à cachoeira de Paulo Afonso pelo lado de Alagoas.

Anos antes havia contratado Guilherme Halfeld para realizar pesquisas no local e informá-lo de suas potencialidades. O Imperador tinha dois projetos em mente: tornar o rio navegável e projetar um sistema de "encanamento" (hoje transposição) que desviasse as águas para outros pontos do semi-árido. A ideia já era objeto de debates no Senado como alternativa à seca que assolava o Ceará. 

Entre 1852 e 1854, o engenheiro alemão  percorreu 382 léguas marítimas, cerca de  dois quilômetros, produziu estudos e mapas de toda a extensão, desde a nascente, em Minas Gerais, até a foz, em Alagoas, com diversas propostas para solucionar o problema - sobretudo transpor as águas do São Francisco para o Jaguaribe, no Ceará - que nunca foram postas em prática por boicote de parlamentares nordestinos que rejeitavam a destinação de verbas orçamentárias para a obra, muito mais interessados em lucrar com a indústria da seca do que levar água para os sertanejos. 

Defensor do projeto de transposição,  o Imperador decidira navegar visitar freguesias e vilas ribeirinhas até chegar à cachoeira de Paulo Afonso, utilizando como meios de transporte pequenas embarcações e cavalos. No início da manhã de 14 de julho de 1859, registrou em seu diário a chegada na então freguesia de Piaçabuçu, onde o rio desemboca no mar. Foi saudado efusivamente com fitas coloridas e uma banda de rabecas. Visitou rapidamente o povoado, com suas casas de pau a pique cobertas de sapê, a escola primária, rezou na pequena capela. Apreciou a paisagem, conversou com habitantes - pescadores e pequenos lavradores.

As festas continuaram na Vila de Penedo onde a comitiva foi recepcionada com entusiasmo pela população ao som das bandas da Guarda Nacional e Polícia de Maceió. No auge de sua juventude, o Imperador esbanjava vitalidade e simpatia. Vestia casaca preta, com dragonas douradas, calça branca listrada em ouro, faixa azul sobre o colete branco, o peito coberto de medalhas.


Estandarte do Clube 16 de setembro hasteado na visita de D. Pedro a Penedo. Acervo do Instituto Histórico de Alagoas. Foto do Autor.

Ao desembarcar foi convidado para o Te Deum no Convento dos Franciscanos, inaugurado em 1708. Terminada a cerimônia D. Pedro II visitou igrejas, prédios públicos, residências aristocráticas, escolas. Participou do ritual "beija-mão", sendo homenageado pelas autoridades e cidadãos proeminentes. No dia seguinte ainda teve tempo de percorrer a cavalo fábricas, plantações e fazendas. No hospital observou que havia uma verdadeira epidemia de sífilis, causando grande sofrimento aos pacientes internados.


Croquis a lápis atribuído a D. Pedro II, retrata a vista de Penedo a partir do São Francisco.

Mais tarde, embarcou no Pirajá para dar continuidade ao itinerário no Baixo São Francisco. Em Colégio rezou na  matriz e foi recepcionado por remanescentes indígenas que viviam nas proximidades e não hesitaram em demonstrar suas habilidades com arco e flecha. Dali seguiu para Traipu onde pernoitou na Casa da Câmara. Aproveitou para cavalgar nos arredores e visitar a escola de meninas. 

A viagem continuou até Pão de Açúcar, onde o Imperador foi recebido efusivamente, recebendo a chave da vila pelas mãos de uma menina vestida de anjo, ao som do hino da Independência, interpretado por uma orquestra de rabecas. Depois de uma noite maldormida, seguiu viagem até chegar a Piranhas, onde o esperavam cerca de 140 cavaleiros, que o acompanhariam por terra até a cachoeira de Paulo Afonso, ponto alto da viagem. 

Embrenhou-se pela caatinga tomando os caminhos pedregosos que o levariam às quedas d'águas. Homem de ciências, anotou em seus diários tudo que julgou relevante e inusitado. Apreciou os mandacarus, caraibeiras, angicos, quixabeiras, xique-xiques, coroas-de-frade e caroás, entre outras espécies da vegetação sertaneja. Encantou-se com as rolinhas, acauãs, xexéus, nambus, ficando muito impressionado com os ninhos dos casacos de couro. Tomou conhecimento de sítios arqueológicos próximos, ricos em pinturas rupestres, mas não pode visitá-los para não sair da rota. Bebeu água de chuva, enfrentou trovoadas, sofreu com o calor abrasador, dormiu em rústico barracão coberto de palhas.

Na madrugada do dia 20 de outubro, a caravana imperial saiu de Salgado, chegando ao destino por volta de 5 e meia da manhã. Após cavalgar quase uma légua, finalmente pode ouvir o ruído da cachoeira. D. Pedro II passou grande parte do dia a apreciá-la por diversos ângulos, sempre procurando os melhores pontos de observação para contemplar os 80 metros de queda, mesmo correndo o risco de sofrer acidente, como aconteceu com uma das integrantes do grupo.

A visão da cachoeira o deixou encantado. Reconheceu ser impossível descrevê-la em sua grandiosidade e majestade. Anotou em seu caderno: 

"é belíssimo o ponto de que se descobrem 7 cachoeiras que se reúnem na grande que não se pode descobrir daí, e algumas grandes fervendo a água em caixão de encontro à montanha que parece querer subir por ela acima; o arco-íris produzido pela poeira de água completava essa cena majestosa."

Ao que tudo indica, as belas paisagens, as águas em redemoinho, o estrondo das quedas d'água, tudo isso causou forte impressão ao Imperador. Tanto é assim que, no ano seguinte, encomendou ao fotógrafo Augusto Stahl uma foto que se tornou icônica, e serviu de base para diversas produções artísticas, sobretudo a pintura de Germano Whanschaffe, que a retratou em óleo e tela.




Augusto Riedel. Cachoeira de Paulo Afonso: Vazante. 1868/69. Fonte: Brasiliana fotográfica.

