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sábado, 15 de agosto de 2009

O FURTO DO SIBITE


Os textos jurídicos normalmente são herméticos e difíceis de serem compreendidos pelos leigos, isto é, por aqueles que não possuem diploma de bacharel em direito. Alguns gramáticos, em tom de chacota, costumam mencionar o surgimento de um novo idioma no Brasil: o juridiquez.

O que eles não sabem é que a Justiça também é palco de episódios hilários, que devem ser resolvidos com muito equilíbrio, serenidade e bom-humor, sobretudo quando se está diante do princípio da insignificância. É o Caso do Ladrão de Sibite, julgado recentemente no último mutirão do Judiciário alagoano.

Na minha infância, era comum ver nos sítios e capoeiras passarinhos como o canário da terra, o curió, o galo de campina, o papa-capim, o caboclinho, o pintasilgo. Os moleques sabiam imitar os cantos, fazendo uso de apitos artesanais vendidos nos mercados públicos.

O sibite e o guriatã eram considerados pássaros de 2a categoria. Ninguém queria trancafiá-los em gaiolas porque eram pequeninos, mirrados e sem valor comercial. Estavam na mesma dimensão do garrincha e do pardal, que podiam voar livremente sem serem incomodados. Ah, também tinha o bem-te-vi, que não era capturado por não se adaptar à vida em cativeiro. Se caíssem nas armadilhas, eram imediatamente libertados sem necessidade de habeas corpus.

Os tempos mudaram. Os grandes sítios de Maceió transformaram-se em condomínios de luxo, os coqueirais e mangues deram lugar a imponentes edifícios, as árvores escassearam e os pássaros nobres desapareceram de nossa convivência. Mas o sibite sobreviveu e passou a dominar a cena ornitológica com o seu canto melodioso, o jeito arisco e desconfiado. A partir daí a sua liberdade está sob constante ameaça pelos alçapões dos passarinheiros, envolvidos com o comércio clandestino de aves nativas.

Aqui de Guaxuma tenho o privilégio de receber a visita espontênea de simpáticos sibites todas as manhãs. Adoro vê-los construir os seus ninhos nas pitangueiras ou fazendo belíssimas piruetas na época do acasalamento. A contemplação me remete às lições da irmã São Paulo, do Colégio Sacramento, que via nesse ato uma bela lição de vida - uma evocação à paciência e ao método. E pedia para a gente repetir um conhecido ditado popular francês: petit à petit l'oiseau fait son nid. Quer dizer, de graveto em graveto o passarinho constrói o seu ninho (cuja corruptela brasileira é de grão em grão a galinha enche o papo).

Pois bem. O que eu queria dizer é que, no mutirão, apareceu um processo-crime, envolvendo um descuidista pego com a boca na botija (leia-se em flagrante delito) quando tentava roubar a gaiola onde vivia um afinado sibite. Paradoxalmente o larápio foi preso e teve o mesmo destino do triste conirostrum speciusum: ficou engaiolado na delegacia, esquecido pelas autoridades judiciárias. Sentiu na carne a tristeza e a melancolia do objeto de sua cobiça...

É aí que entra o nosso espirituoso Isaac Sandes que, na condição de promotor de justiça, resolveu dar um final feliz à história. Segue o pronunciamento do zeloso membro do parquet:



MM. Juiz,


Trata-se de requerimento de Relaxamento de Prisão em Flagrante em favor de VALDEVINO PAPAGENO FALCÃO, preso desde as 15:00 h., do dia 05 de maio do corrente ano pela prática do crime de furto, conduta tipificada pelo artigo 155 do Código Penal.
Pelo que se depreende dos autos, o indiciado perambulava em sua rotina de descuidista, quando teve sua atenção despertada pelo canto de um pássaro sibite que, na varanda de uma casa, se divertia ou se lamentava, uma vez que se encontrava na mesma situação em que atualmente se encontra o indiciado, ou seja, engaiolado.
Entretanto, no meio do caminho tinha um muro, e não sabendo que pular muro era conduta tipificada por nosso legislador com o pomposo nome de “escalada”, bem como que, escalada era causa qualificadora do furto simples, contemplada no nosso Código Penal com o Inciso II, ao parágrafo 4o., do artigo 155. Nosso indiciado, atraído pelo canto do sibite, tal qual Ulisses o foi pelo canto das sereias, resolveu pular o referido muro para furtar o alegre pássaro. Ao ultrapassar o muro, verificou, ainda, que o carro que se encontrava na garagem estava com os vidros abertos e, no seu interior, havia um celular. Resolveu, portanto, adicionar o citado aparelho ao seu esforço de ladrão descuidista.
Flagrado, pelos moradores, abandonou a gaiola com o principal alvo de sua cobiça, desfez a escalada que havia feito e saiu em desabalada carreira apenas com o celular no bolso. Na perseguição, se viu sem saída e resolveu jogar o celular no chão. Em seguida foi preso. Amargando até a presente data, o mesmo destino do alegre ou triste “sibite”.
Considerando que, até a presente data, não houve qualquer ato instrutório, ou melhor, sequer foi oferecida a competente Denúncia; considerando também que, o tempo em que se encontra preso sem sumário de culpa, talvez ultrapasse até mesmo a pena que receberia em concreto. Ainda que tal período de prisão tenha sido mais que suficiente para o mesmo refletir sobre as agruras da falta de liberdade em que se encontrava o inocente sibite, somos pelo DEFERIMENTO do pedido de Relaxamento da Prisão em Flagrante, ora apresentado em benefício de VALDEVINO PAPAGENO FALCÃO.

