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terça-feira, 29 de setembro de 2009

IDIOTAS DA OBJETIVIDADE


Tenho 52 anos e já sou um nostálgico. A velocidade imposta pela globalização, pela informática, pelos Blogs e Twitters produz, a cada segundo, uma imensa leva de nostálgicos. Quando abrimos o olho após um espirro, já fomos ultrapassados pela veloz informática. Melhor, ao terminar este texto, já sou um ultrapassado, talvez metade das palavras aqui mencionadas já tenham mudado de sentido.
Hoje, nas maternidades, em vez do peito, a mãe dá para o recém-nascido, o último modelo de telefone celular. E, no berçário, não se ouve mais aquela ultrapassada algazarra de choro, o que ouvimos é uma sinfonia dos mais inusitados toques de celulares, são os pequenos recebendo os mimos dos aparvalhados avós através de mensagens de SMS, MMS e tais. No leito a mãe se preocupa apenas em checar se os muitos mililitros de silicone das mamas continuam no lugar certo. E o lácteo alimento? Os pequenos estão lá do berçário fazendo pedidos à mais moderna Delicatessen.
Mas, onde mais dói e mais se evidencia a nostalgia de que lhes falo, é no outrora lúdico ato de ir ao cinema. Naquele tempo!! Vejam vocês, qualquer um de nossa faixa de idade pode hoje, perfeitamente, lançar a bíblica e longíqua frase: “Naquele tempo!!!”. Como acabados Matusaléns. Mas, como anacronicamente ia dizendo. Naquele tempo..., a ida ao cinema era um evento lúdico, quase bucólico. Vestíamos a melhor roupa, tagarelávamos desde o dia anterior sobre os mistérios do filme e, como aves de arribação, marchávamos em bando para o templo do divertimento. Uma verdadeira máquina do tempo feita de tijolos, cadeiras luzes e tela. Lá, ao som de “Siboney” executada por Ray Conniff, em suspense, aguardávamos o começo do filme ser anunciado pelo “Tunga”. Para quem não conhece, -“Tunga”- era o aparelho que reproduzia um misterioso som, parecido com graves badaladas, anunciando o início do filme nos antigos cinemas -.
A exibição era um capítulo à parte, a platéia interagia mais com o filme do que atualmente interage com o Big Brother. Não era necessário um 0800. Dali mesmo um gritava: “Cuidado, não confie nesse bandido!”, ou “Vai Tarzan, vai, Tarzan, vai, vai...!!!. Ou gritavam xôs para o Condor” E, ao final, quando o mocinho sempre levava a melhor, todos, num agradecido aplauso, iam às lágrimas.
Um capítulo à parte eram as intercorrências inesperadas. Lembro de algumas: Tonho Sem Osso, era um relaxado gordo que, nas pequenas cidades, fazia exibições itinerantes. Chegava numa cidadezinha, armava uma tela na principal praça ou no oitão da igreja, e, em meio ao grande reboliço que provocava, exibia suas “novidades” cinematográficas.
Certa vez, exibindo uma “Paixão de Cristo” para compungida platéia, se atrapalhou na troca dos rolos de filme e, no grave momento da crucificação, inesperadamente, apareceram Cowboys em desabalada carreira e em encarniçado tiroteio. Tonho Sem Osso, só teve tempo de enrolar a tela, botar as latas do filme debaixo do braço e sumir.
Caso não menos particular se deu na cidade de Batalha. Ali, dono do cinema matava a tiros quem o chamasse de “Don Ratão “. Certa vez, foi insistentemente adulado para exibir determinado filme da preferência dos “habitués“. Por seu lado, Dom Ratão argumentava: “Esse filme não presta prá passar, esse filme tá doente”. - Querendo dizer que o filme era velho e tinha muitas emendas -. No entanto a malandragem insistia: “Passa assim mesmo, passa assim mesmo”. Finalmente convencido, resolve exibir o “doente” filme. De repente, como esperado, a fita parte, as luzes se acendem e a vaia invade a cabine de Don Ratão. Então, ele liga o sistema de som do cinema, empunha o microfone, emposta a voz e diz: - “ Minha gente, eu não disse a vocês que essa fita tava doente !!! ”. Nova vaia, e começam os gritos: “Don Ratão... Don Ratão”. Abrasado pelo carvão da máquina e pela covarde provocação, Don Ratão empunha novamente o microfone e brada: “ Don Ratão, é o c. da mãe... Don Ratão é o c., da mãe. Filhos da puta...”. Assim, debaixo de estrondosos apupos, encerrou-se a apresentação daquele dito “ filme doente”.
Hoje, todo freqüentador de cinema é um autêntico e acabado intelectual. A assistência faz um silêncio de vácuo, até os sacos de pipocas, os papeis de confeito, constritos, aderem ao silêncio. Todos assistem ao filme numa impassível pose, parecem bonecos de Vitalino emparelhados. Pergunte a qualquer um que acaba de sair do cinema: “Gostou do filme? “. E a empinada resposta: “ Um tanto quanto noir”. E emenda enigmático: “Um verdadeiro mergulho na alma humana.” Mesmo que o título tenha sido, “Um breve olhar sobre o universo das manicures”.
É amigos, não mais existe aquela alegria infantil que contagiava velhos e meninos na saída dos antigos cinemas. Não temos mais os grandes contadores de filme que, no dia seguinte, faziam uma grande roda na principal praça da cidade e, com espetacular riqueza de detalhes, contavam todo o filme aos irrecuperáveis quebrados.
O maior exemplo de um desses raros espécimes era o Mestre Roque, baixinho, gordinho e falante , sempre vestido num conjuntinho Cáqui, Mestre Roque contava um filme com tal riqueza de detalhes que o próprio roteirista se renderia a seus acréscimos e exageros. Até hoje, não sei mesmo o que era melhor, se assistir ao filme ou ouvir a versão de Mestre Roque.
Por tudo isso, é que não me conformo com esse mundo edificado pelos chamados “Idiotas da objetividade”, tão bem tipificados pelo genial Nelson Rodrigues, os quais jamais se permitem uma fantasiosa prosa, jamais param para ouvir um artista da narrativa deitar fora o Charles Dickens que há dentro dele. Minto, tais amantes da objetividade se permitem sim uma fala solta, cheia de fantasias, impregnada de infantil conteúdo. Porém tarde demais, pois tal retorno a infância só lhes é permitido diante de um entediado psicanalista, o qual, ao contrário do Mestre Roque, cobra muito caro para os ouvir.

Isaac Sandes – 26/09/2009


[1] Expressão cunhada por Nelson Rodrigues.