Cumprida a missão, D. Pedro e sua comitiva voltaram a Penedo, onde continuariam as homenagens. Mas resolveu embarcar antes do previsto a Salvador para se juntar à D. Tereza Cristina e dar continuidade à expedição. Não compareceu a um baile organizado pelas autoridades locais, mas designou o Presidente da Província, Comendador Manoel Pinto de Souza Dantas, representá-lo na memorável noite. A ausência do convidado foi lamentada, mas não não tirou o brilho da elegante noite festiva.


MACEIÓ: NOS RASTROS DA MISSÃO FRANCESA

Depois de visitar as províncias de Pernambuco e Paraíba do Norte, a comitiva imperial desembarcou em Maceió no 31 de dezembro de 1859. Nos meses anteriores a cidade mobilizara-se para receber o ilustre visitante. O Presidente da Província mobilizara a população para fazer melhoramentos nas vias públicas, aterrar os buracos das ruas lamacentas, pintar faixadas, limpar o lixo acumulado, tudo para agradar o monarca. As pessoas mais abastadas ficaram encarregadas de organizar banquetes, bailes, recepções e, evidentemente, hospedá-lo condignamente.

A crônica da época conta que a comitiva desatracou do APA e rumou para a terra firme debaixo de disparo de canhões e fogos de artifício. Adentrou o Trapiche Faustino, ricamente decorado para a ocasião, onde uma comissão encabeçada pelo Presidente Souza Dantas e constituída de autoridades locais e cerca de quarenta senhoras recepcionaram os visitantes. Em seguida formou-se um cortejo tendo à frente Batalhão da Guarda Nacional e o Batalhão Patriótico D. Pedro II formado por estudantes que acompanharia o casal real até o centro para a entrega da chave da cidade e o tradicional Te-Deum, que marcaria a abertura da Matriz.  

A Matriz, consagrada à padroeira da cidade, Nossa Senhora dos Prazeres, foi projetada pelo célebre arquiteto francês Grandjean de Montigny,  membro da Missão Artística Francesa que chegou ao Brasil em 1816, a convite de D. João VI. O destino quis que seu neto estivesse presente na benção do templo, cuja pedra inaugural havia sido lançada há 19 anos. O casal real foi conduzido pela Irmandade do SS. Sacramento até um dossel onde havia dois genuflexórios para assistir a missa solene de inauguração da atual Catedral de Maceió.

Terminado o ato litúrgico, os soberanos atravessaram a praça da matriz, que abrigava o conjunto arquitetônico mais imponente da cidade, até chegarem ao palacete que serviu de Paço Imperial, propriedade do Comendador José Antônio de Mendonça, mais tarde Barão de Jaraguá.  O percurso a pé  foi acompanhado por uma multidão vibrante, honra com a real visita. Durante todo o dia as festas continuaram com salvas de tiros, beija-mão, formação de batalhões, iluminação da cidade, execução de peças musicais.

Ainda ficou dois dias em Maceió interessado em visitar monumentos, igrejas, escolas, cadeias, cemitérios, teatro, hospitais. Aproveitou para cavalgar pelos bairros mais longínquos da cidade, sempre fazendo perguntas aos interlocutores e tomando notas em seu diário.

ENGENHOS DE AÇÚCAR E  CANAVIAIS

Com seus engenhos de açúcar, portos e rios navegáveis, Porto Calvo era então o centro econômico mais próspero da província, graças à indústria do açúcar. A região fora palco de grandes batalhas contra a ocupação holandesa. Ali nasceu Domingos Fernandes Calabar,  que serviu às tropas invasoras, sendo executado em 1635 - hoje um dos personagens mais controvertidos da história do Brasil. 

D. Pedro II tinha grande interesse em visitar os sítios que foram palco de resistência à invasão batava. Chegou a passar pelo palco da Batalha de Mata Redonda, em que as tropas da união ibérica sofreram grande derrota em 1636, o que retardou em alguns anos a expulsão dos holandeses. 

Os engenhos de açúcar eram a base da economia local. O Imperador percorreu diversas propriedades, acompanhando as etapas de produção industrial. Ficou hospedado no engenho Novo, cujo proprietário era Jacinto Paes de Mendonça, o mesmo que havia assumido brevemente a presidência da província até a nomeação do Comendador Souza Dantas. O hóspede ilustre anotou em seu diário: "excelente casa de vivenda". Sobre o anfitrião confessou que sua fisionomia e maneiras muito o agradavam. Aliás, ele foi responsável pelo lendário almoço oferecido ao soberano a caminho para Colônia Leopoldina.

No meio da mata, a caravana apeou para se refastelar com um banquete à sombra de frondosas árvores. Tudo foi feito para agradar o Imperador: taças do mais fino cristal, baixelas de prata, serviço impecável e a excelência da cozinha regional. Dizem que o convidado de honra almoçou divinamente. Até o hoje o trecho da estrada é conhecido pelo real acontecimento. Jacinto Mendonça gastou com a hospedagem cerca de 200 contos de réis, uma verdadeira fortuna para a época.  Dizem que quase entrou em falência, tendo levado muito tempo para recuperar as combalidas finanças.  

A última etapa foi Colônia Leopoldina - batizada em homenagem à filha do Imperador, princesa do Brasil. Situada no vale do Jacuípe, a colônia militar pertencia a Porto Calvo, tendo sido fundada para defender a região de grupos sediciosos que se embrenhavam nas matas, delas só saindo para saquear engenhos e fazendas. Hospedado na Casa da Diretoria, D. Pedro II percorreu o povoado e plantou quatro mudas de castanholas, duas das quais ainda sobrevivem como símbolos da cidade.


A VIAGEM CHEGA AO FIM

No dia 8 de janeiro, a cidade preparou-se para oferecer a D. Pedro II  o maior festejo. Na praça da Matriz haveria uma queima de fogos de artifício nunca vista pela população: "um imenso painel com a coroa imperial no alto, faria descerrar, sob mil efeitos luminosos coloridos, os retratos dos soberanos, na hora aprazada, rematando os festejos, sob as aclamações do povo em delírio e um foguetório infernal", assim descrevia Abelardo Duarte. Em seguida deu-se início ao baile no Palacete da Assembleia Legislativa Provincial, com a presença da alta sociedade e das autoridades mais influentes. Embora o soberano tenha recomendado parcimônia nos gastos, os alagoanos não economizaram em luxo, pompa, etiqueta e elegância.

