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domingo, 8 de março de 2009

O UNIVERSO DA FOQUINHA

ISAAC SANDES

Em um movimentado parque aquático havia uma reconchochuda foquinha, a grande sensação daquela piscina. Disputada que era por crianças do mundo inteiro.
De tanto ouvir seu domador elogiar as virtudes de seu trabalho e a nobreza de sua missão, a gorda foquinha fazia gato e sapato de seus malabares, embicava a bolinha colorida, batia palminhas, fazia gestos que imitavam um agradecimento e vivia assim, orgulhosa e presunçosa em seu pequeno universo.
Tantos anos haviam passado, que em sua memória institiva de animal a foquinha já esquecera do oceano no qual um dia nascera. Para ela o universo era seu tão conhecido tanque.
De tanto viver no seu cativeiro, nossa foquinha já se arvorava a criticar aqueles da sua espécie que viviam livres e indolentes no imenso universo de água salgada.
Criticava-os como indolentes, preguiçosos, os quais, no seu ponto de vista, nunca haviam descoberto os prazeres do trabalho que mecanicamente executava com destreza e “alegria”.
E, diariamente, já repetia a forjada frase com que seu explorador e amestrador a incentivava a repetir as mais diversas performances: “O trabalho dignifica a foquinha. Blá, blá, blá ... blá, blá, blá...”!
Assim vivia a incauta foquinha, do tanque para a piscina e da piscina para o tanque, numa rotina quase nauseante.
Mas, como mais nada sabia fazer aquela foquinha além das engraçadas performances, operou-se em sua mente a máxima de Goebbles: Uma mentira muitas vezes repetida, termina soando como inquestionável verdade.
E cada vez mais nossa foquinha criticava suas colegas que ficaram no mar por não saberem, a seu ver, fazer nada, por não terem uma missão como ela, por serem indolentes e viverem quase num bacanal hedonista. Enfim, por trabalharem apenas para seu sustento e o da familia. Dizia ainda que não via graça nenhuma naquele imenso oceano cheio perigos, traiçoeiras correntes e inexpugnáveis fossas abissais.
Porque suas colegas não seguiam seu exemplo de trabalho e dedicação e largavam aquela vida de frívola e pueril alegria ? De discussões filosóficas que nada de produtivo geravam? Quem nesse tipo de boa vida iria aprender a manipular malabares, equilibrar bolinhas coloridas, bater palminhas e agradecer ao distinto público? E, em troca, receber saborosas sardinhas? Aquele sim era, para ela, o verdadeiro universo e sentido da vida.
Passaram-se os anos e num determinado dia, nossa incansável e trabalhadora foquinha sentiu uma pequena fisgada em sua patinha direita , deixando cair a bolinha. Seu domador vendo aquilo franziu o cenho e procurou disfarçar o pequeno fracasso para o distinto público.
Seguiram-se mais dores, mais fracassos e diversas interrupções das apresentações. Em demorados exames, a direção do parque para não perder público, concluiu que nossa outrora e disposta foquinha estava acometida de grave LER e que, portanto, deveria ser substituída em breve. Lucros cessantes!!! Lucros cessantes!!! Isso Jamais poderemos sofrer, diziam.
Não! Não é Possível, repetia a desolada foquinha. Dei minha vida por este parque, não é Possível que, assim tão abruptamente, eles me descartem e me esqueçam. Não...! Não...!!! Desesperada gritava.
Enquanto isso lá fora, aqueles a quem nossa foquinha passara a vida criticando, também chegaram à velhice. No entanto, não estavam sofrendo tanto quanto sua amestrada companheira. Haviam criado ao longo de suas vidas vários grupos de discussão, várias comunidades dos mais diversos hobbies. Suas mentes estavam sempre abertas para as mais diversas discussões e atividades. Conheciam grande parte do oceano em que viviam, bem como de sua rigorosa cadeia alimentar, pois viajaram sempre nas mais diversas correntes marítimas. Em resumo, não ter levado a vida tão à sério e tão limitada, havia lhes proporcionado uma velhice mais amena, não sofriam de LER em suas patinhas e, com suas mentes abertas para o grande universo oceânico, haviam adquirido algum senso de interação e da posição que sua espécie ocupava nele. Não era desimportante mas estava muito longe de ocupar a posição central.
Enquanto isto nossa foquinha, que por um gesto de bondade de determinada comunidade ecológica, fora devolvida ao verdadeiro oceano, sentia-se, paradoxalmente, como um peixe fora d ‘agua. Triste ironia.
A imensidão do oceano a deixava atordoada, quase gerando uma síndrome do pânico. Nadar longas distâncias era um martírio para patinhas atrofiadas e acometidas de violenta artrose, participar dos grupos afeitos a discussão de temas modernos e atuais, era para ela quase como um portador de Alzheimer entrar num jogo de memória.
Então, as outrora desdenhadas companheiras, num grandioso gesto de ”Focanidade” acolheram a velha foquinha em seus grupos e passaram a desenvolver com ela um longo e trabalhoso processo de readaptação, para que, enfim, todos e, ao final, tivessem uma morte digna e menos melancólica.
Com toda dignidade, suas antes criticadas amigas nunca lhes falaram dos seus tempos de presunção e arrogância e, assim, uma a uma, as contemporâneas foquinhas foram morrendo, e, junto com elas, ali, com suas patinhas e mente ainda um tanto quanto atrofiadas, aquela que um dia fora nossa arrogante, presunçosa, infatigável e trabalhadora foquinha.

Isaac Sandes
05/03/09

Um comentário:

Humberto disse...

Parabéns, Isaac, pela história da foquinha amestrada.
Pensando assim, vejo como são afortunados os que dispõem de um imenso oceano de interesses variados, assim como de uma miríade de pares solidários.
Grande abraço.
Humberto