Páginas

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

A BELA

Certamente, alguns de vocês haverão de lembrar quando neste espaço, relatei um particular caso que envolvia um erudito amigo; amante e praticante do mais puro materialismo dialético. Naquela oportunidade ele, com a mais absoluta segurança, afirmava ser o conceito de beleza abstrato e relativo. Da mesma forma, defendia ardentemente que o amor romântico era mera criação dos trovadores e cavaleiros da Idade Média, impossível de existir no atual mundo pragmático e tecnológico. Tal quimera, só seria possível nas fantasiosas mentes das românticas amantes de telenovelas e leitoras de Sabrina.

Todos lembram-se, do mesmo modo, quando, em determinada quadra, fui surpreendido com a inesperada mudança de opinião do amigo a respeito das pétreas teses que defendia.

Operou-se a surpreendente mudança quando ele, trêmulo e embevecido com a inesperada visão que tivera, não lembro bem, se numa moderna academia, se numa aula de natação ou até mesmo numa procissão , me confessou como uma criança diante de seu primeiro brinquedo que retirava todos os argumentos assacados contra a existência da beleza e reconhecia, sem qualquer pudor erudito, sua concretude, pois a vira personificada ali naquela figura transcendental. Tal visão, fizera seu outrora frio e matemático ponto de vista, ruir como um sorvete ao sol.

Tão aparvalhado estava o amigo naquele instante, que sequer tive a iniciativa de solicitar a descrição da criatura causadora de tal estrago. O meu espanto com semelhante mudança me fez olvidar a instintiva e natural curiosidade sobre aquele ser encantador, causador da impressionante hecatombe naquele convicto materialista.

Ali mesmo, lembro bem, mergulhei em ilações um tanto quanto frias e analíticas, na tentativa de descobrir o que levara o amigo àquela infeliz condição. Rapidamente passaram por minha cabeça análises que sempre estávamos acostumados a fazer antes daquele pobre ser entrar em surto.

Ocorre-me agora a lembrança: Ao tempo de sua sanidade mental, uma das principais teses abordadas por nós, era sobre o recorrente tema do domínio que a natureza exerce sobre suas criaturas e, principalmente, sobre a armadilha que ela nos joga, no seu desiderato de perpetuar a espécie e repassar nossa carga genética.

Do alto daqulea pretensa erudição, assim como de nossa suposta segurança antropológica, sempre nos julgamos imunes aos laços de tal armadilha.

Pacífico, era o entendimento de que a natureza, quando pretende dar seguimento à espécie, atira à suas vítimas um feitiço que faz com que cada um dos sexos veja no outro, atributos e qualidades que se encontram muito além de um ponto de vista sensato, lhes aguçando e exagerando todos os sentidos e revolvendo em seu interior, forças nunca antes imaginadas. Vejam o salmão! Nada exaustivamente até a cabeceira do rio em que um dia nasceu para, uma vez lá, cumprir seu último e mortal ritual de acasalamento. O macho da viúva negra que dá a vida por uma cópula. O Louva -Deus, decapitado pelo mesmo objetivo.

Da mesma forma, homem ou mulher, quando elegem um parceiro que o instinto determinou para o repasse de sua carga genética, de nada adianta apelos de familiares ou amigos, demonstrando ser aquele parceiro um perfeito canalha e que aquela escolha é um desastrado erro do ponto de vista das relações sociais e humanas. Não há quem os demova. No ser humano, o alvo da natureza é aquilo que julgamos nosso atributo superior, a razão. Assim, nessa tocaia natural, ela é a primeira baixa. Em consequência, torna-se o homem patético e ridículo, tamanhas as forças da transformação que nele se opera.

Em sua trama, a natureza envia ao cerébro de cada um dos enredados personagens, comandos que os levam a superestimar qualquer traço ou atributo físico existente no outro. Um pequeno traço no rosto torna-se um obelisco de beleza; um determinado jeito de olhar torna-se um encanto; uma palavra que, lançada em normal contexto, soaria tola e enfadonha, para o enamorado soa como um Cântico de Salomão. Enfim, como diria o poeta, tudo torna-se divino e maravilhoso, uma vez a vítima tenha sido tocada pelo inebriante efeito da Mágica Poção.

Discutíamos isto e nunca desconfiei que nosso seguro e impassível amigo viesse ser um dia, vítima de tal feitiço.

Mas…, apenas pretendo dizer que, diante de um perfeito e acabado exemplo confirmatório da existência de tais forças, não tive, naquele momento, presença de espírito para colher do agora romântico Zumbi , uma descrição detalhada da criatura que lhe havia turbado a razão daquela maneira.