D. Pedro II cumpriu o programa, mas saiu antes do término do baile, recolhendo-se ao paço imperial. Acordou cedo para percorrer os canais do complexo lagunar Mundaú-Manguaba e as cidades de Alagoas, Pilar,  ilha de Santa Rita, Coqueiro Seco, Santa Luzia do Norte e Fernão Velho, demonstrando rara disposição física e disponibilidade para conhecer tantas cidades em tão poucos dias.

Na madrugada de 11 de janeiro de 1860, o casal imperial despediu-se do povo em frente ao Trapiche Faustino e embarcou no APA, encerrando a passagem por Alagoas. Chovia torrencialmente, os ventos sopravam fortíssimos. O presidente da Província e outras autoridades subiram a bordo para os cumprimentos finais. Encerrava-se, assim, a passagem dos soberanos por Alagoas.   

Pintado por Delfim, é considerado um dos mais belos retratos de D. Pedro II.  Tela : 80x68 cm. Ano: 1874. Acervo do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas. Foto do autor.


QUAL A IMPORTÂNCIA DA VIAGEM DE D. PEDRO II A ALAGOAS?


Além de passar a mensagem de estabilidade econômica e de unidade nacional, a viagem teve forte significação simbólica. Avesso às festas mundanas,  à ostentação e desperdício, o Imperador pretendia difundir princípios morais e valores emancipatórios. Daí sua preocupação com a educação primária e secundária, elemento indissociável do progresso de uma nação. Os Diários mostram um soberano que inspecionava escolas, assistia aulas, interrogava estudantes, inquiria professores, preocupava-se com os métodos de ensino e às condições dos estabelecimentos educacionais. Em Alagoas determinou que várias providências fossem tomadas para melhorar a qualidade do ensino. 

Ao redor da Praça D. Pedro II (antiga Praça da Matriz) ainda é possível contemplar o casarão  que serviu de paço imperial - hoje Biblioteca Pública Estadual -,  a sede da Assembléia Legislativa onde realizou-se o baile de honra e a majestosa Catedral de Maceió. No centro da praça foi erguido o belíssimo monumento evocativo à viagem à Alagoas, o mais antigo do Brasil. Confeccionado em Portugal em finíssimo mármore branco, sob a supervisão de José Antônio de Mendonça, futuro Barão de Jaraguá,  foi inaugurado em janeiro de 1862. 

A viagem também serviu para apoiar o projeto de transposição do São Francisco, estimular a construção de ferrovias e navegação lacustre, além de levar o desenvolvimento ao sertão. D. Pedro II também mostrou-se muito interessado no desenvolvimento econômico da província, fazendo questão de conhecer os parques industriais e engenhos de açúcar. Sabia que a sua presença serviria de estímulo ao setor produtivo a perseverar no caminho do progresso do Império.

Ainda hoje a expedição de D. Pedro II tem importância significativa para o turismo local. Exemplo disso, são os chamados Caminhos do Imperador, um roteiro cicloturístico onde é possível percorrer a região do Baixo São Francisco,  conhecer  as cidades visitadas por D. Pedro II e aproveitar as belezas da região (mapa. crédito Cláudia Jak).

Outra grande iniciativa sob sua inspiração foi a Expedição Halfeld, com passagem por Alagoas. Criada em 2001,  encabeçou a campanha Rio São Francisco Patrimônio Mundial, percorrendo toda sua extensão com o objeto de visitar as comunidades ribeirinhas, catalogar seu patrimônio cultural imaterial, conhecer a história, os sítios arqueológicos e os principais espaços de preservação. 

Dessa forma, a passagem de D. Pedro II por Alagoas tornou-se evento histórico de grande dimensão simbólica na medida em que sua presença na pequena província teve o poder de mobilizar forças políticas antagônicas em torno de um projeto de desenvolvimento local, de melhorias urbanísticas, pacificação de passado violento, de estímulo à educação e à cultura. 


BIBLIOGRAFIA

Diegues Junior, Manuel. O Banguê nas Alagoas. Maceió: EDUFAL, 2006.

Duarte, Aberlardo.  D. Pedro II e D. Maria Cristina nas Alagoas: a viagem realizada ao Penedo e outras cidades sanfranciscanas, à Cachoeira de Paulo Afonso, Maceió, Zona Lacustre e região norte da Província. Maceió: Imprensa Oficial Graciliano Ramos; CEPAL, 2010. 

Falcão, Ehrlich. O obelisco de mármore: a história do monumento que celebra a visita de D. Pedro II a Maceió. 2023. Blog Letras das Alagoas, Gazetaweb.com

Schwarcz, Lilia Moritz. As barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia de Letras, 1998. 

Westin, Ricardo. Senado do Império estudou transposição do Rio São Francisco: Agência Senado, 2017. Link: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2017/06/05/senado-do-imperio-estudou-transposicao-do-rio-sao-francisco. Consulta em 23 de setembro 2025.


Este post contém anotações para a intervenção do autor no VIII Colóquio de Institutos Históricos Estaduais, que acontecerá em Goiânia em 30 e 31 de outubro, cujo tema é D. Pedro II e o Brasil: 200 anos.


quinta-feira, 2 de outubro de 2025

CONCURSO PÚBLICO COMO DIREITO FUNDAMENTAL

George Sarmento 

A igualdade de oportunidades é uma das maiores conquistas do constitucionalismo contemporâneo. Ela impõe aos Estados o dever de assegurar os mesmos pontos de partida para o acesso a bens e serviços de boa qualidade, essenciais ao pleno desenvolvimento da personalidade humana. A partir daí cada cidadão deve pautar sua trajetória de vida de acordo com seus talentos, ambições e sonhos.

O concurso público é um poderoso mecanismo de efetivação da igualdade de oportunidades. É a garantia de acesso a cargos públicos sem qualquer privilégio ou discriminação. O modelo adotado pela Constituição Federal de 1988 tem como principal fundamento a “meritocracia”. O processo de recrutamento dos funcionários passou a seguir critérios igualitários, objetivos e probos. Isso representa o rompimento com a prática nociva do clientelismo e do compadrio, que mantinha estruturas de poder através da descarada distribuição de cargos entre apaniguados políticos, em completo desrespeito aos postulados republicanos.