Maceió, 20 de julho de 2009.

ISAAC SANDES DIAS
Promotor de Justiça

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

CASA DA PALAVRA: 12 ANOS DE CULTURA E COMUNICAÇÃO

GEORGE SARMENTO
Freqüento a Casa da Palavra desde a sua criação, há 12 anos. Já no primeiro dia senti que se tratava de um projeto minuciosamente concebido para a formação de líderes que têm na comunicação sua principal ferramenta de trabalho. As atividades da instituição não se restringem a cursos de oratória ou metodologia do ensino superior. As noções de retórica são apenas um pano de fundo para que os alunos possam ter o controle de suas vidas, enfrentando as mais diversas situações comunicativas: discursos, conversações, entrevistas, recepções, debates, aulas acadêmicas, reuniões de trabalho etc.
O Presidente da Casa da Palavra, Dr. Ricardo Nogueira, domina a retórica com a mesma habilidade com que o espadachim movimenta o florete. É culto, poliglota, leitor compulsivo, intelectual sutil e bem-humorado, que faz do seu ofício uma profissão de fé. Seus cursos têm o objetivo de extrair dos alunos o melhor de sua essência, dando-lhes motivação para combater a timidez, a insegurança e o aterrorizante medo de falar em público.
O mestre ensina que a comunicação de boa qualidade não é um dom inato, mas uma técnica que pode ser aprendida por qualquer pessoa, desde que tenha determinação, força de vontade e muita disciplina. Sua mensagem é simples, direta e encorajadora: “você é capaz de transformar-se em um expositor eficiente! Basta que estude com afinco as técnicas ensinadas e vença o medo paralisante de falar em público”.
Na Antiga Grécia, o bom discurso tinha de reunir três requisitos básicos: agradar, comover e convencer. Ricardo Nogueira surpreende não só pela profundidade dos conhecimentos interdisciplinares, mas, sobretudo, pela forma original com que aborda temas complexos e controvertidos. Suas perorações mexem profundamente com as emoções humanas, extraindo risos espontâneos, choros furtivos, reflexões sobre a condição humana e encorajamento para enfrentar os desafios da vida.
Várias gerações de alunos já passaram pelos cursos oferecidos pela Casa da Palavra. Ali tiveram a oportunidade de aprender a planejar um discurso, usar adequadamente a metodologia científica, aplicar regras de etiqueta nas relações profissionais etc. Entre os diplomados, encontram-se empresários, funcionários públicos, políticos, professores, alunos de graduação e pós-graduação, militares, entre outros profissionais interessados em aprimorar as técnicas de comunicação profissional e acadêmica.
Na condição de professor, acompanhei centenas de estudantes de Direito à Casa da Palavra para discutir a importância da oratória jurídica na vida profissional. Sempre insisti, em sala de aula, que a palavra é a principal arma do advogado. Palavra escrita e falada. No mundo jurídico, a produção do discurso é determinante para assegurar a proteção à vida, à liberdade ou ao patrimônio. As aulas magistrais ministradas por Ricardo Nogueira sobre o tema ofereceram valiosas ferramentas para construir uma exposição objetiva, clara e argumentativa, preparando os futuros juristas para enfrentar os grandes embates a serem travados nos tribunais e salas de audiência.
Em várias ocasiões, tive a honra de assistir as conferências de Ricardo Nogueira. Percebi sua preocupação de adequar o discurso aos diversos públicos sem perder a densidade. O mestre não abre mão do bom-humor, dos aforismos e das histórias pitorescas, ingredientes essenciais a uma boa preleção. Incorpora à elocução ferramentas como a informática, a internet, projeção de imagens, vídeos, execução de peças musicais – o que o torna um orador criativo e comprometido com os avanços tecnológicos da sociedade pós-moderna.
A Casa da Palavra não foi criada para ser uma simples escola de oratória como tantas que existem por aí. Mas um templo do saber onde se cultua a língua portuguesa, a dignidade da pessoa humana, a ética, a polidez, a auto-estima e, sobretudo, a comunicação interpessoal em toda sua plenitude. É formada por uma equipe de abnegados funcionários, entre os quais destaco o cerimonialista Tony Admond, que tem atraído elogios por sua gentileza, eficiência e competência administrativa.
Comemorar os 12 anos da Casa da Palavra significa celebrar a consolidação de um projeto acadêmico que enriquece a cultura alagoana e enche de orgulho aqueles que, como eu, partilham o sonho de Ricardo Nogueira de promover a civilidade através da comunicação entre os povos, explorando todas as dimensões do diálogo, do discurso e da solidariedade.

