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quinta-feira, 6 de agosto de 2020

O  BEIJO

Aos onze anos beijar na boca era sua aspiração mais alta. O desafio supremo, quase inatingível para o menino retraído, atormentado por uma incurável timidez.

Um dia aconteceu.

Acompanhava em silêncio a coleguinha da escola até a casa. Dividiram o lanche que sobrara do recreio e saíram de mãos dadas pelas ruas do bairro, que começavam a escurecer naquele fim de tarde de inverno.

A brisa fria insinuava desejos etéreos, diáfanos. Foi tudo muito rápido.  De supetão, ela o espreme contra um muro, beija-o docemente e desaparece na esquina, saltitante.

Entorpecido pela magia daquele instante mágico, o menino não compreendeu que o beijo roubado lhe abrira o portal para um mundo desconhecido. Tomou-se de surpreendente audácia, sentiu uma volúpia inexplicável e a certeza de que nada seria como antes.

Adulto, não aprendeu a amar. Sua vida foi uma sucessão de fracassos sentimentais, de prazeres efêmeros, de solidão profunda.

Aquele beijo fugaz o resgatara da introspeção, mas também acendera o fogo das paixões efêmeras cujas labaredas consumiriam vorazmente suas entranhas, para depois jogá-lo no abismo da eterna solidão. 

Babá


Minha babá se foi duas vezes.
A primeira quando deixei de ser bebê.
Não nos vimos por décadas.
Um dia reapareceu para me pedir
o patrocínio de uma causa jurídica,
que não tive como assumir.
Saiu sem deixar endereço.
Decepcionada.
Agora partiu para sempre.
Despediu-se da vida,
deixando-me uma dor pungente
por não ter retribuído
o amor que recebi de suas mãos
ternas e maternais.


terça-feira, 4 de agosto de 2020


FETICHE

Aquele cliente sempre intrigara a vendedora de lingeries. Ainda jovem, impecavelmente vestido, ocupava um elevado cargo na magistratura. O porte imponente inspirava respeito, decência.  A voz suave, aliciante. Mas tinha um modus operandi particular: todas as semanas ia à loja e pedia três peças íntimas do mesmo modelo e cor. Naquele dia não foi diferente:

– Três calcinhas vermelhas, bem provocantes. 

A vendedora não conteve a curiosidade:

– Por que o senhor não escolhe cores diferentes? Sua esposa vai adorar.

Ele piscou o olho e disse em voz baixa:

– Na verdade ela ama os presentes, diz que tenho bom gosto e veste as peças em ocasiões bem especiais, se é que me entende.

– ?

– Mas também tenho duas amantes – disse com uma voz grave, recostando-se no balcão. – Uma não tem conhecimento da outra. Esse clima de mistério, a atmosfera de clandestinidade, o medo de ser descoberto, tudo me excita.

Percebendo o embaraço da moça, continuou:

– Você não pode imaginar o prazer que sinto quando elas vestem as lingeries e se sentem únicas em meus braços...