Embora seja um instituto jurídico de indiscutível importância para o fortalecimento da Administração Pública e do próprio Estado Democrático de Direito, tem sido pouco estudado na academia. No Brasil, os textos sobre o tema são superficiais e insuficientes para compreender a complexidade dos procedimentos e o catálogo de valores constitucionais que orientam o concurso enquanto instrumento de acessibilidade ao serviço público.

Agora essa lacuna foi suprida com a publicação de Concursos Públicos no Direito Brasileiro, de autoria do professor Fábio Lins. O tema é tratado sob o prisma axiológico numa clara tentativa de desenvolver uma teoria original e definitiva, construída sobre bases sólidas. O autor parte da premissa de que o concurso está assentado sobre dois pilares principiológicos: a valorização do mérito e a eficiência administrativa. A partir daí desenvolve uma sofisticada argumentação para demonstrar os parâmetros que estruturam a instituição no sistema jurídico brasileiro.

A obra é produto de longos anos de estudos teóricos e práticos, sobretudo da longa militância do autor como procurador de Estado e professor universitário. A proliferação de concursos públicos em todos os níveis federativos tem provocado verdadeira enxurrada de processos judiciais e administrativos. A litigiosidade é ampla. Envolve desde exigências contidas em editais, conflitos relacionados às provas escritas e exames psicotécnicos, até o direito de nomeação; isso para ficar em alguns exemplos.

Fábio Lins ajuda a resolver questões controvertidas que surgem no recrutamento de servidores através de concursos públicos. Sobretudo quando envolvem a interpretação de princípios jurídicos dotados de grande grau de abstração. Escrita com linguagem clara, fundamentada no melhor da doutrina nacional e estrangeira, a obra é didática. Pode ser lida com facilidade tanto por operadores do direito como por estudantes universitários.

Tenho acompanhado de perto o percurso acadêmico de Fábio Lins desde a graduação em direito, quando tive a honra de ser seu professor na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Alagoas. Naquela época já se destacava por sua inteligência, serenidade e disciplina. Ao longo do tempo aprimorou sua formação científica no Mestrado em Direito da UFPE e, depois, no programa de doutoramento da tradicionalíssima Universidade de Salamanca, na Espanha. Atualmente é professor da Faculdade de Direito de Alagoas/UFAL, onde desenvolve incansavelmente diversos projetos de pesquisa.

As ideias desenvolvidas na obra contribuirão para que o leitor tenha uma visão lúcida da estrutura axiológica e normativa que fundamenta o recrutamento de funcionários públicos no Brasil. A nomeação de funcionários qualificados e comprometidos com a tutela do Erário é a fórmula para a construção de uma Administração Pública proba e eficiente. Espero que a obra seja inspiração para todos que acreditam que a igualdade, a moralidade administrativa e a transparência são valores republicanos inegociáveis. Eles são o caminho seguro para a concepção de concursos públicos sérios, racionais e democráticos, tendo na meritocracia seu principal fundamento.

Maceió, 2015.



quarta-feira, 1 de outubro de 2025

AÇÃO POPULAR E MEIO AMBIENTE


George Sarmento

A ação popular é uma das mais importantes expressões da cidadania contemporânea, uma trincheira de combate às atividades governamentais nocivas ao patrimônio público, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e aos bens culturais. Também promove o exercício da democracia participativa, legitimando o cidadão comum para a tutela dos interesses primários da coletividade.

A nobreza quixotesca da ação popular está no fato de que o cidadão não luta por interesses pessoais, egoísticos. Não aufere lucros, votos ou vantagens pessoais. A intervenção é pro populo, em defesa do povo, do bem comum. Busca a eficiência dos serviços públicos, a melhoria da qualidade de vida, o uso racional dos recursos do erário.

A globalização neoliberal tem invadido os países periféricos e imposto valores como o individualismo, a excelência dos serviços e a competitividade selvagem. Não há mais espaço para as grandes utopias nem para a solidariedade social. O cenário político brasileiro - marcado por escândalos financeiros, fraudes em licitações e outras formas de corrupção, desestimula a participação popular nas decisões governamentais. Enfraquece o debate político e envolve os cidadãos num clima de apatia e descrença. Isso se reflete no baixo número de ações populares ajuizadas no Brasil.

Considero o controle popular dos atos administrativos um dos mais sólidos fundamentos do Estado Democrático de Direito. A luta contra a improbidade na gestão dos recursos públicos, sobretudo práticas como o clientelismo, nepotismo, tráfico de influência e abuso de poder é o caminho mais curto para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

A propositura de ações populares em defesa da moralidade administrativa, do meio ambiente e do patrimônio cultural é uma contundente demonstração de engajamento do cidadão na defesa dos valores primários da coletividade. Espelha alto nível de consciência política e o comprometimento com a tutela do patrimônio público. 

É a reação do povo contra atos administrativos nocivos ao bem comum, prejudiciais ao erário e aos direitos essenciais à preservação dos ecossistemas, dos monumentos históricos, das obras artísticas, dos espaços estéticos, paisagísticos e turísticos.

Ao assegurar a qualquer cidadão a prerrogativa para o ajuizamento de ação popular, a Constituição Federal consagrou o compromisso republicano de proteção aos cofres públicos, aos bens de uso comum do povo e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Ou seja, tornou cada cidadão brasileiro um legítimo fiscal do Tesouro, dos programas sociais e das políticas públicas. Além disso, o isentou do pagamento de custas judiciais, honorários de sucumbência e impôs o duplo grau de jurisdição às sentenças que lhe forem desfavoráveis. Com isso, o controle externo da Administração, tradicionalmente confiado a instituições como os Tribunais  de Contas, Poder Legislativo e Ministério Público, amplia-se e assume dimensão verdadeiramente democrática.

Em outras palavras, a configuração constitucional da ação popular estimula o exercício da cidadania e a fiscalização da gestão publica. Coloca à disposição de cidadãos comuns a possibilidade de buscar em juízo a anulação de atos administrativos (contratos, licitações, licenças ambientais, alvarás de demolição etc.) prejudiciais aos interesses coletivos. Daí a necessidade de um amplo movimento cívico para encorajar a sociedade civil a sair da letargia para assumir uma postura mais combativa contra as práticas administrativas ímprobas e antiecológicas.