Dias depois encontro-o em transe de menor voltagem, mas ainda enebriado pelo traiçoeiro golpe desferido pela natural Circe e então finalmente peço-lhe em tom de gozação:

- Amigo, descreva-me a tal Vênus que lhe transtornou.

E ele, com olhos faiscantes de encantamento, mente atravancada de sonhos, boca atulhada de elogiosas palavras, começou:

- Pra começo, é pernóstica!! Pernóstica sim, muito pernóstica!!!

Eu pasmo. - Pernóstica ? Como assim pernóstica ? Se o deixou maluco !

E ele, tentando se fazer entender:

- Explico amigo. Não é pernóstica no sentido usual. Digo que é pernóstica pelas belas e longilíneas pernas que possui. Precisa ver!!! (Disse com olhos injetados ) -Duas colunas do mais belo e puro mármore de Carrara.

Sentindo o bem que tais forças telúricas estavam provocando no humor do pobre amigo insisti, reconheço, com uma pequena dose de malvadeza, em obter maiores detalhes só pra ver até onde ia aquela alucinação.

Fustiguei-o, tal qual um curioso padre no confessionário. – E aí… e aí, o que tem mais?

Com medo de ser traído por suas confidências, o amigo deu uma discreta olhadinha em volta, enrubesceu as bochechas, estufou o peito e continuou.

- Aquele rosto… Ah… que rosto!! Os traços são de uma legítima beleza helênica. Seu perfil parece saido de uma ânfora grega. Tem boca de suculento morango e olhos de Capitu. Os cabelos, longos e sedosos, pendem de sua cabeça e, como uma negra cascata, ganham os contornos dos ombros, descem novamente lisos até misturar suas finas pontas aos dourados pelos lombares. Findam-se pendurados num doce bailado perto daqueles dois furinhos, resquícios da criação Divina; quando ao concluir sua obra prima, Deus deu-lhe um empurrãozinho com dois dedos na região lombar, dizendo: “ Te chamarei mulher… agora vai… vai levar a loucura ao inocente e incauto Adão .” Restando daquela ação, apenas as duas marquinhas que, até hoje, a todos encantam.

Ao notar que o amigo estava quase em estado hipnótico, tal qual o Professor Aquiles Arquelau, aquele incorrigível apaixonado por Bruna Lombardi, fiz de um pigarro a campainha para o trazer de volta à realidade. Então ele estremeceu e continuou:

-Desculpe-me, quase me perdi em devaneios heréticos e eróticos, mas…, prosseguindo: Mãos e pés são talhados com uma finura de causar admiração a um Michelângelo. Aliás, por falar nisto, este ficaria pasmo com a perfeição das proporções que reinam no corpo daquela criatura. O amigo sabe muito bem que o segredo da beleza está nas proporções das medidas. Não é ??

Sempre concordamos sobre a existência das medidas denominadas medidas de ouro, ou melhor dizendo, proporção áurea, encontrada na natureza e reproduzida pelos gênios em várias de suas criações artísticas como no Parthenon na acrópole grega, no Nascimento de Vênus, de Botticelli e em muitas outras geniais criações humanas. - Pois é amigo, lhe asseguro; a bela possui, sem sombra de dúvidas, tais medidas. Seu corpo é uma perfeição de proporções. Nada ali foi posto demais, nada ali revela-se de menos. Prosseguiu ele em seu transe, até notar que, de fininho, eu saíra deixando-o a falar sozinho.

Diante daquela quase lunática ode à beleza, pensei comigo: “Realmente o lastimável estado em que se encontra o amigo é uma prova acabada daquilo que tanto havíamos observado nos outros. Seu transe demonstra as indomáveis forças da natureza agindo nos genes da pobre criatura. Ele não é mais ele, é um reles fantoche que a natureza está usando para se reproduzir. Não importam as consequências mundanas que lhe advirão, o importante ali é o secreto desejo do gene egoísta que pretende se replicar. Tomara Deus, passe logo tal feitiço”.

Apavorado com tamanha transformação e regressão do amigo, só tive tempo de lembrar e observar como, a natureza e o tempo, com suas forças e necessidades, fazem o arco da vida quase tocar suas extremidades.

O que eu vira ali, era o vigor e o entusiasmo que existiram um dia no jovem, ressurgindo naquele Casmurro senhor com a mesma força e viço descomunal de antes, numa demonstração de que somos meros instrumentos de uma ordem ou lei natural, interessada apenas no seu próprio script, o qual tem seu objetivo voltado apenas para a perpetuação do gene e da espécie. Enquanto que, como seres individuais, somos tristemente ignorados, descartáveis e pseudos senhores do nosso destino.

Isaac Sandes 14/12/2009.