domingo, 9 de agosto de 2009

HISTÓRIAS QUE COLHI NAS RUAS - EPISÓDIO III

A MALDIÇÃO DO IMPERADOR

GEORGE SARMENTO
Alagoas vive a maior crise de auto-estima de sua história. Ostentamos vergonhosos índices de corrupção, violência e analfabetismo. E parece que nos orgulhamos disso. O povo, sofrido e privado das mais elementares políticas públicas, continua votando em candidatos comprometidos com o atraso, com o coronelismo e com o enriquecimento ilícito.
Onde está a bravura dos caetés? A coragem de Zumbi dos Palmares? O médico Luiz Nogueira, um dos mais lúcidos intelectuais alagoanos, afirma que para defender Alagoas temos de bater à porta dos cemitérios. É paradoxal que sejamos obrigados a incomodar os nossos mortos ilustres para resgatar a honra perdida. Como é triste assistir às patuscadas dos políticos, que protagonizam episódios pastelões, que só acirram à impressão negativa que a nação tem de Alagoas!
Nas rodas de botequim, nos senadinhos de aposentados, nas caminhadas na praia, em todo lugar não faltam palpiteiros que se arriscam nas mais exóticas explicações sociológicas para as tragédias que se abatem sobre o nosso torrão.
Certo dia, conversava com uma brilhante professora da UFAL, sobre essas questões. Autora de vários livros e voz respeitadíssima na academia, ela olhou para mim e pontificou:
– É a praga de D. Pedro II. E repetiu: – ainda não conseguimos nos libertar da maldição do Imperador!
Ainda pasmo, balbuciei: – Como é a história? A senhora está falando sério? Ela olhou para mim com condescendência, expondo as vísceras de minha ignorância histórica.
– Você não sabe?
– Não, respondi envergonhado.
– Tudo começou na visita que D. Pedro II fez a Alagoas. Um verdadeiro desastre! Quando desembarcou em Maceió, o vento nordeste atacou toda a comitiva real, que teve de entrar na cidade de costas, as roupas cheias de areia da praia e os cabelos desgrenhados. A incursão ao interior foi ainda mais catastrófica: os visitantes foram atacados por mosquitos, abelhas e indigestão.
­Ela bebeu um copo d’água, tossiu e continuou em tom professoral:
– Muitos anos depois, o velho imperador desenvolveu afeição paternal por Marechal Deodoro, monarquista convicto, a quem confiou os cargos mais importantes da Corte. Advinha quem proclamou a república? Sem se importar com minha perplexidade, arrematou:
– Pois é, Deodoro da Fonseca, o enfant gâté, determinou ao seu protetor que deixasse o Brasil em 24 horas, acompanhado de toda a sua família. Cortou-lhe até a pensão a que tinha direito. Sabe o nome da fragata que os conduziu para o exílio? Nem me deixou responder: – Alagoas! Foi aí que o Imperador, trêmulo de raiva e de decepção com a corja de traidores rogou a praga: “nessa terra nada pode prosperar”.
Depois dessa peroração eloqüente, a professora despediu-se de mim com uma tapinha no ombro, deixando-me imerso em elucubrações.
O diálogo surrealista foi extremamente revelador da origem das nossas desgraças. Para que herméticas explicações sociológicas? A resposta está na cara: a maldição do Imperador é a grande responsável pela infestação de gabirus, taturanas e sanguessugas em Alagoas - pragas imunes a qualquer tipo de inseticida.
A saída é procurar um boa encruzilhada, convocar os pais de santo com seus atabaques e galinhas pretas para ver se retira esse feitiço de amarração.