Essa é a missão da obra Ação Popular - rumo à efetividade do processo coletivo: apresentar de forma clara e didática o procedimento jurídico-processual da ação popular. Mas não é só isso.  Rosmar Rodrigues de Alencar desenvolve teses bastante originais sobre o tema, apresenta profunda pesquisa de jurisprudência e analisa magistralmente a trajetória dessa garantia constitucional no sistema jurídico brasileiro.

Desde 2001, tenho acompanhado com grande curiosidade e entusiasmo a concepção deste livro.  A semente foi lançada com a elaboração de uma singela monografia de conclusão do curso de graduação em Direito. Convocado para compor a banca examinadora, fiquei impressionado com a bravura e determinação com que autor defendeu suas idéias. Arguido com extremo rigor  pelos processualistas presentes à sessão, o então Capitão do Corpo de Bombeiros Militar  de Alagoas, não se deixou abater pelas críticas e, um a um, desmontou todos os argumentos contrários à sua tese principal: a desnecessidade de comprovar a condição de eleitor quando o objeto da  actio popularis fosse matéria ambiental.

Estimulado pela repercussão de sua pesquisa, decidiu publicara 1a edição de Ação Popular,  obra que logo se tornou referência doutrinária para os estudiosos da matéria. Premido pelos desafios desua vida profissional, decidiu descortinar novos horizontes. Aprova-do brilhantemente nos mais disputados concursos públicos do país, Rosmar emprestou sua inteligência à Defensoria Pública Federal e ao Ministério Público do Rio  Grande do Norte. Anos depois encontra sua verdadeira vocação na Magistratura Federal. Retoma então o gosto pela pesquisa e aceita o desafio de atualizar e ampliar a sua pesquisa sobre o tema. Agora, mais maduro, sente-se preparado para produzir um livro  de fôlego, em que as questões controvertidas são esmiuçadas e submetidas a rigoroso tratamento teórico.

Fiel  às suas convicções acadêmicas, 0 autor lança um novo olhar sobre o conceito de cidadania. Demonstra com sólidos argumentos que a exigência de título de eleitor (parágrafo 3°, do artigo 1°, da Lei Federal n.o 4.717/1965) como condição indispensável à propositura de ação popular não foi recepcionada pela Constituição de 1988. É mero requisito formal sem o condão de impedir o prosseguimento do processo. Dessa forma, qualquer brasileiro com idade superior a 16 anos detém a legitimidade para a atuação pro populo sem a necessidade de comprovação do alistamento eleitoral. Aí  está mais uma oportunidade para que a família e a escola fomentem o interesse do adolescente pela solidariedade social, construindo desde cedo uma cidadania engajada e participativa.

Sem descuidar dos aspectos constitucionais mais relevantes, o livro analisa a ação popular sob o prisma da teoria processual, dissecando questões como a legitimidade ativa e passiva, o papel do Ministério Público, a eficácia preponderante das sentenças e o sistema recursal. Aponta a lesividade como a principal ilicitude do ato administrativo passível de desconstituição. Alerta para o risco de a actio popularis invadir o território da ação de responsabilidade por improbidade administrativa e distanciar-se de seu objeto principal: prevenir ou reprimir prejuízos ao patrimônio público.

Enfim, estamos diante de uma obra redigida com esmero,  com sólida fundamentação doutrinária e jurisprudencial. Em todo texto está presente a preocupação com a efetividade da garantia processual, razão pela qual o autor enfrenta questões tormentosas e de difícil resolução. Mesmo diante dos aspectos mais polêmicos lança um olhar crítico e original, apontando os caminhos a serem trilhados pelo intérprete da Lei 4.717/1965.

Tudo isso faz com que a obra  contribua para que os operadores do direito encontrem preciosas orientações no tratamento do tema. Ao optar por desenvolver uma análise jurídico-processual, Rosmar Rodrigues de Alencar demonstra de forma contundente que a ação popular é um instrumento de tutela coletiva que se legitima por procedimentos democráticos para efetivar o  direito  fundamental a administração pública proba, voltada para o bem comum, o uso racional dos recursos do erário e a preservação ambiental.

Além de organização política, 0 Estado brasileiro deve ser encarado como uma empresa que visa lucros sociais. Os recursos arrecadados e os bens públicos devem ser administrados com eficiência, moralidade e respeito à legalidade. É inadmissível que o cidadão cruze os braços enquanto 0 país é pilhado por gestores corruptos, administradores perdulários ou comprometidos com  interesses escusos e inconfessáveis. 

Mais do que nunca os homens e mulheres de bem estão convocados para lutar contra os governantes que insistem em práticas patrimonialistas ou se quedam diante da voracidade capitalista, que não respeita as finanças estatais, a natureza ou as tradições culturais. Essas pessoas encontrarão na ação popular uma poderosa forma de expressão cívica, um eficaz instrumento de controle jurisdicional dos atos de administrativos e uma possibilidade concreta de combate à malversação dos bens do povo.

Por acreditar a (re)construção da cidadania vigilante e atenta à gestão do patrimônio público, recomendo vivamente a leitura deste livro.  Aqui o leitor encontrará o farol seguro para perseguir o uso racional dos bens coletivos, a eficiência dos programas sociais e das políticas públicas - premissas indissociáveis da república brasileira. É,  portanto, uma grande contribuição científica para a concretização dos direitos fundamentais no Brasil.

Maceió, 2008.



A TESTEMUNHA NA HISTÓRIA DO DIREITO

George Sarmento

 

A reconstituição da verdade no processo judicial é um dos temas mais caros ao Direito. Sobre ele se debruçaram os filósofos e juristas mais renomados de todos os tempos. Sua importância é indiscutível, pois o procedimento justo e equitativo pressupõe o esclarecimento de fatos controversos, dos quais dependem a vida, a liberdade e o patrimônio dos envolvidos no litígio. Ainda hoje, com todos os avanços científicos e tecnológicos, a busca da verdade ainda é o maior desafio da jurisdição civil e penal de todos os países democráticos.

Nos sistemas jurídicos contemporâneos, os principais meios de prova são: documental, pericial e testemunhal. A prova testemunhal é a mais problemática e a menos confiável. O magistrado deve ser prudente na análise dos depoimentos produzidos no processo para evitar que a mentira prevaleça sobre a verdade, conspurcando a sua percepção cognitiva dos fatos investigados. Além disso, ele tem de lidar com imprecisões, análises distorcidas, equívocos e, até mesmo, interesses espúrios.

A História do Direito mostra que as civilizações tiveram grande preocupação com a testemunha. Por muitos séculos, este foi o principal meio de prova adotado nos processos judiciais. Manuscritos antigos e obras milenares como a Bíblia e o Código de Hamurabi são a prova de que todos os povos faziam uso desse recurso para buscar a verdade e defender as suas pretensões diante de soberanos, conselhos e tribunais.

A Testemunha na História e no Direito resgata o legado deixado pelo tempo e traça a linha evolutiva da prova nos principais sistemas jurídicos. O texto toma a Antiguidade como ponto de partida para analisar o papel da testemunha no Egito, Mesopotâmia, Israel, Índia, Grécia e Roma. Prossegue com o estudo do direito medieval, destacando a grande contribuição das ordenações portuguesas para o aprimoramento do direito processual. Também situa o tema no Direito Canônico, no Código Napoleônico e no Código de Bustamante. Por fim, disseca o regime de provas testemunhais adotado pela legislação brasileira, apontando os principais avanços e distorções.

Embora tenha sido publicada em 1967, a obra ainda é fonte obrigatória de consulta para todos que pretendam compreender a peregrinação da humanidade em sua luta pela justiça como instrumento de combate ao arbítrio e ao despotismo, ainda tão presentes nas relações intersubjetivas. Com linguagem simples e objetiva, o texto conduz o leitor pelos tortuosos caminhos trilhados pelo direito até a concepção de métodos seguros de avaliação da prova testemunhal no processo.

O autor, Jayme de Altavila, nasceu em 1895 e escreveu Origem dos Direitos dos Povos, um clássico do gênero que é adotado em diversos cursos de Direito no país. Foi um dos fundadores da Faculdade de Direito de Alagoas, hoje integrada à Universidade Federal de Alagoas. Doutor em Direito, ocupou importantes cargos no Ministério Público e na magistratura federal. Teve destacada participação política, exercendo os mandatos de deputado estadual, deputado federal e prefeito de Maceió.

A reedição de A Testemunha na História e no Direito propicia às novas gerações o acesso à literatura jurídica, ao mesmo tempo clássica e de agradável leitura ideal para pesquisadores,  estudantes, advogados juízes e todas as pessoas que apreciem discursos jurídicos e embates no tribunal do júri, e que lutam corajosamente para que a atividade judiciária se transforme num vetor de pacificação social e de promoção dos direitos fundamentais.


 

Maceió, 2009

terça-feira, 30 de setembro de 2025

ASSÉDIO MORAL NO TRABALHO

 George Sarmento

O combate ao assédio moral nas relações de trabalho é um dos maiores desafios do direito contemporâneo. Os efeitos do psicoterror são profundamente nocivos à vítima, pois afeta o seu equilíbrio físico, psicológico e moral. Manifesta-se pelo abuso de poder e pela prática de atos ofensivos, intimidatórios ou descriminatórios que minam a auto-estima e humilham o trabalhador. Essa forma de violência velada desestabiliza-o emocionalmente provocando depressão, angustia, medo, pânico, choros compulsivos, letargia e dores no corpo, entre outros sintomas decorrentes das agressões contínuas a que está submetido.

A prevenção e a repressão ao assédio moral sempre foram objeto de estudo de Vivianny Galvão. Ainda estudante de graduação em Direito, a autora deu início às investigações científicas, movida por grande entusiasmo e disciplina. Participou ativamente do Laboratório de Direitos Humanos/UFAL em pioneira pesquisa sócio-jurídica sobre as agressões sofridas pelas mulheres trabalhadoras no ambiente de trabalho, cujos resultados foram importantíssimos para aquilatar a intensidade do fenômeno em Maceió.

No Mestrado em Direito da UFAL, Vivianny Galvão produziu a dissertação intitulada O Sistema Brasileiro de Repressão ao Assédio Moral, em que desenvolve as principais teses aqui expostas. Tive a honra de ser o seu orientador e poder discutir aspectos do tema até então inexplorados no Brasil. A autora nunca temeu enfrentar questões tormentosas e complexas, sempre interessada em contribuir para a efetividade dos direitos da personalidade do trabalhador nas conflituosas relações profissionais. A leitura de autores nacionais e estrangeiros em diversos campos das ciências sociais deram-lhe excelente base teórica espírito crítico, competências imprescindíveis para enfrentar o desafio explorar tema tão controvertido.

 O produto desse esforço está sintetizado em Assédio Moral: O Mal-Estar no Trabalho. O psicoterror é apresentado como um problema de dimensões supra-nacionais que afeta indistintamente países de todos os continentes e preocupa a comunidade internacional. É fruto de um modelo econômico predatório baseado na alta competitividade, na busca de resultados imediatos e na escassez de postos de trabalho.  Nesse cenário os trabalhadores têm de conviver com as pressões da sociedade de consumo, com a precariedade das relações profissionais e com o fantasma do desemprego.

Perder o emprego não significa apenas enfrentar as dificuldades financeiras de quem fica sem remuneração. Significa, sobretudo, a exclusão do mercado de trabalho. A sensação de “imprestabilidade” de quem já não é necessário à cadeia de produção. Na iniciativa privada, os patrões têm consciência dessa fragilidade e abusam do poder para minar a resistência do empregado, com o objetivo de “domesticá-lo” pelo medo. As consequências do assédio moral são tão devastadoras para o equilíbrio psíquico das vítimas que as obriga a recorrer aos benefícios previdenciários ou ao Judiciário em busca de reparações por danos morais.

Vivianny Galvão demonstra que o enfrentamento ao assédio moral deve começar na ordem internacional. É preciso que as Nações Unidas e os sistemas regionais de proteção aos direitos humanos introduzam nos tratados mecanismos jurídicos eficientes para combater esse mal que se alastra tanto no setor público como privado. Em aprofundado levantamento da legislação estrangeira, a autora demonstra como diversos países europeus e latino-americanos têm incluído em suas legislações instrumentos de proteção aos trabalhadores contra o arbítrio das corporações ou de superiores hierárquicos que abusam do poder no exercício de suas funções.

Denuncia que, apesar da gravidade do problema, o Brasil ainda tão possui uma lei federal que puna os agressores, embora existam alguns projetos em tramitação no Congresso Nacional. Por enquanto, a matéria tem sido disciplinada em leis estaduais e municipais dispersas e sem a efetividade desejável. Por outro lado, Vivianny Galvão posiciona-se contrária à criminalização do assédio moral por entender que as penas privativas de liberdade não são adequadas à punição do assédio moral. Prefere propor um sistema de severas indenizações por danos morais – sanções consideradas muito mais eficazes que as prisões, com efeitos pedagógicos indiscutíveis para a prevenção da violência.

Na pesquisa sócio-jurídica, desenvolvida no âmbito do Laboratório de Direitos Humanos/UFAL, a autora demonstra a real dimensão do assédio moral entre as mulheres trabalhadoras, propondo interessante tipologia dos casos mais comuns nas relações trabalho. Histórias de vida das entrevistadas ilustram os sintomas físicos e psíquicos decorrentes das humilhações sofridas em suas atividades profissionais. É também um retrato da impotência com que a maioria delas reage às agressões, o que tem contribuído para impunidade.  A análise dos dados coletados é uma prova contundente que essa prática ainda é muito comum e precisa ser enfrentada com mais rigor pelo legislador brasileiro.

Mas é inegável que alguns avanços já podem ser detectados. Vivianny Galvão desenvolve interessante pesquisa de jurisprudência. A Justiça do Trabalho tem reconhecido a ilicitude do assédio moral e aplicado sanções indenizatórias destinadas a reparar os danos morais infligidos aos empregados no ambiente laboral. Os casos mais paradigmáticos foram analisados na obra, muitos dos quais foram fundamentais para a mudança de certas posturas corporativas. Mas ainda há muito a fazer tanto na diemnsão judicial como legislativa.

Do ponto de vista sociológico, o assédio moral manifesta-se como ilicitude oculta. Ou seja, apenas um pequeno percentual das agressões é registrado nas instâncias oficiais de poder – Delegacias do Trabalho, sindicatos, Poder Judiciário. A cifra negra é assustadora. A desinformação, o medo e a descrença no sistema judicial são alguns fatores do silêncio de milhares de trabalhadores ofendidos em seus direitos de personalidade. Vivianny Galvão apresenta um retrato fiel do psicoterror e aponta caminhos para a sua superação. Mostra que a humanização das relações de trabalho é o caminho mais próximo para a dignidade humana e para a valorização da mão-de-obra. É um convite para a igualdade e a solidariedade entre no espaço laboral.

Ao editar Assédio Moral: O Mal-Estar no Trabalho, a EDUFAL supre lacuna importante lacuna na doutrina. O livro interessa tanto a estudantes de Direito como a militantes de carreiras jurídicas comprometidos com a defesa dos direitos da personalidade de milhões de brasileiros inseridos no mercado de trabalho, cotidianamente molestados em sua honra, autoestima, vida privada e imagem. Escrito em linguagem objetiva, direta e de fácil compreensão, o texto também se destina ao grande público. Tenho certeza de que a obra será uma referência científica para todos que lutam pela valorização da pessoa humana e pela construção de um ambiente de trabalho saudável, respeitoso e produtivo.


Maceió, 2011.

 

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL E EFEITO VINCULANTE

George Sarmento 


A importação de institutos estrangeiros é prática largamente adotada pelo sistema jurídico brasileiro. A falta de originalidade é agravada pela adaptação defeituosa dos modelos transplantados, acarretando graves conseqüências à aplicação do direito. O efeito vinculante é um exemplo contundente dessa assertiva. Transplantado dos países que adotam a common law, foi introduzido na Constituição Federal como forma de racionalizar a atividade jurisdicional, impondo aos juízes o respeito absoluto ao entendimento cristalizado pelo Supremo Tribunal Federal. Mas a introdução da súmula vinculante como instrumento de padronização das decisões judiciais tem sido alvo de severas críticas, entre elas o perigo de engessamento da atividade hermenêutica e a ilegítima criação de normas jurídicas pelo Judiciário e, até mesmo, ingerência na prerrogativa constitucional de julgar. 

 

É sobre essa temática que se desenvolve o livro Efeito Vinculante e Concretização do Direito, escrito por Rosmar Antonni Rodrigues Cavalcanti de Alencar.  O fio condutor do texto é a busca da efetividade das normas constitucionais como um dos requisitos legitimadores do Estado Democrático de Direito. Nesse particular, destaca o papel do Judiciário na importante tarefa de mediar os conflitos, aplicar o direito e responder os desafios de uma sociedade complexa e desigual como a brasileira. 

 

A introdução do efeito vinculante pela Emenda Constitucional 45 foi uma tentativa de solucionar a crise do Judiciário, assoberbado pelo aumento de processos, decisões díspares e interpretações equivocadas das espécies normativas. Mas sucesso dessa técnica jurídica depende da superação de diversos entraves.  O autor invoca as dificuldades naturais de convivência harmônica entre o sistema de precedentes – cujas origens remontam ao direito inglês – e o modelo brasileiro historicamente marcado pela prevalência da lei, produto de processo legislativo típico dos países que adotam a civil law. Também critica a formação dogmática dos juristas brasileiros, estimulados nas universidades a aplicar o direito de forma dedutiva, quase matemática, baseada na subsunção. Juízes com esse perfil podem ver na súmula vinculante uma ferramenta que justifique a postura mecanicista e acrítica de suas decisões. 

 

O efeito vinculante é dissecado pelo autor de forma minuciosa. Todas as grandes questões são enfrentadas com lucidez e originalidade. O autor ultrapassa as fronteiras da súmula vinculante para embrenhar-se nas entranhas do instituto, analisando-o sob os aspectos histórico, sociológico, filosófico e jurídico. Discute temas polêmicos como a função legislativa do Judiciário, a força vinculante de decisões proferidas em ações de inconstitucionalidade e a segurança jurídica decorrente dessa nova postura jurisdicional. 

 

A obra também apresenta uma crítica extremamente original ao efeito vinculante das ações coletivas, freqüentemente usadas na proteção do meio ambiente, patrimônio público, consumidores, crianças, adolescentes, idosos, portadores de necessidades especiais etc. Inspiradas nas class actions norte-americanas, as ações civis públicas têm se mostrado armas eficazes em defesa de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos. Entretanto, o uso imprudente ou mal-intencionado desse instrumento de defesa da cidadania pode gerar grandes frustrações de expectativas populares, colocando em risco a credibilidade do Judiciário e do Ministério Público. 

 

Como forma de combater a visão dogmática defendida por grande parte da doutrina brasileira, o autor propõe o fim da submissão incondicional às estruturas lógico-formais, que reduz o magistrado a juiz funcionário, neutro, mecanicista, desprovido de qualquer compromisso com a justiça. Em tal ambiência, o efeito vinculante passa a ser um álibi para a manutenção dessa postura conservadora, extremamente nociva à concretização do direito. 

 

Com base, nos ensinamentos de Hans-Georg Gadamer e Heidegger, o autor combate a tendência de padronização das decisões judiciais, propondo uma profunda mudança do paradigma interpretativo. Defende a utilização da hermenêutica filosófica, considerada o método constitucional mais eficiente de resolução dos litígios com racionalidade e respeitos aos princípios conformadores do Estado brasileiro.   Demonstra que o reducionismo dogmático encobre a perversa ideologia capitalista, mais preocupada em assegurar os interesses das elites dominantes do que em promover a justiça social. Só um novo olhar sobre a aplicação do direito será capaz de satisfazer as expectativas sociais de concretização dos direitos fundamentais.

 

Embora aborde temas tão complexos, o livro foi redigido em uma linguagem clara e objetiva. O autor não se contenta com a mera descrição de teorias hermenêuticas. Ao contrário, manifesta aguçada visão crítica sobre a prática jurisdicional vigente no país, apontando caminhos seguros para superar a crise por que passa o Judiciário. Chama a atenção para a necessidade de mudanças no ensino jurídico, para romper com as velhas amarras do positivismo dogmático e formar operadores do direito comprometidos com a efetividade das liberdades públicas e dos direitos sociais. Sustenta, enfim, a liberdade de julgar – sem amarras, vinculações ou ameaças de punições disciplinares. A função político-jurídica do magistrado não pode restringir-se a modelos rígidos, preestabelecidos por tribunais superiores, mas desenvolver-se com base em parâmetros hermenêuticos seguros e vinculados às peculiaridades do caso concreto.

 

A obra de Rosmar Antonni é corajosa e original. É produto de profundas reflexões desenvolvidas no tradicional Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia. Foi apresentada pela primeira vez à comunidade jurídica como dissertação de Mestrado, orientada pelo festejado jurista Dr. Edvaldo de Brito. Tive a honra de integrar a banca examinadora e pude testemunhar a notável contribuição que a obra dá ao fortalecimento da hermenêutica constitucional contemporânea. O autor sintetiza as ideais centrais do pós-positivismo e descortina novos horizontes a serem seguidos pelos aplicadores do direito, aproximando-os do ideal ético de justiça e do compromisso de efetivar os direitos humanos nas relações sociais. 

 

Para defender suas teses, alia sua vasta experiência como juiz federal a uma movimentada atividade acadêmica. Além de conferencista e articulista, Rosmar Antonni é doutrinador consagrado, sendo autor de obras como Ação Popular – Rumo à Efetividade do Processo ColetivoCurso de Direito Processual Penal (em co-autoria) e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988 (organizador). Detentor de espírito inquieto e criativo, tem mostrado grande preocupação com os rumos do constitucionalismo brasileiro, ainda muito influenciado pelos velhos paradigmas hermenêuticos, tão nocivos aos avanços de valores democráticos como a liberdade, igualdade e solidariedade. A obra Efeito Vinculante e Concretização do Direito é mais uma tentativa de desenvolver uma hermenêutica concretizadora dos direitos humanos, livre das manipulações lingüísticas e dos modelos fechados, mas focada no caso sub judice e aberta à pluralidade de argumentos e de pontos de vista sobre a solução a ser dada.

 

Mais do que isso, as idéias desenvolvidas nos leva fatalmente a conclusão de que a saída para a crise do Judiciário passa pela mudança de mentalidade dos juízes, que devem assumir seu papel de protagonistas da criação da norma jurídica e vetores da efetividade do direito. O magistrado não pode ficar passivo e indiferente à construção de uma sociedade justa e igualitária. Tampouco deve se quedar a entendimentos preconcebidos, sem levar em consideração as particularidades do caso sob julgamento. A legitimidade das decisões judiciais está condicionada à eficiente mediação concretizadora das normas jurídicas, muitas das quais dotadas conteúdos abertos, polissêmicos e indeterminados. É aí que a hermenêutica assume uma importância central: assegurar a todos o exercício da cidadania e a plena fruição dos direitos fundamentais.

 

A interpretação constitucional não deve ser monopólio do Judiciário, mas uma tarefa coletiva que envolva todas as forças vivas da sociedade. É preciso que os conflitos sejam analisados sob diversos ângulos, sem desprezar nenhum argumento que possa contribuir para o seu desfecho. Esse pluralismo está no cerne do pensamento de Peter Härbele, que defende a idéia de uma sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. Nela o processo hermenêutico ganha contornos democráticos e interdisciplinares, já a que solução de cada caso será sempre o produto da conjunção de esforços para concretizar o direito legítimo e válido. 

 

A contribuição científica de Rosmar Antonni supre uma importante lacuna na doutrina brasileira. Tenho certeza de que suas proposições servirão de baliza para todos que queiram participar ativamente do processo de concretização dos direitos humanos no Brasil, tarefa que implica a redução das desigualdades sociais, a melhoria dos serviços públicos, a luta contra a corrupção e a promoção de políticas públicas articuladas e voltadas para a justiça social.


Maceió, 2009.